terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Crer para compreender



Crer para compreender

O grande teólogo do século XX, Rudolf Karl Bultmann, na sua famosa obra “Crer e compreender”, examina se é possível a exegese livre de premissas. Abaixo, segue minha crítica ao ensaio “Será possível a exegese livre de premissas?”.[1]

Alan Francisco de Souza Lemos[2]

 

O texto é de 1957, mas é daqueles que costumam vencer o tempo. Escrito por Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão. Ao lê-lo, deparei-me com questões acerca dos estudos de um texto – talvez por estar a vida toda lidando com textos, especialmente nesta última década, quando laureei-me em Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Embora a intenção do autor seja tratar dos aspectos exegéticos bíblicos, isso não impede a possibilidade de pensarmos nossa forma de lidar com textos diversos. É importante frisar que, embora tenha sido escrito em poucas páginas, os elementos abordados por Bultmann, no artigo que irei usar para reflexão, são amplos e, para o tema em questão, focarei em alguns aspectos pontuais.

Qual é a distância compreensiva entre um sujeito interpretante e uma realidade interpretada? A verdade, enquanto meta hermenêutico-cognitiva, pode ser considerada uma possibilidade atingível à atitude compreensiva de um sujeito interpretante? O título da obra é Será possível a exegese livre de premissas?[3], o que nos remete a questões relevantes para qualquer estudioso que tem como objeto textos em geral. O que pretendo refletir, nos parágrafos a seguir, é sobre as implicações que residem no ato de estudar um texto a fundo.

                A primeira resposta do autor à pergunta que propõe como título é: sim e não. Quando diz sim à pergunta sobre a possibilidade de uma exegese livre de premissas, Bultmann refere-se à exegese feita “sem pressupor os resultados da exegese”[4]. A segunda resposta, por sua vez, segue da explicação de que o exegeta não é neutro. Este, ao analisar o texto, traz “consigo certas perguntas” e “certa noção do assunto de que trata o texto”[5]. Acho que, na teoria, é possível uma exegese estar livre de premissas, mas, na prática, não, pois, até mesmo quando o exegeta se propõe a ser o mais imparcial possível, ele já tem em mente o objetivo de alcançar tal meta, e isto, de alguma forma, induze-o a um fim pré-ciente ou estabelecido, ou seja, o não querer ter premissa alguma ipso facto se torna a premissa mesma. E, quando tratamos do texto mais interpretado em todo o mundo, a Bíblia, a isto se soma o fato de boa parte dos exegetas ser de confissão religiosa cristã ou de alguma outra espiritualidade que se valha das Escrituras, e, como alguém disse certa vez, ninguém é imparcial quando se aproxima da Bíblia. Será?

                Em relação aos resultados pré-concebidos no exercício exegético, Bultmann diz: “Toda exegese dirigida por preconceitos dogmáticos não ouve o que o texto está dizendo, mas fá-lo dizer o que ela quer ouvir”[6]. Assim, Bultmann estaria afirmando que o exegeta que não possua “preconceitos dogmáticos” é o único capaz de fazer a mais isenta exegese. Aqui, volto a reiterar que até mesmo o exegeta que não se valha de premissas dogmáticas, ao fim e ao cabo, também não se abstém de alguma premissa, mesmo que esta não seja dogmática; como já disse, em última análise, por mais profissional e imparcial que seja o exegeta, sempre terá sua premissa, mesmo que ela seja o próprio objetivo de fazer uma exegese sem premissa. Afinal, com o físico Werner Heisemberg, lembramos que “a observação do observador afeta o observado”.

Como um adendo à temática, penso que, nesse aspecto, o ambiente acadêmico ainda seja pouco compreendido. É constantemente acusado de ser rígido e fechado em suas metodologias. Mas, a liberdade em criar sua própria capacidade especulativa e novas concepções não cabe à Academia. Esta leva consigo a manutenção do que a humanidade nos legou e força os alunos (ou deveria ser assim) a compreender as ideias que nos chegaram com máximo rigor. Quando as ideias forem da melhor maneira possível compreendidas, mesmo que os resultados sejam contrários às crenças que o intérprete carrega consigo, então, este poderá reformular suas ideias, criar novas ou enfatizar suas concepções criticando o autor cuja leitura foi bem compreendida. Mas, jamais, teremos uma exegese totalmente imparcial e livre de premissas.

Se, por um lado, para Bultmann, é necessário abrir mão dos resultados que se espera ao ler um texto – para se chegar à exegese sem premissas -, por outro, é necessário lembrar que há certas determinações histórico-subjetivas fundamentais na hora de interpretar determinado texto. O leitor “está determinado por sua individualidade, isto é, por suas tendências e hábitos específicos, por seus dons e seus pontos fracos”[7]. Isto aliado a toda história que o precedeu e determinou seu modo de ler o “mundo”. A este respeito escreveu o poeta Fernando Pessoa: “(...) o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto." Para o poeta, o texto não continua, isto é, a mensagem originalmente escrita perde, necessária e indelevelmente, o todo de sua compreensão, e isto porque mudam os parâmetros do tempo e da história. Para Bultmann, no caso da Bíblia, cada época a lerá segundo o momento histórico em que vive. E, aqui, talvez esteja a maior fragilidade da afirmação de Bultmann de que é possível, ao exegeta livre de amarras dogmáticas, alcançar a exegese pura, sem mesclas, tendências ou premissas: se, como acabo de mostrar, para Bultmann, o leitor da Bíblia sempre terá sua leitura ressignificada pelo momento histórico pelo qual passa, por acaso isto também não se aplicaria a ele próprio, Bultmann? É claro que sim! E, se mesmo ele teve a sua leitura bíblica afetada pelo momento histórico em que viveu, isto não seria a prova mais cabal de que o próprio Bultmann também não conseguiu atingir a sonhada exegese perfeita? Aqui, Bultmann infringe a coerência e a lógica.[8] E, se nem os mais nobres exegetas podem alcançar a interpretação imparcial, quem poderia? Afinal de contas, como conhecer o todo da compreensão de um texto, se não há ninguém que possa interpretá-lo sem que, para isto, precise necessariamente se valer – ao modo kantiano – das categorias mentais? Para os cristãos, no que tange ao texto bíblico, só há um único Ser que possa atingir a exegese perfeita: o Espírito Santo! Para eles, de modo geral, aquilo que a razão humana não alcança é esclarecido justa e integralmente pela Divina Revelação e pela Divina Inspiração.

"Nós mudamos incessantemente. Mas se pode afirmar também que cada releitura de um livro e cada lembrança dessa releitura renovam o texto”, afirmou Jorge Luis Boges. E, contra toda objeção de que os textos deveriam ter uma interpretação definitiva, o autor defende que a história não é vista objetivamente, haja vista que somos parte dela e estamos nela. Portanto, um olhar afastado, objetivo e definitivo destoa do comprometimento com o movimento próprio da própria história. Nisto, acerta Bultmann. Ele só erra ao considerar possível o sim à pergunta inicial: será possível a exegese livre de premissas?

No início do seu artigo, Bultmann afirma que Filão, Paulo e o autor da Epístola de Barnabé não “ouviram” os textos usados como fonte para suas afirmações, pois teriam eles feito o texto dizer aquilo que eles já sabiam de antemão. A esta metodologia, Bultmann chama alegoria e afirma que ela deve ser irrevogavelmente evitada. Percebo, não somente neste posicionamento bultmanniano, mas também em outros de sua vasta obra, que este teólogo não crê na Divina Inspiração, na Divina Revelação e, nem tampouco, na Divina Iluminação, pois afirmar que Paulo acresceu a Dt 25:4 algo que não estava no texto em 1Co 9:9 é afirmar que o texto de Dt 25:4 é um texto como outro qualquer, sem inspiração; isto, a luz da teologia cristã, é um patente absurdo, pois sabe-se que o texto bíblico não é um texto qualquer e que guarda, em suas camadas misteriosas, significados variados, como o próprio Jesus Cristo nos ensina quando cita tantos e tantos textos veterotestamentáreos que, aparentemente, não traziam nenhuma revelação sobre sua vinda. Certamente aqui temos assoalhado a dificuldade hermenêutico-epistemológica constitutiva do pensamento ocidental moderno: o que está para além do experimental não pode ser dito, nem pensado e nem tampouco questionado (R. Carnap). Simplesmente porque esta realidade não possui uma existência empiricamente demonstrável. É possível dizer, desta forma, que a realidade (ontologia) parece estar umbilicalmente ligada à capacidade cognitiva de compreensão/percepção (hermenêutica) de um sujeito epistêmico. E é justamente este o calcanhar de Aquiles da ciência moderna e modernosa. É conditio sine qua non provar demonstravelmente; portanto, usando as palavras de Immanuel Kant, na Kritik der reinen Vernunft, é preciso “reduzir o espaço da fé e aumentar o da razão”. E Rudolf Bultmann é depositário fiel desta filosofia. Apesar de certo quanto à Hermenêutica, aqui, agora, Bultmann também infringe a teologia cristã. Mais a frente, mais uma vez o faz quando acusa os intérpretes dos evangelhos – como eu e você – de serem preconceituosos por acreditarem que a transmissão dos relatos de João e Mateus são historicamente fiéis devido ao fato de estes terem sido discípulos de Jesus. Ora só diz algo assim quem patentemente não crê na Divina Inspiração das Escrituras, dogma comum a todas as denominações cristãs. Daí que, ao fim e ao cabo, Bultmann não pode ser cristão, ao menos não na acepção mais profunda do termo. E, se considerarmos, com os cristãos, que só há um único Deus – e que este Deus é Pai, Espírito, mas também Jesus -, podemos, a posteriori e ipso facto afirmar que Bultmann é necessariamente ateu (conforme nos recorda o Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr.). Se, na Bíblia, há choque de informações (como no caso citado pelo teólogo alemão em que não se saberia ao certo em que momento do ministério de Jesus deu-se a purificação do Templo), é porque tal livro não é um artigo científico, que busca a exatidão o tempo todo, mas, acima de tudo, um livro de fé, e que, portanto, exige, de todo e qualquer bom exegeta, a fé como primeiro e maior pré-requisito. E isto parece faltar a Bultmann.

É por isto, e como consequência inevitável de sua falta de fé, que Bultmann é levado a suspeitar se Jesus sabia, enquanto esteva aqui na Terra, que era o Messias (consciência messiânica de Jesus).

“Será que a exegese dos evangelhos pode ser dirigida pela pressuposição dogmática de que Jesus era o Messias e tinha consciência de o ser? Ou não precisa ela, antes, deixar esta questão em aberto? A resposta deveria estar clara. A eventual consciência messiânica seria um fato histórico que, nesta qualidade, somente pode ser demonstrado pela pesquisa histórica. Caso esta pudesse tornar provável que Jesus sabia ser o Messias, tal resultado teria certeza apenas relativa; isto porque a pesquisa histórica jamais pode conduzir a resultados de validade absoluta. Todo conhecimento histórico está em discussão; a questão se Jesus tinha ciência de ser o Messias, portanto, permanece aberta dentro da exegese.”

Deus, pela sua própria natureza, de acordo com Wolfhart Pannenberg[9], não é um objeto do qual podemos dispor analiticamente do ponto de vista da abordagem científico-fenomenológica. E a Bíblia, como portadora da Palavra de Deus, também possui tais limites.

O problema de Bultmann é que ele procura demonstrar que a Bíblia possui erros lógicos, mas esquece que este livro, não raro, é ilógico porque de fé. Então é truisticamente óbvio que ele achará vários erros lógicos! E não somente ele, mas eu e você também! A questão não é essa, mas estas dificuldades sempre existirão para aqueles que não têm fé. 

Para Bultmann – e demais pensadores modernosos -, é a capacidade perceptivo-compreensiva acerca de uma dada realidade que deverá ser entificada, enquanto a linguagem deverá ser compreendida, expressis verbis, como modus probandi, isto é, como método/modo de ‘demonstrabilidade interpretativa’, sem a pretensão de assumir, com isso, nenhum tipo de vocação epistemológica que seja totalizadora da verdade. Haja vista que esta última, como nos sugere Bachelard, está relacionada à dinamicidade metodológica que se dá entre um sujeito epistêmico e um objeto cognoscível e, por isso mesmo, é um fenômeno aberto e construível, e não pronto e, dogmaticamente, inalterável. Ocorre, porém, que Bachelard e Bultmann estão, neste ponto, totalmente errados! A linguagem não pode sustentar-se na imparcialidade fria e no rigorismo acadêmico. Não há imparcialidade humana! Pois, para que houvesse, seria mister nós não termos sentidos. O caleidoscópio imenso de informações que nos penetram pelos sentidos marcam irrefragável e indelevelmente nosso modus agendi, nosso modus operandi, nosso modus faciendi e nosso modus vivendi! Portanto não há como ser imparcial diante de uma exegese.

Para exemplificar, imaginemos que dois estudantes de Teologia recebem a proposta de elaborar a exegese de um texto bíblico. O primeiro, antes de entrar no curso, nunca havia sentado na cadeira de uma faculdade. O segundo já é formado em Direito e é pós-graduado também. O primeiro nasceu e cresceu em uma comunidade carente e enfrentou toda sorte de dificuldades para aprender, além de não contar com um ensino de qualidade em sua formação. O segundo nasceu e cresceu em uma família de classe média alta, não teve tantas dificuldades assim e estudou em boas escolas. O primeiro, por uma série de motivos que não convém detalhar, assiste a programas de televisão populescos, não tem o hábito da leitura e convive com pessoas simples e incautas. O segundo assiste a programas culturalmente edificantes, tem o hábito da leitura e convive no meio de pessoas bem formadas. O primeiro não entendeu bem a proposta do trabalho. O segundo já coligiu os materiais para começar a fazê-lo. Pergunto: por acaso estas exegeses serão imparciais? Os estudantes, por ocasião do labor exegético, não sofrerão a interferência de tais fatores? Ora, é sabido que a idade, a formação, a educação, o contexto epocal e cultural e a religião e/ou a fé de uma pessoa – entre outras coisas – não apenas pode como, de fato, afeta a sua hermenêutica particular, pois tais variáveis compõem sua cosmovisão. Destarte, e não obstante, Bultmann parece negligenciar isto quando afirma que: a) é possível (mesmo que somente aos exegetas “livres” de preconceitos) uma exegese sem premissas e b) a linguagem como modus probandi. A linguagem não é somente um modo de provar ou de demonstrar, mas também um modo de expressar nossos pensamentos, inclinações e preconceitos. Não é possível viver sem preconceitos. É natural à estrutura psíquica a formação de conceitos preconcebidos. Eles nos ajudam a prever e evitar erros e a nos relacionar com o mundo.

Já Bachelard está mais errado ainda quando afirma que a verdade é um fenômeno construível. Pois, se a verdade é um fenômeno, ela está dentro da realidade, isto é, é real. Ora, aquilo que é real independe da minha vontade; independe do poder de construção humano. Se uma porta estiver fechada e alguém quiser passar por ela alegando que, ao contrário, ela está aberta, a mesma porta não passará de fechada à aberta só por que tal indivíduo quis ou desejou. Não há como “construir” uma realidade em que uma porta fechada esteja aberta simultaneamente. Isto é ridículo!

Outro problema de Bultmann, é que ele divide o conceito de premissa em dois tipos: as premissas enquanto preconceitos de base religiosa e premissas outras, quaisquer. Todavia, como vimos, na prática, não há diferença eficaz, pois tanto uma como a outra tem o poder de persuadir e induzir o hermeneuta a tomar este ou aquele caminho exegético. Contra si mesmo, Bultamnn acerta quando afirma que “determinado enfoque sempre constitui premissa”, pois, se todo e qualquer enfoque pressupõe uma ou mais premissas, ele, no ato da exegese, está limitando, focando determinado texto sob as limitações de seu intelecto, seu conhecimento, sua visão ou intenção. Aqui, com o filósofo Olavo de Carvalho, temos que dizer que estamos diante de uma paralaxe cognitiva.

                Diversos são os aspectos que devem ser levados em conta no exercício hermenêutico de um texto. Sobre a compreensão histórica, o autor diz:

“A compreensão da história como contextura de efeitos pressupõe a compreensão das forças atuantes a concatenarem os fenômenos individuais. Essas forças são as necessidades econômicas, os problemas sociais, a ambição de poder na política, paixões, ideias e ideais humanos. Os historiadores diferem no peso que dão a esses fatores, e apesar de todo o empenho em chegar a uma visão uniforme, no caso de cada historiador individual sempre preponderará determinado enfoque, determinada perspectiva”.[10]grifo nosso

               Esta estrofe de Bultmann é suficiente para condená-lo ao modo de paradoxo, já que contraria sua postura adotada no texto de que é possível um exegeta ser livre de premissas. Bultmann é enfático quando defende que o enfoque do historiador (englobo nessa reflexão o filósofo, o teólogo, o cientista, o sociólogo, o psicólogo, etc.) é sempre unilateral. Isso não é um desmerecimento do olhar humano, mas a constatação da limitação humana frente a seu “objeto” de estudo. Podemos, nesse ponto, acrescentar a concepção nietzscheana na qual diversos pontos de vista enriquecem a compreensão do ente. Diante disso, Bultmann não desmerece o acúmulo de conhecimento para as gerações futuras, mas enfatiza a possibilidade de sempre retomar o que nos foi legado por meio de olhar crítico. Todavia, Bultmann abstém o exegeta-livre-de-dogmas das posturas a priori que atribui aos outros, ou seja, em minhas palavras, segundo Bultmann, há uma classe de seres humanos, chamada de exegetas-sem-rabo-preso-com-dogmas, que não deixam, miraculosamente, suas ideias ou categorias a priori interferirem na sua produção textual acadêmica (exegese). Bultmann parece supor que somente tal exegeta (como ele) pode alcançar a máxima imparcialidade na análise e, com isso, desocultar a verdade.[11] A mesma verdade que é ocultada ou mascarada pela análise preconceituosa dos leitores, hermeneutas ou exegetas “inescrupulosamente” religiosos demais. A verdade não pode ser reduzida às categorias racionais da cientificidade moderna – que exigem a verificação e o controle em termos de demonstração e repetição como critério de normatização do fenômeno compreendido e interpretado cientificamente pelo sujeito epistêmico – justamente porque não podemos desconectá-la (a verdade) da dimensão geo-histórica que tanto a determina como possibilita sua melhor compreensão (isso de alguma forma já inviabiliza a crença no dogma “científico” do universalismo dedutivista, tanto do positivismo quanto do cientismo). A pretensão de que a ciência, com seus respectivos métodos apropriados, pode atingir a realidade como um todo e ser considerada como o “único lugar da verdade” (LAMBERT, 2002, p. 28) já se constitui um pseudodiscurso frente às atitudes epistemológicas mais sóbrias nos dias de hoje. Toda e qualquer ciência apenas apresenta um recorte da realidade, ao contrário da Teologia e de sua ancilla principal, a Filosofia.

            Neste sentido, a teologia satisfaz, sim, como notifica Pannenberg (1981), o postulado da coerência, pois suas proposições têm, outrossim, o caráter cognitivo (pois estas mantêm uma relação de identificação com a história/realidade concreta) que torna seus artigos constitutivos inteligíveis do ponto de vista da racionalidade epistemológica, haja vista que nela também existe tanto o “objeto material” quanto o “sujeito epistêmico” (BOFF, 1998, p. 41-2). Ora, com base nesse último pressuposto, não há como olvidar que a verdade, enquando doxa, é uma condição/intenção que pode caracterizar preferencialmente a atitude interpretativa de todo sujeito cognoscente, que deseja, outrossim, transformar sua suspeita intuitiva em certeza epistemológica. Este procedimento marca a intencionalidade do cogito cartesiano frente a quaisquer fenômenos ontológicos existentes e fundamentados por uma crença apriorística de orientação tendenciosamente religioso-metafísica.[12] Nesse sentido, esta postura hermenêutica também passa a ser caracterizada pela cientificidade metódica que pretende transcender os limites imaginários do conhecimento sensível (popularmente reconhecidos e articulados no senso comum), convertendo-o em certeza epistemológica para o sujeito compreensivo interpretante, mas, com isto, desperdiçando a parte metafísica da verdade/realidade. A verdade, enquanto valor motivacional e meta alvejada do empreendimento cognitivo, deve ser identificada no testemunho revelacional da experiência histórica; geografia epistemológica esta que demarca o seu grau de autenticidade, bem como sua legitimidade e validação cognitivas. Porém, também, ela deve ser identificada no testemunho revelacional da epifania da Palavra de Deus. Na teologia, enquanto ciência da fé [atribuição que Heidegger outorga a ela] (HEIDEGGER, 1991), ela jamais pode deixar de ser sua meta primeira e final, se consideramos como os pais da Igreja (sobretudo Justino[13]) de que a verdade só é referencial da fé (ou do sujeito pístico)[14] porque ela, antes de tudo, lhe é constitutiva. Assim, ao fim e ao cabo, veremos que, se a verdade constitui a fé, só pode haver, de fato, uma fé correta (sob pena existirem várias verdades contraditórias, que, em última análise, acabariam sendo todas elas mentiras).

            Assim sendo, o que deve haver de comum, em termos de atitude hermenêutica de todo sujeito interpretante (sobretudo naquele que transita no e pelo reino da epistemologia bíblica), é exatamente a honestidade intelectual, orientada para o desvelamento da verdade última existente enquanto objetivo epistêmico do empreendimento cognitivo, e a fé, ao modo anselmiano, necessária para a intelecção daquilo que não se capta apenas com a exegese metódica racional (aquela mesma camada de mistério de que já falei). Assim, discordo de Pires & Oliveira (2008) quando afirmam:

Neste sentido, a natureza heurística de todo esforço cognitivo numa atitude interpretativa serena jamais poderá direcionar, para determinados interesses secundários não especificados aprioristicamente (ideológicos), os significados possíveis (e os não possíveis) de uma verdade encontrada em um determinado texto/discurso/realidade. – grifo nosso

Não é preciso expor, novamente, por que discordo destes autores. Eles adotam o mesmo posicionamento de Bultmann: aceitam como real e eficaz a possibilidade de uma exegese sem premissas. Ao modo da compreensão prévia de Bultmann, estes autores vão falar de readequação compreensiva, indo, até, mais longe que Bultamnn quando afirmam que nem mesmo isto pode adulterar a objetividade do resultado interpretativo.

Esta compreensão nos permite alcançar maior grau de objetividade na percepção/apreensão de uma realidade/verdade pesquisada mesmo considerando que, na própria tarefa hermenêutica, já exista uma “readequação compreensiva” que é apreendida e comunicada por um interpretante, o que não implicaria, inevitavelmente, num tipo modal de pseudo-objetividade. – grifo nosso

            Acredito, sim, que a exegese bíblica, quando feita com parcimônia, temperança e honestidade intelectual, é capaz de alcançar um “maior grau de objetividade”, mas – repito – ao modo anselmiano, isto é, sobre sua fórmula fides quaerens intellectum.

Em poucas palavras, a verdade possui uma face de objetividade (razão, ciência) e outra de subjetividade (fé, metafísica). Isto, porém, não significa dizer que a mesma (a verdade) seja necessariamente aprisionada e determinantemente condicionada pela ótica de seu sujeito que a percebe para não redundarmos, assim, na sentença existencialista de orientação kierkegaardiana quando esta afirma que a verdade é essencialmente subjetividade. O correto é evitar estes extremos: nem apenas objetividade (Bultmann, Bachelard, Pires & Oliveira), nem apenas subjetividade (Kierkegaard), mas a média ponderada (Santo Anselmo, Karl Barth). Assim, tenho que discordar parcialmente de Pires & Oliveira quando afirmam:

Se a verdade, enquanto fenômeno factível de uma percepção/apreensão hermenêutica, torna-se inalcançável e ininteligível sem a necessária utilização dos ‘óculos’ fabricados (ideológicos) por um topos epistêmico/subjetivo, então jamais poderemos considerar que ela (verdade) seja vicejada no horizonte cognitivo-hermenêutico da fenomenologia da compreensão (muito embora se fala que esta está preocupada não com a verdade em si, mas com o sentido que a ela damos na Dasein), o que poderia ser compreendido, grosso modo, como um obstáculo epistemológico primário para as ciências interpretativas em geral, na qual se inclui aqui a teologia como ciência hermenêutica.

            Discordo, mais uma vez porque Pires & Oliveira, assim como Bultmann, Bachelard, Kant, Heidegger e tantos outros modernos e pós-modernos esquecem-se da presença econômica de Deus na história; esquecem-se da Divina Iluminação do Espírito Santo. Esta verdade, contudo, não pode se ocultar sob o medo e a falta de fé dos teólogos “cristãos”. Obviamente, concordaria com os autores se a Teologia não fosse uma ciência natural e sobrenatural, isto é, que tem como objeto de estudo o físico e o metafísico.

Bultmann, no entanto, acerta quando fala da importância do conhecimento da língua original para se fazer uma boa exegese. Quanto a isto, juntamente com Haroldo de Campos, costumo dizer que “A tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica. Logo, a tradução dos textos bíblicos têm a sua importância, mesmo nas línguas que já possuam uma ou mais versões deles”.

                Até agora, temos algumas coisas que devam ser levadas em conta. A abertura ao novo que se toma ao lançar mão de fazer a exegese. O fato de não sermos puros historicamente em relação ao que nos propomos estudar. Quanto a este ponto, não somente entra o histórico no geral, ou uma espécie de consciência coletiva, mas o sujeito mesmo. Acerca disso, Bultmann diz que a “compreensão histórica sempre pressupõe uma relação do intérprete com o objeto que se manifesta direta ou indiretamente nos textos”[15]. Essa relação do intérprete está na sua relação vivencial com o objeto e é nesse aspecto que não há possibilidade de isenção de premissas na exegese. “Esta compreensão” diz Bultmann “é que chamo de compreensão prévia”.[16]

                Há, desse modo, uma relação existencial com a história da qual o intérprete faz parte. A partir dessa relação, é impossível pensar numa estrutura sujeito-objeto no qual houvesse um olhar isento para o objeto, haja vista que temos previamente concepções que influenciarão relevantemente a interpretação. Diante da compreensão prévia, de sermos sujeitos históricos e carregarmos a mutabilidade dada a partir de nossa condição, Bultmann conclui que a “intuição histórica nunca é definitiva e concluída”[17].

                Para Bultmann, o “evento histórico faz parte do seu futuro”[18], ou seja, somente quando o evento acontece é que ele começa a ser compreendido, e quanto mais distância o intérprete toma do evento, maior é a compreensão de seu sentido. A esse respeito, mais a frente, Bultmann diz que “A compreensão de um texto nunca é definitiva, mas permanece aberta, porque em cada futuro o sentido da Escritura se manifesta de nova maneira”[19]. Porém, na compreensão de um texto, há informações que podem permanecer inalteradas, pelo menos em seu cerne, como foi e ainda é o caso da ressurreição de Cristo para os cristãos, que permanece a mesma mensagem, inalterada em seu maior significado, e à qual pouco se pode acrescentar.

Por fim, é preciso atentar para uma coisa. O mais duro golpe dado na tese bultmanniana de que é possível uma exegese sem premissas é desferido pelo próprio Bultmann! Paradoxalmente, como já disse, Bultmann, neste artigo o qual criticamos (Será possível a exegese livre de premissas?), admite ser e não ser possível uma exegese perfeita, sem mesclas ou inserções de subjetividades do hermeneuta; isto dependerá do próprio exegeta, se ele for preconceituoso ou não, tendencioso ou não, preso a sua religião ou não. Mas, enfim, o fato é que Bultmann, neste ensaio, admite ser possível, ao exegeta com “E” maiúsculo, alcançar a total imparcialidade. E é, aqui, que, talvez, é revelada a maior contradição deste autor, porque, em outro artigo, escrito em 1950 – O problema da Hermenêutica­ -, Rudolf Bultmann, influenciado pela hermenêutica fenomenológica de Heidegger, escreve dizendo que uma interpretação nunca está isenta de uma premissa. Esta está sempre orientada por um enfoque ou por um certo rumo configurado/estruturado naquilo que ele chama de “compreensão prévia” (BULTMANN, 2001, p. 288-92), como vimos. Nesta obra, para Bultmann, a interpretação é resultante da compreensão da “relação vital” compartilhada, em termos de experiência existencial, entre autor e intérprete de um mesmo assunto que se exprime em um texto específico (BULTMANN, 2001, p. 293). Nesse sentido, Bultmann (2001) diz que a exigência de uma atitude interpretativa isenta de elementos característicos da subjetividade engajada no mundo para se alcançar um conhecimento objetivo acerca de alguma realidade é absurda e inimaginável.

Ora, como é possível, em Será possível a exegese livre de premissas? (1957), Bultmann aceitar que, aos exegetas mais aperfeiçoados, é dado poder alcançar a interpretação perfeita, objetiva e imparcial e desocultar do texto a verdade, mas, n’O problema da Hermenêutica (1950), este mesmo Bultmann afirmar que a exigência de uma atitude interpretativa isenta de elementos característicos da subjetividade engajada no mundo para se alcançar um conhecimento objetivo acerca de alguma realidade é absurda e inimaginável? Teria, sete anos depois de ter escrevido O problema da Hermenêutica, Bultmann mudado de opinião? Lembremo-nos da resposta de Bultmann à pergunta Será possível a exegese livre de premissas? Por ele mesmo colocada:

“É preciso responder “sim” a esta pergunta se ”livre de premissas” significar: sem pressupor os resultados da exegese. Neste sentido, a exegese livre de premissas não é só possível, mas até constitui uma exigência. Em qualquer outro sentido, todavia, nenhuma exegese está livre de premissas, uma vez que o exegeta não é nenhuma tabula rasa (...)”

Agora, creio que esteja mais do que clara a profunda contradição, a profunda confusão na qual ele mesmo se lança. Para refutar Bultmann, não é sequer necessário recorrer a outros pensadores; seus próprios escritos se incumbem do serviço; suas próprias ideias se contrariam. Tirante o resto de sua obra e a brilhante capacidade especulativa que possuía, Bultmann não mereceria o status de um dos melhores teólogos do século XX.

Até aqui, já

a)    apresentamos o artigo de Bultmann – intitulado Será possível a exegese livre de premissas?,

b)    mostramos que tal autor acerta (quanto ao “não”) quando afirma a parcialidade de todo e qualquer falante/escritor/ouvinte/leitor de todo e qualquer texto, mas que erra, quando relega somente aos exegetas não-preconceituosos, a exclusividade de um trabalho hermenêutico isento de tendências, pois que tais exegetas, para Bultmann, conseguem evitar que suas cosmovisões e informações acabem penetrando e interferindo no texto e em sua interpretação,

c)    evidenciamos que, desta maneira, Bultmann comete dois erros, um teórico-lógico e outro teológico. Quanto ao primeiro, Bultmann comete uma paralaxe cognitiva (Olavo de Carvalho), na qual, ele, Bultmann, afirmando ser possível uma exegese sem premissas, descura do fato de que o exegeta (como ele), ao alvitrar para si o anseio de construir uma obra puramente objetiva, acaba impondo tal premissa ao seu labor exegético, o que, de algum modo, interfere naquela tão desejada imparcialidade. Quanto ao segundo erro, Bultmann infringe pelo menos três dos principais dogmas comuns a toda cristandade: a Divina Inspiração das Escrituras, a Dinvina Revelação de Deus e a Divina Iluminação do Espírito Santo. Tudo isto quando acusa Paulo, Mateus e João de não relatarem a verdade em seus textos, pois estariam apenas apresentando um enfoque incompleto e falseado pelas suas subjetividades. Ora, se assim fosse, não se poderia crer em uma só palavra deles. É claro que, enquanto sujeitos históricos e narrativos, tais apóstolos tinham suas subjetividades e as passavam para seus escritos, mas isto não quer dizer que a presença de tais subjetividades falseiam a verdade. Então, como que ao modus probandi, Bultmann, citando dois textos aparentemente contraditórios e não harmonizáveis, afirma não merecem total crédito os evangelhos de Mateus e João. Assim, Bultmann negligencia a doutrina da Divina Inspiração das Escrituras, colocando a verdade de tais textos sob suspeita e

d)    que, justamente por não haver em conta o papel do Espírito Santo na dinâmica do labor hermenêutico, Bultmann rejeita a genuína fé cristã, e, assim, rejeita Cristo, e, se rejeita Cristo, rejeita o único Deus; logo, Bultmann é um ateu, portanto não poderia sequer fazer teologia.

Agora, mantenhamos a devida cautela, pois os riscos que o exegeta bíblico cristão corre estão nas duas pontas da tarefa. Se, como vimos, a ausência de fé incapacita todo e qualquer exegeta da Bíblia de obter dela o mais completo aproveitamento, por outro, o excesso de confiança pode escamotear armadilhas sorrateiras. Ao considerarmos o ideal de objetividade e de neutralidade como valores científicos insustentáveis do ponto de vista da pesquisa/investigação científica (PIRES & OLIVEIRA, 2008), poderemos facilmente nos incorrer em alguns outros riscos: por exemplo, o de não apreendermos, por conta daquilo que Bachelard (1996) chama de “obstáculo epistemológico”, o verdadeiro significado/sentido provável tratado por um texto/realidade/linguagem justamente por acreditarmos que dele já sabemos o suficiente a ponto de não mais precisarmos aprender. É preciso manter a humildade e deixar o Espírito Santo nos auxiliar. Afinal, aquilo que pensamos saber, com frequência, nos impede de aprender o que ainda não sabemos perfeitamente (Claude Bernard). O “conhecimento real é a luz que sempre projeta algumas sombras” (BACHELARD, 1996, p. 17). Isto significa dizer que “diante do real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber” (BACHELARD, 1996, p. 18). Ao mesmo tempo, Nesse sentido, a atitude epistemológica exige um procedimento de desconstrução do “eu cogito” diante daquilo que aparentemente se julga conhecer suficientemente. Esta é a tese fundamental que aparece no epicentro da crítica de Bachelard, e, aqui, pagamos nosso tributo a ele. Neste sentido, a proposta bachelardiana se aproxima relativamente da atitude cartesiana frente ao ontologicamente determinado, freqüentemente assumido como um axioma ou como uma verdade absoluta. A dúvida metódica (instrumentalizada pelo “cogito ergo sum”) sugere uma reorganização psicopedagógica do conhecimento sensível do sujeito epistêmico (agora portador de uma razão inquiridora/instrumental) diante de tudo aquilo que é aceito com relativa ingenuidade racional para obter a clareza mediante o uso do cogito. Ressalve-se somente que, esta dúvida metódica deve servir apenas como instrumento epistemológico, e não como regra de vida, como aconteceu com Renè Descartes, ou seja, a fé na Palavra de Deus não precisa ser descartada quando se estiver usando a técnica do cogito ergo sum como instrumento metodológico.

Neste sentido, a proposta bachelardiana se aproxima relativamente da atitude cartesiana frente ao ontologicamente determinado, frequentemente assumido como um axioma ou como uma verdade absoluta. A dúvida metódica (instrumentalizada pelo “cogito ergo sum”) sugere uma reorganização psicopedagógica do conhecimento sensível do sujeito epistêmico (agora portador de uma razão inquiridora/instrumental) diante de tudo aquilo que é aceito com relativa ingenuidade racional para obter a clareza mediante o uso do cogito. Todavia entendamos que “ingenuidade racional” para Bachelard (e também para Bultmann) é também o acatamento irrefletido dos dogmas e doutrinas da Igreja Cristã. Portanto, adaptemos sua exposição ao contexto teológico, que não pode, jamais, abdicar da fé.

Num primeiro momento, a fé, na perspectiva cartesiana, é fé no cogito orientado por uma lógica matemática que torna possível a certeza com relação ao objeto referenciado pela razão intuitiva. De acordo com Bachelard, a “opinião” está sempre equivocada. Pois pensa mal à medida que traduz necessidades em conhecimento. Por esta razão, não se pode basear nada sobre ela (BACHELARD, 1996). E, aqui, novamente uma crítica a Bultmann. Se Bachelard estiver certo quando diz que toda opinião erra porque traduz necessidades de momento, então, como já vimos, Bultmann jamais poderá fazer uma exegese livre de premissas, pois, no momento em que a estiver fazendo, haverá, pelo menos, uma necessidade de momento: a de fazer uma exegese sem premissas; e, como dissemos, de alguma forma, o caráter peremptório desta necessidade “oprime” o exegeta coagindo-o ou pressionando-o a lastrar-se somente nisto, renegando totalmente a possibilidade de existir um texto que necessite de uma hermenêutica tipicamente espiritual. O espírito científico é muito mais esclarecível, do que esclarecedor; possui um instinto “formativo”, e não “conservativo” (BACHELARD, 1996, p. 19). É como peças de um quebra-cabeças ao modo de recortes de realidade; realidade esta que permanece sempre fragmentada. Assim também, há textos bíblicos que, se submetidos forem ao estudo desta ou daquela ciência, terão sua mensagem apresentada apenas em recortes limitados (como as peças do quebra-cabeças), porém, jamais, esta mensagem será plenamente decodificada/interpretada sem o auxílio do Espírito Santo.

Para Bachelard, todo conhecimento é fruto de uma resposta dada a uma pergunta feita, ou como sugere Unamuno (1996), como resposta à necessidade de sobrevivência do instinto de perpetuação no qual a pergunta feita emerge como problema. O obstáculo epistemológico se esconde no conhecimento não questionado. Infelizmente, porém, Bachelard admite que quando o espírito humano se apresenta à cultura científica, ele já não é tão jovem. Pois traz consigo toda a bagagem recebida ao longo de sua experiência da vivência cotidiana. Neste sentido, a idade de um espírito que se apresenta à cultura científica é a idade de seus preconceitos. (Grifo nosso) Ora, de acordo com Bachelard, as crises de crescimento do pensamento implicam uma reorganização total do sistema de saber, segundo o qual, toda cabeça bem feita deve necessariamente ser refeita (BACHELARD, 1996). Esta postura caracteriza a verdadeira condição do espírito humano frente ao totalmente inusitado, configurada naquilo que Boff (1998) chama de “humildade intelectual” num sentido geral, e “humildade teológica” no sentido estritamente acadêmico para a realidade de teólogos e teólogas. Santo Agostinho (apud BOFF, 1998), considerado como um dos maiores pensadores do Ocidente cristão (assim como Barth), não se envergonha de rever criticamente seus 232 livros em suas Retractationes. Mas para o educador, de acordo com Bachelard, este senso de humildade pode se encontrar praticamente invalidado, razão pela qual ele (o educador) dificilmente terá um senso de fracasso. O educador se vê invariavelmente como mestre, e não como aprendiz; como sujeito epistêmico maduro,e não como uma espécie de mutante intelectual como é exigido pela cultura científica (BACHELARD, 1996). No entanto, o espírito científico é um eterno itinerante, haja vista que o discurso científico será sempre um discurso de circunstância. (Grifo nosso) Num outro trabalho, Bachelard (1994) diz que todo pensamento científico deve mudar perante uma experiência nova. Esta flexibilidade psico-interpretativa do sujeito epistêmico só é possível porque a jovialidade, caracterizada pela abertura do espírito científico, não é superada pela letargia anestésica da maturidade improdutiva de sujeitos epistemologicamente envelhecidos. Bachelard (1996) chega fazer menção à fala de um epistemólogo irreverente que dizia serem úteis à ciência somente homens e mulheres na primeira metade de suas vidas, pois na outra, seriam extremamente nocivos (BACHELARD, 1996).

Dessarte, com Bachelard, podemos afirmar que os hagiógrafos bíblicos tinham sim um discurso de circunstância, dado que, enquanto sujeitos históricos, estavam circunscritos numa dada dinâmica de tempo e cultura, obedecendo ao Zeitgeist ora palestino, ora romano, ora grego, ora cristão, ora dois ou mais destes simultaneamente. Mas a produção textual destes mesmos escritores não se limita àquilo que tem procedência somente para a época de escritura dos textos. E, nisto, se engana Rudolf Bultmann quando afirma que não merecem confiança os textos de João e Mateus porque expõe tão-só a cosmovisão afetada e limitada destes mesmos autores. Segundo a Sacra Teologia, porém, os textos escriturísticos possuem o que podemos chamar de metassignificado espiritual, isto é, as mensagens veiculadas nestes textos dirigiam-se a um dado público alvo epocal, mas também à posteridade, ou seja, ao fim e ao cabo, aos futuros leitores cristãos (nós).

Não obstante tais pontos de dessemelhança com Bultmann, a doutrina de Bachelard guarda ainda alguns aspectos corroborantes. Com Bachelard, aprendemos que a atitude hermeneuticamente correta é aquela que traz a pergunta antes de incorporar quaisquer pressupostos, sejam eles de ordem hermenêutico-filosóficos, sejam eles oriundos da experiência comum. Esta pergunta sugere muito mais a ingenuidade de um espírito que ainda não sabe (e por isso pergunta para aprender algo novo, e nisso consiste o “conhecimento científico” para Bachelard), do que a perspicácia de quem pergunta para cristalizar a diferença epistemológica estabelecida no diálogo intersubjetivo. Todavia, vale insistir, este ensinamento bachelardiano não pode se aplicar totalmente ao texto bíblico, pois, como vimos, não daria conta de explicar a camada de mistério que jaz na Bíblia e que somente a Divina Revelação é capaz de interpretar. A atitude objetiva do espírito científico é neutra à medida que ela assume a inocência de uma consensual convicção de que o conhecimento humano é fragmentário e estruturalmente microdimensionado (portanto, essencialmente limitado), contendo em si deficiências constitutivas, podendo, desta forma, perceber a verdade somente de muito longe. A pedagogia de ruptura incide sobre e no sujeito epistêmico na medida em que ele elege um novo método de apreensão de uma verdade ainda desconhecida para romper com o convencionado conhecimento habitual (BACHELARD, 1994). Há, portanto, uma irrefutável relação entre método e verdade que pode não só determinar o curso do empreendimento epistemológico, como também os resultados a serem obtidos pelo mesmo. Por conta disto, Bachelard acaba condenado o método cartesiano de ser redutivo, e não indutivo. Pois este não só falsea o resultado da análise, como também entrava o desenvolvimento extensivo do pensamento objetivo (BACHELARD, 1994). De acordo com Bachelard (1994, p. 97), a “perenidade” de métodos, infelizmente (por melhores que sejam), torna o pensamento científico absolutamente infecundo e a nova verdade inalcançável, além do que eles acabam inviabilizando a macrocompreensão desta última. Numa de suas citações aparece a seguinte asserção: “uma verdade demonstrada mantém-se constantemente apoiada não na sua própria evidência, mas em sua demonstração” (BACHELARD, 1994, p. 97).

O conflito configurado na atitude hermenêutica revela uma aporia de difícil superação epistemológica. A psicologia da pertença ontológico histórica revelada na “relação existencial” estabelecida entre sujeito interpretante e coisa interpretada (configurada na estrutura daquilo que Bultmann compreende por “premissa”), acaba se constituindo, por um lado, em recurso hermenêutico de “compreensão da própria história” (BULTMANN, 2001, p. 368), figurada na relação sujeito epistêmico/interpretante e a “coisa do texto” (usando a terminologia de Ricoeur) e, por outro, e simultaneamente, em obstáculo epistemológico à luz da proposta de orientação bachelardiana que vimos até agora. Neste sentido, longe de se falar de neutralidade epistemológica da postura hermenêutica de um interpretante, o que se pressupõe a partir da proposta hermenêutica bultmanniana acaba se convertendo em engenharia da “congenialidade”[20] (identificação entre sujeito interpretante e a intenção subjetiva da coisa interpretada construída e configurada no ato interpretativo). Ou seja, em Bachelard, tem Bultmann um correligionário e um opositor ao mesmo tempo.

As premissas de um exegeta são, para Bultmann, uma forma de conhecer o entendimento que o exegeta tem do fato, mas não o fato mesmo. Sobre isto Ricoeur (apud HELENO, 2001, p. 182) “enfatiza a noção de pertença e o facto (sic) de aquele que interroga fazer parte da própria coisa sobre a qual interroga”.

A questão que se levanta neste instante é que o que para Bultmann se constitui fato hermenêutico significativo de irrefutável valor cognitivo-epistemológico (a pré-compreensão), para Bachelard constitui preconceito/obstáculo que inviabiliza a perfeita compreensão da coisa a ser conhecida.[21] O autêntico espírito científico se revela na atitude de desconstrução não somente de um tu-cognoscível (texto/linguagem/realidade), mas também e, sobretudo, de um preconceituoso eu-cogito interpretante. É a partir deste axioma hermenêutico que o distanciamento tornar-se-á modus operandi daquilo que Ricoeur (1989, p. 137) chama de “hermenêutica da apropriação” da coisa/realidade interpretada (ou “coisa do texto”). A postura interpretativa de um sujeito interpretante deve se configurar como aquiescente “submissão cognitiva” diante de uma realidade nova a ser revelada como verdade desejada. Em termos hermenêutico-teológicos, o diálogo entre o intérprete e o texto/realidade interpretada pressupõe uma condição prévia: a “atitude de fé” (GEFFRÉ, 2005, p. 35), que na lógica de uma engenharia cognitiva, significa assumir a condição de um “inveterado aprendiz”, como nos sugeriu Bachelard (1996). A objetividade intencionada pela correta postura hermenêutica acaba constrangendo o sujeito cognoscente/interpretante a assumir, do ponto de vista da percepção cognitiva, sua finidade gnosiológica figurada na gramática da ‘humildade intelectiva’ (tapeinophrôsýne) frente a uma sempre ‘nova verdade/realidade’ (cognoscível) a ser revelada (apokalyfthênai) de maneira processual. A verdade, muitas vezes, é-nos revelada através de um processo temporal – como ocorre amiúde nas Escrituras. Por esta razão, ela (a verdade) é considerada, stricto sensu, um fenômeno hermeneuticamente inexaurível em sua ontologia. Em teologia, de acordo com Geffré (2005, p. 39), “a manifestação da verdade é sempre manifestação do devir” (herança de Heráclito), e compete, ao sujeito interpretante, resignar-se diante da imponderabilidade deste fato hermenêutico. A cada nova descoberta se instaura sempre uma nova releitura (que compõe cada camada interpretativa do processo hermenêutico)[22], que desembocará, outrossim, em uma nova necessidade cognitiva. Esta circularidade hermenêutico-cognoscitiva produz no sujeito interpretante a necessidade de se entregar à descoberta de uma sempre nova verdade, de maneira completamente infantil (no sentido bachelardiano). E, nisto, confirma-se a condição de objetividade interpretativa da postura hermenêutica frente a uma realidade/verdade a ser conhecida e interpretada, mas que não descura ou olvida da Divina Iluminação do Espírito Santo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FONTES BIBLIOGRÁFICAS E VIRTUAIS

 

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BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

BOFF, C. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.

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DESCARTES, R. Discurso do método. Lisboa: Edições 70, 1992.

GADAMER, H.-G. Verdade e Método II: complementos e índices. Petrópolis: Vozes, 2002.

GEFFRÉ, C. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004.

HELENO, J. M. M. Hermenêutica e ontologia em Paul Ricoeur. Lisboa. Instituto Piaget, 2001. (Coleção Pensamento e Filosofia).

LAMBERT, D. Ciências e teologia: figuras de um diálogo. São Paulo: Loyola, 2002.

PIRES, Anderson Clayton & OLIVEIRA, Cláudio Ivan de. A hermenêutica da compreensão: uma reflexão sobre o sentido aletológico da intellectus fidei. In: Fragmentos de cultura. Vol. 18, nº 5. IFITEG/PUC-GO/SGC. 2008. ISSN 1983-7828. Págs. 655-678.

RICOEUR, P. El lenguaje de la fé. Buenos Aires: Megápolis, 1978.

RICOEUR, P. Do texto à ação. Porto-Portugal: RÉS, 1989.

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UNAMUNO, M. de. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: M. Fontes, 1996.

http://www.olavodecarvalho.org/index.html. Página consultada em 14/02/2015.



https://padrepauloricardo.org/. Página consultada em 14/02/2015.



[1] Ensaio válido como avaliação pela disciplina de Exegese 2 , sob a orientação do Prof. Dr. Esdras Costa Bentho, na Faculdade Evangélica da Convenção geral das Assembleias de Deus (FAECAD).
[2] Alan Francisco de Souza Lemos é professor de línguas portuguesa e grega e respectivas literaturas e bacharelando em Teologia.
[3] BULTMANN, R. K. Será possível a exegese livre de premissas? In: BULTMANN, Rudolf Karl. Crer e Compreender. Artigos Selecionados. Editados por Walter Altmann. São Leopoldo RS: Sinodal, 1987, pp. 223-229.
[4] Bultmann, p. 223.
[5] Bultmann, p. 223.
[6] Bultmann, p. 224.
[7] Bultmann, p. 224.
[8] Aqui, Bultmann comete o que Olavo de Carvalho chamaria de paralaxe cognitiva, que consiste no fato de o proponente de uma tese não conseguir sustentá-la em seus próprios modus vivendi­ e modus agendi. No caso de Bultmann, ele afirma que os exegetas imparciais podem fazer uma exegese imparcial, mas, ao mesmo tempo, ele, que é exegeta, bem como os demais exegetas, estão todos limitados pelas características subjetivas da personalidade e pelo contexto temporal e cultural de sua época.
[9] PANNENBERG, W. Teoria de la ciencia y teologia. Madrid: Livros Europa, 1981.
[10] Bultmann, p. 225.
[11] A verdade, como realidade psico-cognitivamente alvejada de primeira grandeza, é a mais nobre tarefa empreendida pela “atitude interpretativa” (Mesters). O termo grego alethéia, como foi exposto magistralmente por M. Heidegger em sua hermenêutica fenomenológica, significa ‘desocultação’ ou desvelamento. Isto implica dizer que ela (a verdade) precisa ser arrebatada do lugar em que se encontra ocultada através do discurso/linguagem (lógos). Rudolf Karl Bultmann foi discípulo de Martin Heidegger.
[12] Esta é a sintomática conclusão a que se chega da proposta metodológica da filosofia cartesiana do cogito ergo sum. Para melhor esclarecimento, cf. Descartes (1992).
[13] Cf. o primeiro capítulo de Tillich (1980).
[14] Conceito utilizado na teoria da epistemologia teológica que significa “sujeito portador da fé” (GEFFRÉ,2004).
[15] Bultmann, p. 226.
[16] Bultmann, p. 226.
[17] Bultmann, p. 227.
[18] Bultmann, p. 227.
[19] Bultmann, p. 228.
[20] Este é um conceito de uso sistemático na teoria hermenêutica de Schleiermacher que significa identificação
compreensiva entre um interpretante e a (intenção) do interpretado.
[21] Porém, como vimos, Bultmann é contraditório, pois, em algumas de suas pesagens (já estudadas por nós aqui), Bultmann parece concordar com Bachelard quanto à dificuldade imposta pela parcialidade do escritos ao seu texto.
[22] Sobre esta discussão, Croatto (1984) propõe o conceito de eisegese como conceito mais apropriado para se falar de processo hermenêutico.

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