sábado, 17 de maio de 2014

Cristão sem preconcetos: a lógica de C. S. Lewis


Por A. F. Lemos

CRISTÃO SEM PRECONCEITOS: A LÓGICA DE C. S. LEWIS
É muito comum encontrar cristãos que, por ignorância ou desonestidade, não compreendem ou interpretam mal tudo aquilo que vem ou que é o outro. Este é um grande empecilho na longa e utópica estrada ecumênica que a Igreja precisa percorrer?

            Como teólogo e professor cristão, sou um crítico mordaz das teologias vivenciadas nas igrejas. Observo, nelas, um diversificado caleidoscópio de doutrinas as mais variadas possíveis sobre diversos pontos da fé cristã-judaica.
            Mas chamo a atenção para o que considero uma desonestidade intelectual enorme: o argumentum ad hominem. Ele vem sendo usado, consciente ou inconscientemente, na Igreja. Vejamos, primeiro, do que se trata e, depois, sua manifestação eclesial.
Um argumentum ad hominem (latim, argumento contra a pessoa) é uma falácia identificada quando alguém procura negar uma proposição com uma crítica ao seu autor e não ao seu conteúdo. Um argumentum ad hominem é uma forte arma retórica, apesar de não possuir bases lógicas. A falácia ocorre, pois conclui sobre o valor da proposição sem examinar seu conteúdo, o que é absurdo.
O argumento contra a pessoa é uma das falácias caracterizadas pelo elemento da irrelevância, por concluir sobre o valor de uma proposição através da introdução, dentro do contexto da discussão, de um elemento que não tem relevância para isso, que neste caso é um juízo sobre o autor da proposição.
Pode ser agrupado também entre as falácias que usam o estratagema do desvio de atenção, ao levar o foco da discussão para um elemento externo a ela, que são as considerações pessoais sobre o autor da proposição.
Sua estrutura lógica é a seguinte:

• O autor X afirma a proposição P;
• Há alguma característica considerada negativa em X;
• Logo, a proposição P é falsa.

Pode-se distinguir tipos de argumento contra a pessoa, que lançam mão de estratégias ligeiramente diferentes:

Argumento ad hominem abusivo: é o ataque direto à pessoa, colocando seu caráter em dúvida e, portanto, a validade de sua argumentação.

Exemplo:
“As afirmações de Richard Nixon a respeito da política de relações externas em relação à China não são confiáveis pois ele foi forçado a abdicar durante o escândalo de Watergate.”

Também pode ser chamado de ad personam, ou simplesmente de ataque pessoal.

Argumento ad hominem circunstancial (ad hominem circustantiae): coloca em foco a imparcialidade do adversário, sugerindo que o último tem algo a ganhar com a defesa daquele ponto de vista.
Exemplo:

A: Fumar não causa nenhum tipo de mal.
B: És dono de uma grande empresa de cigarros, é claro que dirá isso.

Tu quoque (falácia do apelo à hipocrisia): o adversário é acusado de praticar algo muito semelhante ao que ele critica. Tu quoque significa, em latim, "você também". É um argumento muito comum e eficaz, pois tende a colocar o oponente na defensiva.

Exemplo:

A: As pessoas devem aprender a viver com o que ganham.
B: Mas você está completamente endividado e não faz qualquer esforço para mudar isso.

Falácia de associação (culpa por associação): Neste caso, a crítica não é dirigida diretamente ao autor da proposição, mas a uma terceira pessoa, que tem uma imagem negativa, à qual a tese que o autor original está defendendo é associada.
Um exemplo comum dessa falácia é a associação à figura de Hitler, apelidada de Reductio ad Hitlerum.

            Quanto ao argumentum ad hominem circunstanciae, C. S. Lewis modula o seu significado com o conceito de bulverismo. Bulverismo é o termo cunhado por C. S. Lewis para descrever uma falácia lógica na qual, em lugar de refutar um determinado argumento, uma pessoa assume que o mesmo esteja errado, passando, em seguida, a explicar o porquê de seu oponente estar fazendo uso de tal argumento. Trata-se essencialmente de uma falácia ad hominem circunstancial, similar à mudança sujeito-motivo apresentada por Antony Flew. O Bulverismo é falacioso porque os motivos de uma pessoa em nada interferem na veracidade ou falsidade de um argumento usado por essa pessoa. Lewis escreveu sobre o tema em um ensaio de mesmo nome em 1941, disponível em seu livro "God in the Dock" (Deus no Tribunal). Ele explica a origem do termo da seguinte maneira:

Você deve mostrar que uma pessoa está errada antes de começar a mostrar por que ela está errada. O método moderno é assumir sem discussão que ela está errada e então desviar sua atenção disso (a única questão realmente relevante) através de um ativo esforço em explicar como ela se tornou tão estúpida. Ao longo dos últimos quinze anos eu percebi esse vício tão freqüentemente que tive que cunhar um nome para isso. Eu o chamo de "Bulverismo". Algum dia irei escrever uma biografia sobre seu inventor imaginário, Ezekiel Bulver, cujo destino foi determinado aos cinco anos, quando ouviu sua mãe dizer a seu pai — que insistia em manter que dois lados de um triângulo juntos são maiores do que o terceiro — "Você diz isso porque é homem". Naquele momento, Bulver narra, "iluminou minha mente a luz da grande verdade dizendo que a refutação não é necessariamente parte de um argumento". Assuma que seu oponente está errado e o mundo cairá aos seus pés. Tente provar que ele está errado ou (ainda pior) tente descobrir se ele está errado ou certo e o dinamismo nacional de nosso tempo irá lançar você contra a parede". Assim Bulver tornou-se um dos criadores do século vinte.  — C. S. Lewis

Exemplo:

Suponha que eu pense, após fazer meus apontamentos, que eu tenha uma grande soma no banco. E suponha que você queira descobrir se essa minha convicção seja apenas sugerida. Você jamais chegará a uma conclusão examinando minhas condições psicológicas. Sua única chance de descobrir será sentando e fazendo o cálculo você mesmo. Ao verificar meus números então, e apenas então, você irá saber se eu tenho a soma ou não. Se você considerar meus cálculos corretos, então qualquer consideração sobre minhas condições psicológicas será apenas perda de tempo. Se você considerar meus cálculos errados, então pode ser relevante explicar psicologicamente como eu pude errar tanto na minha aritmética e a doutrina do desejo inacessível se tornará relevante — mas apenas depois de você mesmo ter feito a soma e descoberto o meu erro em aspectos puramente matemáticos.
O mesmo se dá com todas as ideias em todos os sistemas de pensamento. Se você tentar descobrir o que é errado especulando sobre os desejos das pessoas, você está simplesmente iludindo você mesmo. É preciso primeiro encontrar em bases essencialmente lógicas as falhas do argumento. Depois disso, se quiser, vá e procure as causas psicológicas do erro. — C. S. Lewis

            Vimos que, em alguns casos, o argumentum ad hominem é usado por ignorância e, em outros, por desonestidade intelectual (geralmente um bulverismo). Vemos, agora, como isto ocorre no dia-a-dia das comunidades cristãs.
           
Exemplo 1:

A: O pastor João pregou sobre dízimos e ofertas.
B: O pastor João foi acusado de desvio de dinheiro na igreja.
B: Logo, a pregação do pastor João tem fins escusos.

Comentário: Sabemos que o dízimo bíblico foi instituído por Deus, como Lei, ao povo de Israel, para somente os israelitas praticarem, para somente aos levitas ser entregue etc. Portanto a pregação atual é malfadada. Discrepa da mensagem escriturística. Infringe o Sitz im Lebem, o bom senso e as regras da Exegese. Mas continua a ser pregado como se fosse a continuidade daquele dízimo veterotestamentário. O pastor João pode não ter se dado conta disto (por ignorância) e replica este erro na sua pregação; ou pode ser um canalha, que conhece bem de Teologia e Exegese e está, apenas, a se aproveitar da ignorância dos fiéis.

Exemplo 2:

A: Pedrinho me disse que os louvores do Pe. Marcelo Rossi são bons.
B: O Pe. Marcelo Rossi é idólatra.
C: Logo, seus louvores não são bons.

Comentário: É também uma falácia que louvores católicos sejam necessariamente ruins aos olhos protestantes porque quem os entoam são católicos na mesma medida que é mentira que os louvores protestantes sejam necessariamente ruins aos olhos católicos porque quem os entoam são protestantes. O mesmo vale para livros: quando alguém me traz um livro de Kardec, por exemplo, serei desonesto se disser que é um livro mentiroso porque quem o escreveu é espírita. Se o conteúdo do livro é uma mentira ou não isto não depende da crença do autor, mas da sua mensagem. Portanto, será preciso que eu leia sua mensagem ou a conheça de fonte segura para que afirme que o livro é ou contém uma mentira.

            Este tipo de argumento é muito comum entre católicos e protestantes e na concepção, muitas vezes preconcebida, que uns fazem dos outros. Se os católicos são idólatras ou não, se são ignorantes ou não, isto não consiste premissa lógica para se rechaçar aprioristicamente tudo o que vem deles, tudo o que eles falam e ensinam. Da mesma forma, se os protestantes são hereges ou não, se são ignorantes ou não, isto não consiste premissa lógica para se rechaçar aprioristicamente tudo o que vem deles, tudo o que eles falam e ensinam. Há muito mais história, muito mais teologia, muito mais eclesiologia em comum entre católicos e protestantes do que discrepâncias. E as que existem são quase todas não fundamentais para a salvação do ser humano.