"Sim, cremos: O Credo comentado pelos Padres da Igreja" (2)
«Trabalhoso é o tempo da fé. Quem o pode negar? É trabalhoso, mas este é o trabalho que corresponde àquela recompensa. Não queiras ser preguiçoso no trabalho, do qual desejas receber a recompensa» (Santo Agostinho).
A Universidade Católica Editora lança esta sexta-feira, em Lisboa, a obra "Sim, cremos: O Credo comentado pelos Padres da Igreja", de Isidro Pereira Lamelas, especialista em Patrologia e professor da Faculdade de Teologia, livro de que já adiantamos um excerto, em pré-publicação (ver "Artigos relacionados", no fim deste texto).
«Este livro é claramente uma ajuda preciosa para os estudantes de teologia. Mas não só. Quantos se interessam por uma compreensão minimamente profunda do cristianismo encontram aqui muito do que procuram», sublinha José Tolentino Mendonça, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e professor de disciplinas bíblicas.
Sobre este estudo, a historiadora Ângela Barreto Xavier lembra que «a tradição intelectual da patrística foi fundamental para a constituição cultural da Europa, alimentando as reflexões sobre a política, a sociedade e o sujeito».
«Com o seu contributo para alicerçar aquilo em que o Povo de Deus acreditava, a partir da sua experiência cristã, os Padres da Igreja imprimiram uma marca incontornável nas várias histórias do pensamento que enriqueceram o tesouro da civilidade ocidental», assinala o politólogo João Carlos Espada.
Continuamos a apresentação de extratos do volume que vai ser apresentado por José Eduardo Borges de Pinho, professor catedrático da Faculdade de Teologia, às 17h00, na Universidade Católica (edifício da Biblioteca, 2.º piso, Sala de Exposições).
Agostinho, Sermão 19, 5: O valor da fé
«Quereis saber qual é o valor da vossa fé? Cristo morreu por ela. Sendo assim, porque é que procuras a recompensa terrena, apegado como estás ao ouro e ao dinheiro? É um insulto que fazes à fé, pela qual Cristo morreu. “Mas como é – perguntará alguém – quanto é que ela vale?”. Presta atenção àquele que diz: Que é que eu tenho no céu? De facto, ele não concretiza o que é que haverá no céu. Mas diz assim: Que é que eu exigi de ti nesta terra? (Sl 72, 25). Louvando o que há no céu e rejeitando o que há na terra, ele acabou por responder a ambas as perguntas. O que é que há no céu? O que os olhos não veem (Is 64, 4). Que é que há na terra? O que os olhos dos fiéis não querem ver. O que é que há no céu? Aquilo que o Lázaro coberto de chagas pôde encontrar. O que é que há na terra? O que o rico avarento possuía (Cf. Lc 16, 22). Que é que há no céu? Aquilo que não pode perecer. O que é que há na terra? O que não pode perdurar. Que é que há no céu? Ausência de sofrimento. Que é que há na terra? O medo constante. Que é que eu tenho no céu? O quê? Aquele que fez o céu. O valor da tua fé é o teu Deus. Tê-lo-ás a Ele. Ele dispõe-se a ser Ele próprio a recompensa para os que lhe prestam culto. Considerai, irmãos caríssimos, todas as criaturas: o céu, a terra, o mar, o que está no céu, na terra e no mar. Como tudo é belo, como tudo é admirável, como tudo está disposto digna e ordenadamente! Impressiona-vos estas coisas? Com certeza que impressionam. Porquê? Porque são belas. Quem é que as fez? Creio que ficaríeis embasbacados, se vísseis a beleza dos anjos. Quem é, pois, o criador dos anjos? É aquele que é a recompensa da vossa fé. Ó avaros, com que é que vos haveis de saciar, se o próprio Deus vos não sacia?».
Afraates, Demonstração da fé, 16-17: A força da fé
«Todos os justos, nossos pais, triunfaram em tudo o que fizeram por meio da fé, conforme o atesta a respeito de todos o Apóstolo: Prosperaram por meio da fé (Hb 11,33) […]. E o nosso Vivificador a todos os que se aproximavam dele para ser curados falava deste modo: faça-se segundo a tua fé. Quando se aproximou o cego, Jesus disse-lhe: Acreditas que eu te posso curar? E o cego respondeu: Sim, meu Senhor, eu creio (Mt 9,28); e a sua fé abriu-lhe os olhos. Àquele cujo filho estava doente, Jesus disse: acredita, e teu filho viverá. E ele respondeu-lhe: Eu creio, meu Senhor, ajuda a minha pouca fé (Mc 9,23-24). E graças à sua fé o seu filho foi curado. De modo semelhante o servo do rei, quando se aproximou de Jesus, devido à sua fé viu curado o seu criado, depois de ter dito a nosso Senhor: Diz uma palavra e o meu servo ficará curado (Mt 8,8). E nosso Senhor ficou admirado com a sua fé, e segundo a sua fé deu-se a cura. Assim também o chefe da sinagoga, quando intercedeu a favor da sua filha, Jesus respondeu deste modo: Crê somente, e a tua filha viverá (Lc 8,50); e ele acreditou e a sua filha recuperou a vida e levantou-se. E quando Lázaro morreu, nosso Senhor disse a Marta: Se acreditares o teu irmão ressuscitará (Jo 11,23). Marta respondeu-lhe: Sim, meu Senhor, eu creio (Jo 11,27). E Jesus ressuscitou Lázaro depois de quatro dias no túmulo.
Da mesma forma Simão foi chamado Pedra, por causa da sua fé foi chamado Pedra verdadeira. Além disso, quando o nosso Senhor confiou aos seus apóstolos o sacramento do batismo, disse-lhes: quem acreditar e for batizado viverá; mas quem não acreditar será condenado (Mc 16,16). Disse ainda aos seus discípulos: se acreditardes e não duvidardes nada há que não possais fazer (cf. Mt 21,21). Na verdade, quando nosso Senhor caminhou sobre as ondas do mar, também Simão, graças à sua fé, caminhou com Ele; mas quando duvidou na sua fé, começou a afundar-se e nosso Senhor chamou-o fraco de fé (Mt 14,31). E quando os apóstolos o interpelaram, não fizeram outro pedido senão este: Aumenta em nós a fé (Lc 17,5); e Ele respondeu-lhes: Se tiverdes fé, até movereis montanhas da vossa presença (Mt 17,20; 21,21)…».
Agostinho, Sermão 88, 2-3: Felizes nós que hoje acreditamos sem ver
«Desta maneira, irmãos, que ninguém diga que Nosso Senhor Jesus Cristo não realiza agora estas coisas e que, por causa disso, Ele dá mais importância aos primeiros tempos da Igreja do que aos tempos presentes. Na realidade, num determinado lugar da Escritura, o mesmo Senhor dá mais importância aos que não vêm e mesmo assim creem, do que àqueles que vêm e que, por isso, creem (cf. Jo 20, 29). Com efeito, de tal maneira a enfermidade dos seus discípulos se evidenciava, que eles julgavam que tinham de tocar aquele que viam já ressuscitado, para acreditarem. Não era suficiente aos olhos o que viam, senão que também as mãos se aproximavam dos membros do corpo e as cicatrizes das chagas mais recentes eram tocadas. E isto foi de tal forma que aquele discípulo que duvidava, de repente, depois de tocadas e reconhecidas as cicatrizes, exclama: Meu Senhor e meu Deus! (Jo 20, 28). As cicatrizes mostravam aquele que tinha curado todas as feridas aos outros. Acaso não poderia o Senhor ressuscitar sem cicatrizes? Mas Ele sabia das feridas que estavam no coração dos discípulos e, com o intuito de as curar, quisera conservar as cicatrizes no seu corpo. E que disse o Senhor àquele que já confessava e dizia meu senhor e meu Deus? Disse: Porque me viste, acreditaste. Felizes os que acreditam sem terem visto (Jo 20, 28-29). A quem se referiu, irmãos, senão a nós? Não só a nós, mas também aos que vierem depois de nós. Com efeito, depois de um pequeno espaço de tempo, logo que ele se afastou dos olhos mortais, para firmar a fé nos corações, todos os que acreditaram, acreditaram sem ver e grande mérito teve a fé destes. Para alcançar essa fé, eles somente aproximaram o coração piedoso, sem que fosse necessária a mão que toca.
Por conseguinte, o Senhor fez isto, para estimular à fé. Mas esta fé fervilha agora na Igreja, difundida por toda a terra [...]».
Agostinho, Sermão 38, 3-5: O tempo da fé
«Por isso, Deus quer que se acredite nele por causa daqueles bens que Ele dará só aos bons e por causa daqueles males que Ele dará apenas aos maus, porque no fim ambas as coisas aparecerão. Com efeito, qual é a recompensa da fé, ou que nome é que realmente a fé pode ter, se tu queres ver agora o que hás de possuir? Ora tu não deves ver o que crês, mas crer naquilo que hás de ver. Deves crer durante o tempo em que não vês para não seres confundido, quando tiveres oportunidade de ver. Portanto, nós cremos, enquanto estamos no tempo da fé, antes que venha o tempo da visão clara. É assim que o Apóstolo fala: Enquanto estamos neste corpo, peregrinamos longe do Senhor, caminhamos à luz da fé (2Cor 5, 6). Portanto é à luz da fé, na medida em que cremos naquilo que não vemos, que alcançaremos a visão clara, quando o virmos face a face, tal como Ele é. O Apóstolo João, na sua epístola, distingue o tempo da fé e o tempo da visão clara, dizendo: Caríssimos, agora somos filhos de Deus e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Este é o tempo da fé. Vede o tempo da visão clara. Sabemos que – continua ele – quando se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é (1Jo 3, 2).
Trabalhoso é o tempo da fé. Quem o pode negar? É trabalhoso, mas este é o trabalho que corresponde àquela recompensa. Não queiras ser preguiçoso no trabalho, do qual desejas receber a recompensa [...].
Acreditemos em Deus, irmãos. Este é o primeiro preceito, este é o começo da nossa religião e da nossa vida: teres o coração firme na fé e, firmando o teu coração na fé».
Agostinho, Sermão 4, 1: Caminhar na esperança, progredindo na fé
«O Senhor prometeu o Paráclito, o Espírito da verdade (cf. Jo 15, 26; 16, 13). E, tal como o prometeu, também o enviou, para que todo aquele que recebe o Espírito não seja mais servo dos desejos temporais, mas, tornando-se senhor do corpo e servo do Criador, saiba orientar-se pelo caminho dos preceitos de Deus. Que os seus passos não hesitem, nem os seus olhos se perturbem, mas progrida no crescimento da fé, para que alcance aquilo que agora nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem o coração do homem percebeu (1Cor 2, 9). Acredita-se nessa realidade, antes de se ver, para que, quando se alcançar, não seja confundido aquele que acreditou. É isto que deve entender aquele que caminha na esperança, aquele que espera o que ainda não possui, aquele que crê no que ainda não vê e que ama Aquele junto de quem ainda não está. Porém, a exercitação da alma na fé, esperança e caridade, torna-o digno de receber aquilo que há de vir».
Agostinho Sermão 22A, 4: Caminhar como peregrinos pela fé e esperança
«Por conseguinte, é algo de diferente que Deus tem reservado para nós. E é por causa disso que Ele deve ser adorado e amado. O que Ele tem reservado para aqueles que o amam é Ele mesmo. É a sua face que Ele quer revelar aos que são puros não dos olhos da carne, mas dos olhos do coração: Felizes os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5, 8). Ama, para que possas ver, pois não é desprezível, nem insignificante aquilo que hás de ver. Hás de ver Aquele que fez tudo o que amas. E se essas coisas são belas, como é que o não hás de ser Aquele que as fez? Deus não quer que ames a terra, nem o céu, ou seja, Ele não quer que ames as coisas que vês, mas quer que o ames a Ele, a quem não vês. Mas não há de ser para sempre que o não vês, se o não desprezares sempre. Ama-o, enquanto está ausente, para que possas desfrutar da sua presença. Deseja aquele que hás de possuir e a quem hás de abraçar. Primeiro, une-te a Ele pela fé, e depois unir-te-ás a Ele pela visão clara. Com efeito, agora, caminhas como peregrino pela fé e pela esperança. Quando chegares à meta, desfrutarás daquele que amaste, quando eras peregrino. Foi Ele que fundou a pátria aonde deves ter pressa de chegar. Dali, Ele enviou-te cartas, para não adiares o regresso da peregrinação. Portanto, se te diriges para aquela pátria, onde hás de desfrutar do fundador dela, deves acautelar-te do inimigo, pois agora estás no deserto no meio de muitas tentações».
In Sim, cremos: O Credo comentado pelos Padres da Igreja, ed. Universidade Católica Editora
23.11.13