Marcus Meneghetti
MARCELO G. RIBEIRO/JC
Teólogo, que sofreu processo da Santa Sé, diz que atual pontificado é a expressão latino-americana
Leonardo Boff nasceu em Concórdia (SC) em 14 de dezembro de 1938, em uma família de descendentes italianos, para os quais a fé católica tinha grande importância no cotidiano. Sua formação começou em 1964, quando se tornou sacerdote da Ordem dos Frades Menores, da congregação franciscana. Em 1970, doutorou-se em Teologia e Filosofia, pela Universidade de Munique, onde conviveu com o cardeal Joseph Ratzinger (depois Papa Bento XVI).
Boff ficou conhecido por difundir no Brasil a Teologia da Libertação, cuja proposta principal é reinterpretar o Evangelho, tendo como perspectiva a intervenção sobre os problemas sociais modernos, como a concentração de terras e de renda. Essas ideias foram sistematizadas no livro Igreja: Carisma e Poder, publicado em 1981, o que rendeu ao teólogo (na época, sacerdote franciscano) um processo por parte do Vaticano. A ameaça de um novo processo o fez renunciar às atividades eclesiásticas, levando-o a estudar a relação entre teologia e outras áreas do conhecimento, como ecologia e neurologia. Atualmente, o teólogo, que já publicou mais de 60 livros, leciona na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Nesta entrevista, Boff fala sobre diversidade de credos, a posição da Igreja Católica em relação aos relacionamentos homoafetivos e a evolução das religiões no Brasil. Faz, ainda, uma avaliação da atuação do Papa Francisco, que, segundo suas próprias palavras, é um revolucionário.
Jornal do Comércio - Como as pessoas lidam com a espiritualidade hoje?
Leonardo Boff - A dimensão espiritual da vida está coberta de cinzas por este apelo materialista, consumista, o que se revela através do individualismo, da indiferença e da insensibilidade. Acredito que hoje somos reféns da “ditadura da razão”. Evidentemente, precisamos da razão para organizar a vida. Mas estamos vivendo em um mundo onde se propaga a ideia de que só existe a racionalidade, que considera que a razão emotiva prejudica o conhecimento. Entretanto, a cultura ocidental hegemônica ignora as coisas do espírito, o invisível, o mistério, os valores. É um excesso de racionalidade instrumental, materialismo, consumismo. Embora o ser humano tenha fome disso, ele também necessita de outras coisas ligadas à espiritualidade. Por isso, está havendo uma volta das religiões e dos caminhos espirituais. A psicologia também tem feito um trabalho nesse sentido, porque, quando você vai a um psicanalista, não diz o que pensa sobre o seu pai e sua mãe, você diz o que você sente em relação a eles. Enfim, tudo isso está abrindo novamente as janelas do espírito. O próprio Papa (Francisco) chamou a atenção para isso, na missa de Lampedusa, quando criticou aqueles que perderam a capacidade de chorar diante da injustiça, da desgraça.
JC - Que avaliação o senhor faz do Papa Francisco?
Boff - O Papa Francisco está restituindo o rosto humano da Igreja, está cobrando uma nova postura dos católicos. Somos herdeiros de dois pontificados que viam a Igreja como um castelo fechado que lutava contra a modernidade. Este Papa está dizendo que a Igreja é uma casa aberta: quem está dentro sai e quem está fora entra; não tem nenhum guarda para cobrar pedágio, não importa se a pessoa está moralmente abalada, se está casada, se crê ou não crê nos dogmas... Ele diz que, se é pessoa humana, tem que ser acolhida. Isso é revolucionário. Ele volta ao cristianismo das origens. E é justamente esse cristianismo que atrai as pessoas, porque é humano. A maior revolução dele não foi fazer a reforma da cúria, foi fazer a reforma do papado. Normalmente, o papado já tem um figurino pronto e, se você é eleito, entra no figurino, tornando-se um símbolo de poder, chefe de Estado... Mas o Papa Francisco obrigou o papado a assumir o figurino dele: um Papa que mora na casa de hóspedes e que come na fila do refeitório. Ele não se autointitula Papa, chama a si mesmo de bispo de Roma, e diz que ele e todos os padres têm que estar no meio do povo. É um Papa que não quer o poder e não se sente chefe de Estado. Também não quer governar de forma monárquica, quer fazê-lo com um grupo de cardeais. Insinuou inclusive que vai incluir mulheres na tomada de decisões da Igreja. Isso é absolutamente inédito. Talvez, só um Papa do fim do mundo, e não da velha cristandade europeia, tivesse coragem de dizer essas coisas. Este Papa é a expressão latino-americana do cristianismo. Então, a importância dele não é só religiosa, é fundamentalmente política.
JC - Quando o Papa veio ao Brasil, ele disse que não cabia a ele julgar os relacionamentos homossexuais. Qual a sua interpretação sobre essa fala?
Boff - Ele disse que, se eles se amam, vamos respeitar. No fundo, se existe amor, e não há por que negar, é coisa de Deus. Afinal, como está escrito no Novo Testamento, em São João, “Deus é amor”. Então, temos que respeitar e não julgar. Além disso, precisamos entender que, nas sociedades pluralistas, é possível, não digo o casamento jurídico, que é canônico, mas o convívio estável, que tenha fidelidade entre ambos, e que coloque isso diante de Deus. Acho que a gente tem que estar aberto a acolher várias formas de coabitação, que não só aquela forma clássica da família tradicional. Quando há encontro, quando há amor, quando decidem viver juntos, não há motivos para não aceitarmos.
JC - É possível traçar um perfil religioso dos fiéis do Rio Grande do Sul?
Boff - Aqui há uma grande pluralidade religiosa, inclusive de religiões afrodescendentes. E, claro, há o catolicismo popular de origem europeia, que está nos descendentes de italianos, alemães, poloneses, voltado muito aos santos, às procissões, aos santuários, e que ajudou a criar um ethos familiar de trabalho, de seriedade, de amor à própria terra. Creio que o Rio Grande do Sul também seja uma sociedade aberta ao diálogo entre as religiões.
JC - Existem políticas públicas que garantam a diversidade religiosa?
Boff - O Estado é laico, o que significa que ele é imparcial com relação às religiões. Ele tem que aceitar todas, desde que se situem dentro do marco legal. O Estado não pode privilegiar nem proibir nenhuma. Ele tem que garantir que até o ateu tenha o direito de manifestar suas posições. E o Estado tem que não só tolerar as religiões, mas também enxergá-las como fontes de valores, como solidariedade, sinceridade... Todas as religiões criam valores.
JC - Muitas escolas têm a disciplina de Ensino Religioso no currículo. Como o senhor enxerga a relação entre educação e religião?
Boff - Normalmente, o Ensino Religioso é focado no catolicismo. Antes, deveria ser uma iniciação à espiritualidade, à meditação, aos caminhos de transcendência. Ou então, uma forma de diálogo com representantes das várias formas religiosas. O ideal para mim seria que as escolas trabalhassem com a espiritualidade das crianças, que ensinassem a enxergar a dimensão espiritual da vida, que as colocassem em contato com o sagrado. É importante apresentar às crianças questões relacionadas à espiritualidade, mas que estão além da religião, como a origem da vida, do universo, nossa responsabilidade nesse mundo. Isso seria um fator de auto-humanismo e autoconhecimento. Há quadros muito competentes nas universidades que podem ajudar a trabalhar a consciência, a inteligência espiritual e a emocional.
JC - Quase todas as religiões no Brasil são importadas. Hoje, existe alguma religião expressiva genuinamente brasileira?
Boff - Cada povo tem que fazer um diálogo com as religiões e incorporar elementos novos. De fato, no Brasil, quase todas as religiões são importadas da Europa: Igreja Católica, Luterana etc. Mas estão surgindo religiões tipicamente brasileiras. Duas para mim são bastante significativas: o Santo Daime e a Umbanda. Os antropólogos afirmam que, quando uma cultura chega a sua maturidade, elas criam uma aura espiritual, sua religião, sua arte, sua literatura. O fato de surgirem essas religiões significa que a nossa cultura está ficando complexa e madura.
Fonte: http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=157392