sábado, 22 de dezembro de 2012

TEOLOGIA E SERVIÇO

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ÉPOCA N°749 DE 24/09/2012



WILLIAM URY - 24/09/2012 11h19 - Atualizado em 24/09/2012 11h21
TAMANHO DO TEXTO

William Ury: "Uma história pode resolver conflitos"

O especialista de Harvard em negociações de paz diz que o exemplo do patriarca Abraão pode ser o caminho da conciliação no Oriente Médio

TERESA PEROSA E JULIANO MACHADO
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Há 30 anos, o antropólogo americano William Ury, de 57, medeia negociações nos cenários mais conturbados do mundo – Afeganistão, Tchetchênia e Bálcãs, para citar alguns. Fundador do Programa de Negociação da Universidade Harvard, ele tenta pacificar o Oriente Médio usando o exemplo de Abraão. Figura comum às três grandes religiões da região, Abraão é patriarca do judaísmo e do cristianismo e importante profeta do islamismo. Ury criou, em 2008, uma ONG, chamada Caminho de Abraão, para demarcar uma rota de peregrinação que parte do local de nascimento do profeta, na Turquia, passa por Líbano, Síria e Jordânia, até chegar a seu túmulo, na Cisjordânia. Quatro mil pessoas já fizeram o trajeto, agora interrompido pela guerra civil na Síria.
Há 30 anos, o Antropólogo William Ury, de 57, medeia negociações nos cenários mais conturbados do mundo – Afeganistão, Tchetchênia e Bálcãs, para citar alguns. Fundador do Programa de Negociação da Universidade Harvard, ele tenta pacificar o Oriente Médio (Foto: divulgação)
Ury não desiste. “O caminho já presenciou muitos conflitos e continuará lá durante muito tempo”, disse a ÉPOCA. Em São Paulo, ele divulgará o projeto e participará da 4ª Corrida da Amizade, cujo trajeto passa por pontos da cidade ligados às comunidades árabe e judaica.
Adoraria ver jogadores brasileiros andando no caminho de abraão. seria um jeito diferente de interação com o conflito
no oriente médio"
WILLIAM URY 
ÉPOCA – O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, foi acusado de ter agido de maneira “muito calma” em relação aos ataques contra embaixadas americanas. A reação dele foi adequada?
William Ury – Um erro clássico em negociação é pensar que ser brando em relação às pessoas é ser brando em relação ao problema. O erro oposto é pensar que, para ter uma abordagem dura em relação ao problema, é preciso ser duro com as pessoas. O que os negociadores bem-sucedidos fazem é separar as pessoas do problema para que, ao mesmo tempo, possam ser calmos com as pessoas enquanto se mantêm duros em relação ao problema. A reação do presidente Obama foi exatamente essa. Numa situação muito difícil, mostrou respeito ao islã como uma das maiores religiões do mundo, ao mesmo tempo que se manteve duro em sua condenação contra a intolerância e a violência.

ÉPOCA – O senhor cita o exemplo de Abraão, uma figura central para cristãos, judeus e muçulmanos, como o primeiro passo para a solução dos conflitos do Oriente Médio. Por quê?
Ury – Depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, houve muito medo em relação à eclosão de um conflito, não só no Oriente Médio, mas entre o mundo ocidental e o mundo islâmico, com milhões de pessoas e armas nucleares de cada lado. Percebi que esses conflitos tinham a ver com identidade. Então, começamos a olhar para a história de Abraão, compartilhada pelas três religiões majoritárias na região: islamismo, cristianismo e judaísmo. Quatro bilhões de pessoas compartilham sua história. Ela nos lembra que somos todos parte da mesma família, a família humana. O simbolismo de Abraão não fala apenas de uma única família. Sua lição básica é o espírito de hospitalidade. Abraão recebe estranhos e demonstra gentileza em relação a eles. Seguir os passos de Abraão permitiria às pessoas criar um senso de identidade e prosperidade compartilhada. Alguns conflitos são tão difíceis que apenas uma história pode resolvê-los. E a história mais compartilhada no planeta hoje é de Abraão.


ÉPOCA – A passagem pelo Caminho de Abraão não foi comprometida pela guerra civil na Síria?
Ury – Infelizmente, tivemos de suspender o trabalho que estávamos realizando na Síria. O país tem uma das partes mais bonitas do caminho. Já ouvi de pessoas que vivem em vilarejos, de estudiosos e religiosos que todos aguardam ansiosamente a possibilidade de trabalhar no caminho no futuro. Demorará um pouco, mas o caminho está lá há 4 mil anos. Já presenciou muitos conflitos e continuará lá durante muito tempo.

ÉPOCA - Em relação à logística do caminho, como funciona o trabalho da sua ONG?
Ury – Nosso trabalho é tornar o caminho real, apesar de ele existir há milhares de anos. Nós estamos mapeando o trajeto com GPS, escrevendo um guia turístico e criando um portal online com toda a informação necessária para alguém que vá percorrê-lo. Nós também trabalhamos com organizações locais de cada país, que estão encarregadas de construir o caminho em termos de infra-estrutura. Nós os ajudamos a conseguir fundos. O que chama atenção é que as pessoas que vivem ao longo do caminho já estão começando a ter um retorno econômico. O que mais ouvimos de moradores ao longo do trajeto é: “Por favor, tragam mais visitantes”. O caminho gerou renda em vilarejos que vivem basicamente na pobreza e onde o impacto de turistas é muito grande. Ainda mais importante é o fato de esses moradores amarem receber visitas e mostrar sua herança cultural, o que é um sinal de respeito. Esses moradores sentem frequentemente que o mundo os vê apenas por estereótipos, como perigosos. O aspecto mais importante do caminho é essa criação de respeito mútuo, de reconhecer o próximo como ser humano mesmo em meio a um conflito.
No momento, o local mais forte do projeto é na Turquia, onde o caminho está se desenvolvendo. São 100 km já disponíveis para o público, com um trajeto lindo de percorrer, vilarejos adoráveis, muita herança histórica e arqueológica, algumas das cidades mais antigas do mundo. E talvez o local onde o caminho já esteja mais desenvolvido, o que costuma surpreender as pessoas, é na Palestina, onde há mais de 120 km que os palestinos desenvolveram para receber viajantes.


ÉPOCA – O senhor cita a União Europeia como o máximo exemplo da possibilidade de paz e integração. Mas o bloco não passa por uma crise que ameaça sua própria existência?
Ury – Sim, a Europa passa por uma crise profunda no momento, mas tudo precisa ser colocado em perspectiva. Quando você se engaja num projeto como esse, o objetivo não é acabar com os conflitos. O conflito é algo natural, sempre existirá. O objetivo é a transformação do conflito – de formas destrutivas, como a violência e a guerra, para formas construtivas, como a democracia, o debate, ações não violentas. O que está acontecendo na Europa é o exemplo perfeito disso. Há 100 anos, as diferenças e animosidades vistas hoje levariam à guerra. No momento, é impensável que a Alemanha entre em guerra com a Grécia por causa de seus problemas. Essa foi a mudança de mentalidade. Isso é um enorme sinal de progresso. Se pudermos ter isso no Oriente Médio, com quaisquer rusgas que existam, será um enorme passo.

ÉPOCA – Nelson Mandela é um de seus maiores exemplos de negociador. Ele admite que seu tempo na prisão o fez aprender a controlar seu próprio temperamento e entender melhor seus adversários. Nesse sentido, bons negociadores não nascem feitos, precisam trabalhar para sê-lo. Seu trabalho em Harvard tem a ver com isso?
Ury – Bons negociadores aprendem a ser assim. Quando eu comecei a trabalhar em Harvard no programa de negociação, há mais de 30 anos, quase não havia cursos de negociação. As pessoas pensavam que negociar era algo que não se aprendia. Mandela aprendeu na prisão uma característica chave para ser um bom negociador: a habilidade de “ir para a varanda”, como costumo dizer. Em outras palavras, a habilidade de não reagir imediatamente, emocionalmente durante um debate. Quando furioso, você fará o melhor discurso do qual irá se arrepender. O que Mandela aprendeu foi que antes de você influenciar alguém, você precisa influenciar a si mesmo, é preciso dominar a si mesmo. Essa é a habilidade que lhe permite ser bem sucedido numa negociação e é algo que você pode aprender.
 
ÉPOCA – O que o senhor chama de “terceiro lado” numa negociação?
Ury – Num conflito, sempre existem dois lados. Há os árabes e os israelenses, o sindicato e a empresa, o marido e a mulher. Mas sempre existe o terceiro lado, a comunidade que cerca esses elementos. Os amigos, as testemunhas. O terceiro lado encoraja as duas partes a sentar, a encontrar uma solução melhor. É como um amortecedor que absorve a tensão do conflito e a transforma em algo diferente.


ÉPOCA - Pensando nesses termos, as Nações Unidas deveriam exercer o papel de “terceiro lado universal”. O senhor acredita que a ONU cumpre seu papel satisfatoriamente?
Ury – A ONU fez uma série de coisas maravilhosas e tem muito ainda o que fazer. A ideia de uma entidade global onde todos estão representados está ainda em sua infância, as Nações Unidas existem desde apenas o fim da Segunda Guerra. Nós ainda estamos aprendendo como fazer isso. A ONU conquistou muita coisa e tem ainda muito que conquistar. Não só as Nações Unidas, mas a comunidade internacional, a voz democrática comunitária internacional da humanidade. Essa voz precisa ser amplificada. 

ÉPOCA – Mas esse “terceiro lado” realmente existe? Numa negociação, os mediadores também costumam estar comprometidos.
Ury – A neutralidade é muito difícil de encontrar, porque, como você mencionou, todos têm interesses. Mas o terceiro lado não precisa ser necessariamente neutro. Nelson Mandela foi um líder do terceiro lado e estava longe de ser neutro. O terceiro lado significa estar advogando pelos interesses de todos. É vital numa negociação que você seja aceito e tenha a confiança dos dois lados para exercer o papel do terceiro lado. Se você não é aceito ou não tem a confiança de um dos lados, não conseguirá se estabelecer como mediador. Essa é uma das questões nas quais o Brasil tem um papel a desempenhar, porque é um país respeitado, bem-visto em muitas partes do mundo.

ÉPOCA – Os esforços diplomáticos brasileiros de mediação normalmente não são levados a sério por Estados Unidos e União Europeia, como se viu na tentativa de acordo nuclear com o Irã.
Ury – O episódio do Irã foi uma oportunidade perdida. Poderíamos ter caminhado rumo a uma direção mais positiva, mais construtiva na resolução do conflito. Mas isso foi apenas o começo. O Brasil está entrando agora nessa arena. Claro que haverá sucessos, falhas, lições aprendidas, e assim por diante. Tenho a sensação de que o Brasil se tornará cada vez mais um ator representativo, e esse é um papel muito importante para o país desempenhar. O Brasil é um exemplo de coexistência entre povos e religiões, algo que não ocorre em outras partes do mundo. Pode desempenhar esse papel de inspiração e modelo e também de mediador, como a terceira parte. A cultura brasileira se presta, de certa maneira, a certo tipo de flexibilidade necessária a esse tipo de diplomacia de que o mundo realmente precisa, a diplomacia do terceiro lado.

ÉPOCA – O que falta ao Brasil?
Ury – O Brasil se beneficiaria muito caso se tornasse um centro de treinamento, aprendizado e estudo de negociação. Há muita atenção dirigida para o país. É uma questão de o Brasil encontrar seu papel de liderança, o que pode ocorrer com os próximos grandes eventos, a Copa do Mundo e a Olimpíada. Eles serão a oportunidade para o Brasil mostrar sua habilidade de soft power (a capacidade de um Estado de influenciar outros pela cultura ou pela ideologia) para comunicar os aspectos positivos da cultura brasileira de uma maneira que o mundo possa seguir. Um exemplo seria por meio do futebol brasileiro, incrivelmente popular. Durante o tempo que passei no Oriente Médio, pude ver crianças de pequenos vilarejos palestinos usando camisetas com as cores do Brasil. Em Israel, também. Seria incrível isso ser usado como ferramenta diplomática. Adoraria ver jogadores brasileiros andando no Caminho de Abraão. Eles chamariam a atenção para a questão, e seria um jeito diferente de interação com o conflito no Oriente Médio.

ÉPOCA – Como surgiu a ideia da corrida em São Paulo?
Ury – A intenção é celebrar o sucesso brasileiro em integrar culturas e credos em conflito em outros locais do mundo, como árabes e judeus, mas que, em São Paulo, vivem juntos, trabalham juntos. É uma forma de inspirar as pessoas.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

ÉPOCA N° 747 DE 10/09/2012



ENTREVISTA - 14/09/2012 20h10 - Atualizado em 15/09/2012 09h00
TAMANHO DO TEXTO

Tom Holland: “A religião deve ser investigada”

O escritor britânico causa polêmica com livro e um documentário em que contesta a narrativa tradicional sobre as origens do islamismo

IVAN MARTINS
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A HISTÓRIA INVESTIGADA O escritor britânico Tom Holland. Seu mais recente livro provocou críticas por questionar a narrativa tradicional das origens do islamismo (Foto: Dwayne Senior/Eyevine)
Duas semanas atrás, o canal de TV britânico Channel Four exibiu um documentário sobre a religião islâmica, escrito e apresentado pelo historiador Tom Holland, de 44 anos. Com base em seu livro mais recente, À sombra da espada, o programa apontava inconsistências na narrativa tradicional sobre o islamismo. Holland sugeriu que a religião de Maomé foi elaborada ao longo de séculos, em vez de ter emergido pronta da boca do profeta, em Meca. Houve mais de 1.000 reclamações. Uma entidade islâmica contestou fontes e conclusões de Holland. Ele sofreu ameaças via Twitter. Holland falou a ÉPOCA antes da transmissão do programa. Sobre a repercussão, dias depois disse: “Vamos ver o que acontece”. À sombra da espada será lançado no Brasil em março.
ÉPOCA – Como surgiram as dúvidas em relação à história do islamismo?
Tom Holland –
 Nos anos 1950 e 1960, historiadores começaram a estudar os hadiths, as citações de Maomé, e a questionar se eram realmente do tempo do profeta. Quando ficou claro que, nesse caso, as “provas” que a tradição islâmica oferecia eram fracas, a estrutura toda começou a ruir. As biografias do profeta, os comentários ao Corão, as informações sobre o surgimento do islamismo, tudo ficou sob suspeita. Recentemente, os historiadores começaram a se perguntar se aquilo que os historiadores islâmicos dos séculos IX e X escreveram sobre o começo de sua fé era historicamente verdadeiro. A conclusão tem sido que, para entender o islamismo, as fontes islâmicas não são suficientes. Assim como se questiona se as narrativas sobre a vida de Cristo, escritas dois ou três séculos depois que as coisas aconteceram, correspondem aos fatos, o mesmo começa a ser feito com o islã.
ÉPOCA – Como surgiu a história do islã que conhecemos hoje?
Holland – 
Os bispos que triunfaram no Concílio de Niceia, no século IV, reescreveram a história do cristianismo para assegurar que houvesse uma única narrativa, linear, desde os tempos de Cristo. Provavelmente ocorreu o mesmo no islamismo. Existem diferentes interpretações dentro do islã, que parecem recuar no tempo até o século VII. Aquilo que conhecemos hoje como islamismo demorou pelo menos tanto tempo quanto o cristianismo para se consolidar. A história mostra que religiões e grandes civilizações não emergem formadas. Elas surgem pela confluência de circunstâncias e influências. Evoluem lentamente.
ÉPOCA – O senhor diz que o Corão é composto de várias influências – inclusive mitologia grega –, mas afirma que como documento histórico ele é sólido. Como é isso?
Holland – 
Quando se estudam as citações atribuídas a Maomé (os hadiths), percebe-se nitidamente que foram moldadas pelo período em que foram escritas. Elas contêm alusões claras a eventos históricos que tiveram lugar décadas e mesmo séculos depois da morte do profeta. Com o Corão, não é assim. Tanto quanto podemos perceber pelas cópias mais antigas, parece que todos aqueles que o copiaram agiram como se estivessem lidando com algo extremamente sagrado. Eles tentavam não mudar nada. Mesmo quando havia problemas entre o texto do Corãoe rituais e leis islâmicas correntes, o texto foi preservado. Por exemplo, os muçulmanos rezam cinco vezes ao dia, e isso parece ter origem nas práticas do zoroastrismo, a religião dos persas. Mas o Corão diz que se deve rezar três vezes. Não se tentou alterar o texto do Corão para adequá-lo à realidade, embora isso pudesse facilmente ter sido feito. Ao que tudo indica, o Corãofoi tratado como o livro mais sagrado, com que não se podia brincar. Portanto, o texto que temos hoje parece ser algo original, que veio de um período remoto e foi preservado através dos séculos.
ÉPOCA – O Corão foi escrito quando se diz que ele foi escrito?
Holland –
 Um de nossos desafios é descobrir precisamente de que período veio esse documento. A tradição islâmica diz que esse texto emergiu pronto da boca de alguém chamado Maomé, que viveu num certo período (570-632 d.C.). O peso das evidências dá apoio à tradição. O Corão parece aludir a episódios que tiveram lugar no início do século VII, um dos quais é uma derrota romana para os persas, que ocorreu na Palestina, exatamente no período em que a tradição diz que o profeta viveu. Há também uma passagem referente a Alexandre, o Grande. Ela ecoa, quase palavra por palavra, um texto escrito no Irã em 630 por um sírio ligado ao Império Romano. Essa é a data mais antiga em que podemos identificar uma fonte no Corão, e ela corresponde ao que nos informa a tradição. Uma vez que você aceita isso, pode aceitar o Corãocomo uma fonte de informação legítima, primária, capaz de nos dar pistas sobre onde, como e por que Maomé agia.
ÉPOCA – O senhor diz que Meca talvez não tenha sido o lugar onde Maomé nasceu e deu origem ao islamismo. Por quê?
Holland –
 Meca é um problema. De acordo com a tradição islâmica, ela era uma cidade pagã, sem traços de comunidades cristãs ou judaicas, e estava localizada num deserto. Maomé, vivendo ali, era analfabeto, porque não poderia ter aprendido a ler. Entretanto, no Corão há centenas de referências a profecias judaicas e cristãs. A Virgem Maria aparece no Corão mais que no Novo Testamento. Não só o profeta parece familiarizado com essas citações, como parece contar com uma audiência igualmente familiarizada com as tradições bíblicas – embora a tradição afirme que em Meca havia apenas pagãos. Algo ainda mais problemático é Meca ser mencionada uma única vez no Corão, de uma forma ambígua. Pode ser uma referência a um vale tanto como a uma vila. Não está claro. E nenhuma outra fonte do período menciona a cidade. De nenhuma forma. A primeira vez que o nome da cidade aparece é em 741. Quase um século depois da morte de Maomé. Mesmo assim, a cidade é localizada num deserto no interior do atual Iraque, não na Arábia. Não acho que Maomé seja originário de Meca. Ele provavelmente veio mais do norte. As evidências do Corão sugerem isso.
"Acredito que até mesmo o mais fanático muçulmano aceitaria o direito de alguém não muçulmano duvidar que
Corão tenha vindo de Deus"
ÉPOCA – Por que a tradição islâmica situa o nascimento da religião em Meca?
Holland –
 Justamente porque ela é tão remota, tão isolada. Se você acredita que oCorão veio direto de Deus, você tem de deixar claro que não poderia ter vindo de nenhuma fonte mortal. O paralelo é com a virgindade de Maria, na tradição cristã. Se os cristãos acreditam que Jesus é o filho de Deus, divino, eles não podem tolerar que Jesus seja filho de um pai terreno. Logo, Maria tem de ser virgem. Então, se o Corão é divino, se vem diretamente de Deus, os muçulmanos não podem tolerar nenhuma menção de que ele possa ter vindo de influências judaicas ou cristãs. Eles precisavam situar sua origem num lugar o mais remoto possível. Esse lugar é Meca.
ÉPOCA – Qual sua conclusão sobre Maomé? Ele existiu ou é apenas uma lenda?
Holland – 
Tenho certeza de que existiu. A dificuldade está em saber quanto mais do que isso podemos dizer. Sabemos que ele existiu porque há um texto de propaganda cristã, em 634, que descreve os árabes num ataque à Palestina sob a liderança de um “profeta dos sarracenos”. Quem poderia ser senão Maomé? Isso parece demonstrar, no mínimo, que alguém muito parecido com Maomé estava ativo na Palestina durante aquele período. Mas Maomé, de acordo com a tradição islâmica, morreu em 632. O mesmo texto que confirma a existência do profeta contradiz a tradição sobre a data de sua morte.
ÉPOCA – O que os muçulmanos acham de seu livro e de suas conclusões?
Holland – 
Isso depende. Alguns estão furiosos. Outros reconhecem que o debate é parte do processo de que emergirá uma forma ocidental de islamismo. Na tradição ocidental, é natural que a religião seja alvo de investigação intelectual e acadêmica. Agora que o islã está se tornando uma religião europeia, ele será alvo do mesmo tipo de abordagem histórica que foi feita em relação ao cristianismo e ao judaísmo. Quase todos os muçulmanos com quem conversei foram muito generosos e abertos a respeito de minhas ideias.
ÉPOCA – O senhor não tem medo de sofrer perseguições por causa de seus pontos de vista?
Holland – 
Acredito que até mesmo o mais fanático muçulmano aceitaria o direito de alguém que não é muçulmano duvidar que o Corão tenha vindo de Deus. A presunção muito difundida de que questionar a origem do islamismo significa receber automaticamente uma sentença de morte e que barbudos furiosos atacarão quem fizer isso está muito distante da verdade. A islamofobia assume que os muçulmanos são tão violentos e irracionais que, se você apenas questionar sua religião, eles virão matá-lo. Não acredito nisso. Essa imagem não corresponde a nenhum muçulmano que conheço.
ÉPOCA – O escritor Salmam Rushdie talvez discordasse dessa afirmação.
Holland – 
Bem, Salmam Rushdie era originalmente muçulmano. No caso dele, havia uma acusação de apostasia (trocar uma religião por outra). Mas ele também estava fazendo um esforço deliberado de provocar. Defendo seu direito de fazer isso como artista, mas insultar propositalmente a figura do profeta é muito diferente de questionar as bases históricas do que sabemos a respeito dele.  
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Últimos comentários
  • Montz
    Será que terei a felicidade de ver o fim de todas as religiões? Não consigo entender como milhões de pessoas acreditam nessas porcarias que só trazem malefícios pra humanidade. Acho que o século XXI ainda não começou. A Nova Era já era.
  • Lucio
    Do título capcioso, passa-se para todas as religiões...?!?! Já o capitalismo selvagem não precisa ser investigado não, não é, meu Amigo?
  • Henrique Mareze
    Todas as religiões deveriam ser investigadas a respeito de seus passados, e não somente a religião islâmica. Há muita coisa errada e conflitante em escrituras sagradas. Achei legal o trabalho desse historiador, mas discordo-o quando diz que ''acredito que até mesmo o mais fanático muçulmano aceitaria o direito de alguém não muçulmano duvidar que o Corão tenha vindo de Deus.'' Não subestimem os fundamentalistas !
  • Fatima Valadares
    Todas as religiões não passam de meras especulações sobre a origem da vida e para onde iremos depois de mortos. Cá pra nós : Deus existe !!??
  • Marconi
    Existem trilhões de páginas escritas sobre as origens do cristianismo e do judaísmo, com críticas e releituras sobre suas origens místicas, míticas ou canônicas. E o mundo não acabou por isso. Difícil entender porque escrever ou comentar sobre o islã é tão complicado.
  • Walquiria Faria
    Tom Rolland mexeu num "vespeiro". O fanatismo muçulmano não aceita, e nunca aceitará que se duvide, seja quem for, de alguma coisa que contraria o Corão.