PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA
A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA IGREJA
ÍNDICE
A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo
interesse e provoca importantes discussões. Elas adquiriram dimensões novas
nestes últimos anos. Dado à importância fundamental da Bíblia para a fé cristã,
para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras
religiões, a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se pronunciar a esse
respeito.
A. Problemática atual
O problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna como algumas
vezes se quer fazer crer. A Bíblia mesma atesta que sua interpretação apresenta
dificuldades. Ao lado de textos límpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo
certos oráculos de Jeremias, Daniel se interrogava longamente sobre o sentido
deles (Dn 9,2). Segundo os Atos dos Apóstolos, um etíope do primeiro século
encontrava-se na mesma situação a propósito de uma passagem do livro de Isaías (Is
53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intérprete (At 8,30-35). A segunda
carta de Pedro declara que « nenhuma profecia da Escritura resulta de uma
interpretação particular » (2 Pd 1,20) e ela observa, de outro lado, que as
cartas do apóstolo Paulo contêm « alguns pontos difíceis de entender, que os
ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para sua
própria perdição » (2 Pd 3,16).
O problema é, portanto, antigo mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo:
doravante, para encontrar os fatos e palavras de que fala a Bíblia, os leitores
devem voltar a quase vinte ou trinta séculos atrás, o que não deixa de levantar
dificuldades. De outro lado, as questões de interpretação tornaram-se mais
complexas nos tempos modernos devido aos progressos feitos pelas ciências humanas.
Métodos científicos foram aperfeiçoados no estudo do textos da antiguidade. Em
que proporção esses métodos podem ser considerados apropriados à interpretação
da Sagrada Escritura? A esta questão a prudência pastoral da Igreja durante
muita tempo respondeu de maneira muito reticente, pois muitas vezes o métodos,
apesar de seus elementos positivos, encontravam-se liga dos a opções opostas à
fé cristã. Mas uma evolução positiva se produziu, marcada por uma série de
documentos pontifícios, desde encíclica Providentissimus Deus de Leão XIII (18
novembro 1893 até a encíclica
Divino afflante Spiritu de Pio XII (30 setembro
1943), e ela foi confirmada pela declaração Sancta Mater Ecclesie (21 abril
1964) da Pontifícia Comissão Bíblica e sobretudo pele Constituição Dogmática
Dei Verbum
do Concilio Vaticano II (18 novembro 1965).
A fecundidade desta atitude construtiva
manifestou-se de uma maneira inegável. Os estudos bíblicos tiveram um progresso
notável na Igreja católica e o valor científico deles foi cada vez mais
reconhecido no mundo dos estudiosos e entre os fiéis. O diálogo ecumênico foi
consideravelmente facilitado. A influência da Bíblia sobre a teologia se
aprofundou e contribuiu à renovação teológica. O interesse pela Bíblia aumentou
entre os católicos e favoreceu o progresso da vida cristã. Todos aqueles que
adquiriram uma formação séria nesse campo estimam doravante impossível retornar
a um estado de interpretação pré-crítica, pois o julgam, com razão, claramente
insuficiente.
Mas, ao mesmo tempo em que o método científico mais
divulgado — o método « histórico-crítico » — é praticado correntemente em
exegese, inclusive na exegese católica, ele mesmo encontra-se em discussão: de
um lado, no próprio mundo científico, pela aparição de outros métodos e
abordagens, e, de outro lado, pelas críticas de numerosos cristãos que o julgam
deficiente do ponto de vista da fé. Particularmente atento, como seu nome o
indica, à evolução histórica dos textos ou das
tradições através do tempo — ou diacronia — o método histórico-crítico
encontra-se atualmente em concorrência, em alguns ambientes, com métodos que
insistem na compreensão sincrônica dos textos, tratando-se da língua, da
composição, da trama narrativa ou do esforço de persuasão deles. Além disso, o
cuidado que os métodos diacrônicos têm em reconstituir o passado, para muitos é
substituído pela tendência de interrogar os textos colocando-os em perspectivas
do tempo presente, seja de ordem filosófica, psicanalítica, sociológica,
política, etc. Esse pluralismo de métodos e abordagens é apreciado por alguns
como um indício de riqueza, mas a outros ele dá a impressão de uma grande
confusão.
Real ou aparente, essa confusão
traz novos argumentos aos adversários da exegese científica. O conflito das
interpretações manifesta, segundo eles, que não se ganha nada submetendo os
textos bíblicos às exigências dos métodos científicos, mas, ao contrário,
perde-se bastante. Eles sublinham que a exegese científica obtém como resultado
o provocar perplexidade e dúvida sobre inumeráveis pontos que, até então, eram
admitidos pacificamente; que ele força alguns exegetas a tomar posições
contrárias à fé da Igreja sobre questões de grande importância, como a concepção
virginal de Jesus e seus milagres, e até mesmo sua ressurreição e sua divindade.
Mesmo quando não finaliza em tais negações, a exegese científica se caracteriza,
segundo eles, pela sua esterilidade no que concerne o progresso da vida cristã.
Ao invés de permitir um acesso mais fácil e mais seguro às fontes vivas da
Palavra de Deus, ela faz da Bíblia um livro fechado, cuja interpretação sempre
problemática exige técnicas refinadas fazendo dela um domínio reservado a
alguns especialistas. A estes, alguns aplicam a frase do Evangelho: « Tomastes
a chave da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam
entrar! » (Lc 11,52; cf Mt 23,13).
Em consequência, ao
paciente labor
do exegeta científico estima-se necessário substituir abordagens mais
simples,
como uma ou outra prática de leitura sincrônica que se considera como
suficiente, ou mesmo, renunciando a todo estudo, preconiza-se uma
leitura da Bíblia
dita « espiritual », entendendo-se pela expressão uma leitura unicamente
guiada
pela inspiração pessoal subjetiva e destinada a alimentar esta
inspiração.
Alguns procuram na Bíblia sobretudo o Cristo da visão pessoal deles e a
satisfação da religiosidade espontânea que têm. Outros pretendem
encontrar nela
respostas diretas a toda sorte de questões, pessoais ou coletivas.
Numerosas são
as seitas que propõem como única verdadeira uma interpretação da qual
elas
afirmam terem tido a revelação.
B. O objetivo deste documento
Há de se considerar seriamente,
portanto, os diversos aspectos da situação atual em matéria de interpretação
bíblica, de esta atento às críticas, às queixas e às aspirações que se exprimem
a esse respeito, de apreciar as possibilidades abertas pelos novos métodos e
abordagens e de procurar, enfim, precisar a orientação que melhor corresponde à
missão do exegeta na Igreja católica.
Esta é a finalidade deste
documento. A Pontifícia Comissão Bíblica deseja indicar os caminhos que convém
tomar para chegar a uma interpretação da Bíblia que seja tão fiel quanto
possível a seu caráter ao mesmo tempo humano e divino. Ela não pretende tomar aqui
posição sobre todas as questões que são feitas a respeito da Bíblia, como por
exemplo, a teologia da inspiração. O que ela quer é examinar os métodos suscetíveis de
contribuírem com eficácia a valorizar todas as riquezas contidas
nos textos bíblicos, a fim de que a Palavra de Deus possa tornar-se sempre mais
o alimento espiritual dos membros de seu povo, a fonte para eles de uma vida de
fé, de esperança e de amor, assim como uma luz para toda a humanidade (cf
Dei Verbum, 21).
Para alcançar este fim, o presente
documento:
1. fará uma breve descrição dos
diversos métodos e abordagens, (1) indicando suas possibilidades e seus limites;
2. examinará algumas questões de
hermenêutica;
3. proporá uma reflexão sobre as
dimensões características da interpretação católica da Bíblia e sobre suas
relações com as outras disciplinas teológicas;
4. considerará, enfim, o lugar que
ocupa a interpretação da Bíblia na vida da Igreja.
A. Método histórico-crítico
O método histórico-crítico é o
método indispensável para o estudo científico do sentido dos textos antigos.
Como a Santa Escritura, enquanto « Palavra de Deus em linguagem humana », foi
composta por autores humanos em todas as suas partes e todas as suas fontes, sua
justa compreensão não só admite como legítimo, mas pede a utilização deste
método.
1. História do método
Para apreciar corretamente este
método em seu estado atual, convém dar uma olhada em sua história. Certos
elementos deste método de interpretação são muito antigos. Eles foram utilizados
na antiguidade por comentadores gregos da literatura clássica e, mais tarde,
durante o período patrístico, por autores como Orígenes, Jerônimo e Agostinho. O
método era, então, menos elaborado. Suas formas modernas são o resultado de
aperfeiçoamentos, trazidos sobretudo desde os humanistas da Renascença e o
recursus ad fontes deles. Enquanto que a crítica textual do Novo Testamento só
pôde se desenvolver como disciplina científica a partir de 1800, depois que se
desligou do Textus receptus, os primórdios da crítica literária remontam ao
século XVII, com a obra de Richard Simon, que chamou a atenção sobre as
repetições, as divergências no conteúdo e as diferenças de estilo observáveis no
Pentatêuco, constatações dificilmente conciliáveis com a atribuição de todo o
texto a um autor único, Moisés. No século XVIII, Jean Astruc contentou-se ainda
em dar como explicação que Moisés tinha se servido de várias fontes (sobretudo
de duas fontes principais) para compor o Livro do Gênesis, mas, em seguida, a
crítica contesta cada vez mais resolutamente a atribuição da composição do
Pentatêuco a Moisés. A crítica literária identificou-se muito tempo com um
esforço para discernir diversas fontes nos textos. É assim que se desenvolveu,
no século XIX, a hipótese dos « documentos », que procura explicar a redação do
Pentatêuco. Quatro documentos, em parte paralelos entre si, mas provenientes de
épocas diferentes, teriam sido incorporados: o yahvista (J), o elohista (E), o
deuteronomista (D) e o sacerdotal (P: do alemão « Priester »); é deste último
que o redator final teria se servido para estruturar o conjunto. De maneira
análoga, para explicar ao mesmo tempo as convergências e as divergências
constatadas entre os três Evangelhos sinóticos, recorreram à hipótese das « duas
fontes », segundo a qual os Evangelhos de Mateus e o de Lucas teriam sido
compostos a partir de duas fontes principais: o Evangelho de Marcos de um lado
e, de outro lado, uma compilação das palavras de Jesus (chamada Q, do alemão «
Quelle », «fonte »). Essencialmente estas duas hipóteses são ainda aceitas
atualmente na exegese científica, mas elas são objeto de contestações.
No desejo de estabelecer a
cronologia dos textos bíblicos, esse gênero de crítica literária se limitava a
um trabalho de cortes e de decomposição para distinguir as diversas fontes e não
dava uma atenção suficiente à estrutura final do texto bíblico e à mensagem que
ele exprime em seu estado atual (mostrava-se pouca estima pela obra dos
redatores). Dessa maneira a exegese histórico-crítica podia aparecer como
fragmentária e destrutora, ainda mais que certos exegetas sob a influência da
história comparada das religiões, tal como ela se praticava então, ou partindo
de concepções filosóficas, emitiam contra a Bíblia julgamentos negativos.
Hermann Gunkel fez o método
sair do
gueto da crítica literária entendida desta maneira. Se bem tenha
continuado a
considerar os livros do Pentatêuco como compilações, ele aplicou sua
atenção à
textura particular das diferentes partes. Ele procurou definir o gênero
de cada
uma (por exemplo, « legenda » ou « hino ») e seu ambiente de origem ou «
Sitz im
Lebem » ( por exemplo, situação jurídica, liturgia, etc.). A esta
pesquisa dos
gêneros literários assemelha-se o « estudo crítico das formas » («
Formgeschichte ») inaugurada na exegese dos sinóticos por Martin
Dibelius e Rudolf
Bultmann. Este último misturou aos estudos de « Formgeschichte » uma
hermenêutica bíblica inspirada na filosofia existencialista de Martin
Heidegger.
Em consequência, a Formgeschichte suscitou muitas vezes sérias reservas.
Mas
este método, em si mesmo, teve como resultado a declaração de que a
tradição
néo-testamentária obteve sua origem e tomou sua forma na comunidade
cristã, ou
Igreja primitiva, passando da pregação do próprio Jesus à predigação que
proclama que Jesus é o Cristo. « Formgeschichte » aliou-se a «
Redaktionsgeschichte », « estudo crítico da redação ». Esta última
procura
colocar em evidência a contribuição pessoal de cada evangelista e as
orientações
teológicas que guiaram o trabalho de redação deles. Com a utilização
deste
último método, a série das diferentes etapas do método histórico-crítico
tornou-se mais completa: da crítica textual passa-se a uma crítica
literária que
decompõe (pesquisa das fontes), depois a um estudo crítico das formas,
enfim a
uma análise da redação, que é atenta ao texto em sua composição. Desta
maneira
tornou-se possível uma compreensão mais clara da intenção dos autores e
redatores da Bíblia, assim como da mensagem que eles dirigiram aos
primeiros
destinatários. O método histórico-crítico adquiriu então uma importância
de
primeiro plano.
2. Princípios
Os princípios fundamentais do
método histórico-crítico em sua forma clássica são os seguintes:
E um método histórico, não só
porque ele se aplica a textos antigos — no caso, aqueles da Bíblia — e estuda
seu alcance histórico, mas também e sobretudo porque ele procura elucidar os
processos históricos de produção dos textos bíblicos, processos diacrônicos
algumas vezes complicados e de longa duração. Em suas diferentes etapas de
produção, os textos da Bíblia são dirigidos a diversas categorias de ouvintes
ou de leitores, que se encontravam em situações de tempo e de espaço diferentes.
É um método crítico, porque ele
opera com a ajuda de critérios científicos tão objetivos quanto possíveis em
cada uma de suas etapas (da crítica textual ao estudo crítico da redação), de
maneira a tornar acessível ao leitor moderno o sentido dos textos bíblicos,
muitas vezes difícil de perceber.
Método analítico, ele estuda o
texto bíblico da mesma maneira que qualquer outro texto da antiguidade e o
comenta enquanto linguagem humana. Entretanto, ele permite ao exegeta, sobretudo
no estudo crítico da redação dos textos, perceber melhor o conteúdo da revelação
divina.
3. Descrição
No estágio atual de seu
desenvolvimento, o método histórico-crítico percorre as seguintes etapas:
A crítica textual, praticada há
muito mais tempo, abre a série das operações científicas. Baseando-se no
testemunho dos mais antigos e melhores manuscritos, assim como dos papiros, das
traduções antigas e da patrística, ela procura, segundo regras determinadas,
estabelecer um texto bíblico que seja tão próximo quanto possível ao texto
original.
O texto é em seguida submetido a
uma análise linguística (morfologia e sintaxe) e semântica, que utiliza os
conhecimentos obtidos graças aos estudos de filologia histórica. A crítica
literária esforça-se então em discernir o início e o fim das unidades textuais,
grandes e pequenas, e em verificar a coerência interna dos textos. A existência
de repetições, de divergências inconciliáveis e de outros indícios, manifesta o
caráter compósito de certos textos. Estes então são divididos em pequenas
unidades, das quais estuda-se a dependência possível a diversas fontes. A
crítica dos gêneros procura determinar os gêneros literários, ambiente de
origem, traços específicos e evolução desses textos. A crítica das tradições
situa os textos em correntes de tradição, das quais ela procura determinar a
evolução no decorrer da história. Enfim, a crítica da redação estuda as
modificações que os textos sofreram antes de terem um estado final fixado,
esforçando-se em discernir as orientações que lhes são próprias. Enquanto as
etapas precedentes procuraram explicar o texto pela sua gênese, em uma
perspectiva diacrônica, esta última etapa termina com um estudo sincrônico:
explica-se aqui o texto em si, graças às relações mútuas de seus diversos
elementos e considerando-o sob seu aspecto de mensagem comunicada pelo autor a
seus contemporâneos. A função pragmática do texto pode então ser levada em
consideração.
Quando os textos estudados
pertencem a um gênero literário histórico ou estão em relação com acontecimentos
da história, a crítica histórica completa a crítica literária para determinar
seu alcance histórico, no sentido moderno da expressão.
É desta maneira que são colocadas
em evidência as diferentes etapas do desenrolar concreto da revelação bíblica.
4. Avaliação
Que valor dar ao método
histórico-crítico, em particular no estágio atual de sua evolução?
É um método que, utilizado de
maneira objetiva, não implica em si nenhum a priori: Se sua utilização é
acompanhada de tais a priori, isto não é devido ao método em si mas a opiniões hermenêuticas que orientam a interpretação e podem ser tendenciosas.
Orientado, em seu início, como
crítica das fontes e da história das religiões, o método obteve como resultado a
abertura de um novo acesso à Bíblia, mostrando que ela é uma coleção de escritos
que, muitas vezes, sobretudo para o Antigo Testamento, não têm um autor único,
mas tiveram uma longa pré-história inextricavelmente ligada à história de Israel
ou àquela da Igreja primitiva. Precedentemente, a interpretação judaica ou
cristã da Bíblia não tinha uma consciência clara das condições históricas
concretas e diversas nas quais a Palavra de Deus se enraizou. Ela tinha disto um
conhecimento global e longínquo. O confronto da exegese tradicional com uma
abordagem científica que em seu início fazia conscientemente abstração da fé e
algumas vezes mesmo se opunha a ela, foi seguramente dolorosa; depois, no
entanto, ela se revelou salutar: uma vez que o método foi liberado dos
preconceitos extrínsecos, ele conduziu a uma compreensão mais exata da verdade
da Santa Escritura (cf
Dei Verbum,
12). Segundo a
Divino afflante Spiritu, a
procura do sentido literal da Escritura é uma tarefa essencial da exegese e,
para cumprir esta tarefa, é necessário determinar o gênero literário dos textos
(cf E.B., 560), o que se realiza com a ajuda do método histórico-crítico.
Com certeza o uso clássico do
método histórico-crítico manifesta limites, pois ele se restringe à procura do
sentido do texto bíblico nas circunstâncias históricas de sua produção e não se
interessa pelas outras potencialidades de sentido que se manifestaram no
decorrer das épocas posteriores da revelação bíblica e da história da Igreja. No
entanto, esse método contribuiu à produção de obras de exegese e de teologia
bíblica de grande valor.
Renunciou-se há muito tempo a um
amálgama do método com um sistema filosófico. Recentemente uma tendência
exegética orientou o método insistindo predominantemente sobre a forma do texto,
com menor atenção ao seu conteúdo, mas esta tendência foi corrigida graças à
contribuição de uma semântica diferenciada (semântica das palavras, das frases,
do texto) e ao estudo do aspecto pragmático dos textos.
A respeito da inclusão no método,
de uma análise sincrônica dos textos, deve-se reconhecer que se trata de uma
operação legítima, pois é o texto em seu estado final, e não uma redação
anterior, que é expressão da Palavra de Deus. Mas o estudo diacrônico continua
indispensável para o discernimento do dinamismo histórico que anima a Santa
Escritura e para manifestar sua rica complexidade: por exemplo, o código da
Aliança (Ex 21,23) reflete um estado político, social e religioso da sociedade
israelita diferente daquele que refletem as outras legislações conservadas no
Deuteronómio (Dt 12,26) e no Levítico (código de santidade, Lv 17-26). À
tendência de reduzir tudo ao aspecto histórico, que se pôde repreender na antiga
exegese histórico-crítica, seria o caso que não sucedesse o excesso inverso: o
de um esquecimento da história, por parte de uma exegese exclusivamente
sincrônica.
Em definitivo, o objetivo do método
histórico-crítico é de colocar em evidência, de maneira sobretudo diacrônica, o
sentido expresso pelos autores e redatores. Com a ajuda de outros métodos e
abordagens, ele abre ao leitor moderno o acesso ao significado do texto da
Bíblia, tal como o temos.
B. Novos métodos de análise
literária
Nenhum método científico para o
estudo da Bíblia está à altura de corresponder à riqueza total dos textos
bíblicos. Qualquer que seja sua validade, o método histórico-crítico não pode
pretender ser suficiente a tudo. Ele deixa forçosamente obscuros numerosos
aspectos dos escritos que estuda. Que não seja surpresa a constatação de que
atualmente outros métodos e abordagens são propostos para aprofundar um ou outro
aspecto digno de atenção.
Neste parágrafo B apresentaremos
alguns métodos de análise literária que se desenvolveram recentemente. Nos
parágrafos seguintes (C, D, E) examinaremos brevemente diversas abordagens, das
quais algumas estão em relação com o estudo da tradição, outras com as «
ciências humanas », outras ainda com situações ' contemporâneas particulares.
Consideramos enfim (F) a leitura fundamentalista da Bíblia, que recusa todo
esforço metódico de interpretação.
Aproveitando os progressos
realizados em nossa época pelos estudos lingüísticos e literários, a exegese
bíblica utiliza cada vez mais métodos novos de análise literária, em particular
a análise retórica, a análise narrativa e a análise semiótica.
1. Análise retórica
Na realidade, a análise retórica
não é em si um método novo. O que é novo, de um lado, é sua utilização
sistemática para a interpretação da Bíblia e, de outro lado, o nascimento e o
desenvolvimento de uma « nova retórica ».
A retórica é a arte de compor
discursos persuasivos. Pelo fato de que todos os textos bíblicos são em algum
grau textos persuasivos, um certo conhecimento da retórica faz parte do
instrumental normal dos exegetas. A análise retórica deve ser conduzida de
maneira crítica, pois a exegese científica é um trabalho que se submete
necessariamente às exigências do espírito crítico.
Muitos estudos bíblicos recentes
deram uma grande atenção à presença da retórica na Escritura. Podemos distinguir
três abordagens diferentes. A primeira se baseia na retórica clássica
greco-latina; a segunda é atenta aos procedimentos semíticos de composição; a
terceira inspira-se nas pesquisas modernas que chamamos « nova retórica ».
Toda situação de discurso comporta
a presença de três elementos: o orador (ou o autor), o discurso (ou o texto) e
o auditório (ou os destinatários). A retórica clássica distingue, consequentemente, três fatores de persuasão que contribuem à qualidade de um
discurso: a autoridade do orador, a argumentação do discurso e as emoções que
ele suscita no auditório. A diversidade de situações e de auditórios influencia
imensamente a maneira de falar. A retórica clássica, desde Aristóteles, admite a
distinção de três gêneros de eloqüência: o gênero judiciário (diante dos
tribunais), o deliberativo (nas assembléias políticas), o demonstrativo (nas
celebrações).
Constatando a enorme influência da
retórica na cultura helenística, um número crescente de exegetas utiliza
tratados de retórica clássica para melhor analisar certos aspectos dos escritos
bíblicos, sobretudo daqueles do Novo Testamento.
Outros exegetas concentram a
atenção sobre os traços específicos da tradição literária bíblica. Enraizada na
cultura semítica, ela manifesta uma forte preferência pelas composições
simétricas, graças às quais as relações são estabelecidas entre os diversos
elementos do texto. O estudo das múltiplas formas de paralelismo e de outros
procedimentos semíticos de composição deve permitir um melhor discernimento da
estrutura literária dos textos e assim chegar a maior compreensão de sua
mensagem.
Tomando um ponto de vista mais
geral, a « nova retórica » quer ser algo mais que um inventário de figuras de
estilo, de artifícios oratórios e de espécies de discurso. Ela busca o porquê
tal uso específico da linguagem é eficaz e chega a comunicar uma convicção. Ela
se quer « realista », recusando de se limitar à simples análise formal. Ela dá à
situação de debate a atenção que lhe é devida. Ela estuda o estilo e a
composição enquanto meios de exercer uma ação sobre o auditório. Com esta
finalidade ela aproveita as contribuições recentes de disciplinas como a
lingüística, a semiótica, a antropologia e a sociologia.
Aplicada à Bíblia, a « nova
retórica » quer penetrar no coração da linguagem da revelação enquanto linguagem
religiosa persuasiva e medir seu impacto no contexto social da comunicação.
Porque elas trazem um enriquecimento ao estudo crítico dos textos, as análises
retóricas merecem muita estima, sobretudo em suas recentes pesquisas. Elas
reparam uma negligência que durou muito tempo e fazem descobrir ou colocam mais
em evidência perspectivas originais. A « nova retórica » tem razão de chamar a
atenção para a capacidade persuasiva e convincente da linguagem. A Bíblia não é
simplesmente enunciação de verdades. E uma mensagem dotada de uma função de
comunicação em um certo contexto, uma mensagem que comporta um dinamismo de
argumentação e uma estratégia retórica.
As análises retóricas têm, contudo,
seus limites. Quando elas se contentam em ser descritivas, seus resultados têm
muitas vezes um interesse unicamente estilístico. Fundamentalmente sincrônicas,
elas não podem pretender constituir um método independente que seja
autosuficiente. Sua aplicação aos textos bíblicos levanta mais de uma questão:
os autores destes textos pertenciam aos ambientes mais cultos? Até que ponto
eles seguiram as regras de retórica para compor seus escritos? Qual retórica é
mais pertinente para a análise de tal escrito determinado: a greco-latina ou a
semítica? Não se arrisca em atribuir a certos textos bíblicos uma estrutura
retórica elaborada demais? Estas questões — e outras — não devem dissuadir o
emprego deste tipo de análise; elas convidam a não recorrer a ele sem
discernimento.
2. Análise narrativa
A exegese narrativa propõe um
método de compreensão e de comunicação da mensagem bíblica que corresponde à
forma de relato e de testemunho, modalidade fundamental da comunicação entre
pessoas humanas, característica também da Santa Escritura. O Antigo Testamento,
efetivamente, apresenta uma história da salvação cujo relato eficaz torna-se
substância da profissão de fé, da liturgia e da catequese (cf Sal 78,3-4;
Ex
12,24-27; Dt 6,20-25; 26,5-11). De seu lado, a proclamação do querigma cristão
compreende a sequência narrativa da vida, da morte e da ressurreição de Jesus
Cristo, acontecimentos dos quais os Evangelhos nos oferecem um relato detalhado.
A catequese se apresenta, ela também, sob a forma narrativa (cf 1 Co 11,23-25).
A respeito da abordagem narrativa,
convém distinguir métodos de análise e reflexão teológica.
Numerosos métodos de análise são atualmente propostos. Alguns partem do estudo dos modelos narrativos antigos.
Outros se baseiam sobre um ou outro estudo atual da narrativa, que pode ter
pontos comuns com a semiótica. Particularmente atenta aos elementos do texto
que dizem respeito ao enredo, às características e ao ponto de vista tomado pelo
narrador, a análise narrativa estuda o jeito pelo qual a história é contada de
maneira a envolver o leitor no « mundo do relato » e seu sistema de valores.
Vários métodos introduzem uma
distinção entre « autor real » e « autor implícito », « leitor real » e « leitor
implícito ». O « autor real » é a pessoa que compôs o relato. Por « autor
implícito » é designada a imagem do autor que o texto produz progressivamente no
decorrer da leitura (com sua cultura, seu temperamento, suas tendências, sua fé,
etc.). Chama-se « leitor real » toda pessoa que tem acesso ao texto, desde os
primeiros destinatários que leram ou ouviram ler até os leitores ou ouvintes de
hoje. Por « leitor implícito » entende-se aquele que o texto pressupõe e produz,
aquele que é capaz de efetuar as operações mentais e afetivas exigidas para
entrar no mundo do relato e assim responder a ele da maneira visada pelo autor
real através do autor implícito.
Um texto continua a exercer sua
influência na medida em que os leitores reais (por exemplo, nós mesmos no fim do
século XX) podem se identificar com o leitor implícito. Uma das maiores tarefas
do exegeta é facilitar esta identificação.
À análise narrativa liga-se uma
nova maneira de apreciar o alcance dos textos. Enquanto o método
histórico-crítico considera antes de tudo o texto como uma « janela », que
permite algumas observações sobre uma ou outra época (não apenas sobre os fatos
narrados, mas também sobre a situação da comunidade para a qual eles foram
contados), sublinha-se que o texto funciona igualmente como um « espelho », no
sentido de que ele estabelece uma certa imagem do mundo — o « mundo do relato »
que exerce sua influência sobre a maneira de ver do leitor e o leva a adotar
certos valores invés que outros.
A este gênero de estudo,
tipicamente literário, associou-se a reflexão teológica, que levando em
consideração as consequências que a natureza de relato e de testemunho da Santa
Escritura representa para a adesão de fé, deduz disso uma hermenêutica de tipo
prático e pastoral. Reage-se desta maneira contra a redução do texto inspirado a
uma série de teses teológicas, formuladas muitas vezes segundo categorias e
linguagem não escriturísticas. Pede-se à exegese narrativa de reabilitar, em
contextos históricos novos, os modos de comunicação e de significado próprios ao
relato bíblico, afim de melhor abrir caminho à sua eficácia para a salvação.
Insiste-se na necessidade de « contar a salvação » (aspecto « informativo » do
relato) e de « contar em vista da salvação » (aspecto de « desempenho »). O
relato bíblico, efetivamente, contém — explicitamente ou implicitamente, segundo
o caso — um apelo existencial dirigido ao leitor.
Para a exegese da Bíblia, a análise
narrativa apresenta uma utilidade evidente, pois ela corresponde à natureza
narrativa de um grande número de textos bíblicos. Ela pode contribuir a tornar
fácil a passagem, muitas vezes sofrida, entre o sentido do texto em seu contexto
histórico — tal como o método histórico-crítico procura defini-lo — e o alcance
do texto para o leitor de hoje. Em contraposição, a distinção entre « autor real
» e « autor implicito » aumenta a complexidade dos problemas de interpretação.
Aplicando-se aos textos da Bíblia,
a análise narrativa não pode se contentar de colar sobre eles modelos
pré-estabelecidos. Ela deve ao contrário esforçar-se em corresponder à sua
especificidade. Sua abordagem sincrônica dos textos pede para ser completada por
estudos diacrônicos. Ela deve, de outro lado, evitar uma possível tendência a
excluir toda elaboração doutrinária dos dados que contêm os relatos da Bíblia.
Ela se encontraria, então, em desacordo com a própria tradição bíblica que
pratica esse gênero de elaboração, e com a tradição eclesial que continuou nesta
via. Convém, enfim, notar que não se pode considerar a eficácia existêncial
subjetiva da Palavra de Deus transmitida narrativamente, como um critério
suficiente da verdade de sua compreensão.
3. Análise semiótica
Entre os métodos chamados
sincrônicos, isto é, que se concentram sobre o estudo do texto bíblico tal como
ele se apresenta ao leitor em seu estado final, coloca-se a análise semiótica
que, há uns vinte anos, se desenvolveu bastante em certos meios. Primeiramente
chamado pelo termo geral de « estruturalismo », este método pode se propor como
descendente do lingüista suíço Ferdinand de Saussure que no início deste século
elaborou a teoria segundo a qual toda língua é um sistema de relações que
obedece regras determinadas. Vários lingüistas e literatos tiveram uma
influência marcante na evolução do método. A maior parte dos biblistas que
utilizam a semiótica para o estudo da Bíblia recorre a Algirdas J. Greimas e à
Escola de Paris, da qual ele é o fundador. Abordagens ou métodos análogos,
fundados sobre a Lingüística moderna, se desenvolvem em outros lugares. É o
método de Greimas que iremos apresentar e analisar brevemente.
A semiótica repousa sobre três
princípios ou pressupostos principais:
Princípio de imanência: cada texto
forma um conjunto de significados: a análise considera todo o texto, mas somente
o texto; ela não apela a dados « externos », tais como o autor, os
destinatários, os acontecimentos narrados, a história da redação.
Princípio de estrutura do sentido:
só há sentido através da relação e no interior dela, especialmente a relação de
diferença; a análise de um texto consiste assim em estabelecer a rede de
relações (de oposição, de homologação...) entre os elementos, a partir da qual o
sentido do texto se constrói.
Princípio da gramática do texto:
cada texto respeita uma gramática, isto é, um certo número de regras ou
estruturas; em um conjunto de frases, chamado discurso, há diferentes níveis,
tendo cada um a sua gramática.
O conteúdo global de um texto pode
ser analisado em três níveis diferentes:
O nível narrativo.
Estuda-se, no relato, as transformações que fazem passar do estado inicial ao
estado terminal. No interior de um percurso narrativo, a análise procura
retraçar as diversas fases, logicamente ligadas entre elas, que marcam a
transformação de um estado em um outro. Em cada uma destas fases, apuram-se as
relações entre os « papéis » exercidos por « atuantes » que determinam os
estados e produzem as transformações.
O nível discursivo. A
análise consiste em três operações: a) a identificação e a classificação das
figuras, isto é, dos elementos de significação de um texto (atores, tempos e
lugares); b) o estabelecimento dos percursos de cada figura em um texto para
determinar a maneira como esse texto o utiliza; c) a procura dos valores
temáticos das figuras. Esta última operação consiste em distinguir « em nome do
que » (= valor) as figuras seguem, nesse texto determinado, tal percurso.
O nível lógico-semântico. É
o nível chamado profundo. Ele é também o mais abstrato. Ele procede do postulado
que formas lógicas e significantes são subjacentes às organizações narrativas e
discursivas de todo discurso. A análise a esse nível consiste –em precisar a
lógica que gera as articulações fundamentais dos percursos narrativos e
figurativos de um texto. Para isto um instrumento é muitas vezes empregado,
chamado de « quadrado semiótico », figura utilizando as relações entre dois
termos « contrários » e dois termos « contraditórios » (por exemplo, branco e
negro; branco e não-branco; negro e não-negro).
Os teóricos do método semiótico não
cessam de apresentar desenvolvimentos novos. As pesquisas atuais se referem
notadamente a enunciação e à inter-textualidade. Aplicado primeiramente aos
textos narrativos da Escritura, que se prestam mais facilmente a isso, o método
é cada vez mais utilizado para outros tipos de discursos bíblicos.
A descrição dada pela semiótica, e
sobretudo o enunciado de seus pressupostos, já deixam perceber as contribuições
e os limites deste método. Estando mais atenta ao fato de que cada texto bíblico
é um todo coerente que obedece a mecanismos linguísticos precisos, a semiótica
contribui à nossa compreensão da Bíblia, Palavra de Deus expressa em linguagem
humana.
A semiótica pode ser utilizada para
o estudo da Bíblia apenas quando este método de análise é separado de certos
pressupostos desenvolvidos na filosofia estruturalista, isto é, a negação dos
sujeitos e da referência extra-textual. A Bíblia é a Palavra sobre o real, que
Deus pronunciou em uma história e que ele nos dirige hoje por intermédio de
autores humanos. A abordagem semiótica deve ser aberta à história: primeiramente
àquela dos atores dos textos, em seguida àquela de seus autores e de seus
leitores. O risco é grande, entre os utilizadores da análise semiótica, de
ficar em um estudo formal do conteúdo e de não liberar a mensagem dos textos.
Se ela não se perde nos mistérios
de uma linguagem complicada mas é ensinada em termos simples em seus elementos
principais, a análise semiótica pode dar aos cristãos o gosto de estudar o texto
bíblico e de descobrir algumas de suas dimensões de sentido; sem possuir todos
os conhecimentos históricos que se relacionam à produção do texto e a seu mundo
sócio-cultural. Ela pode assim mostrar-se útil na própria pastoral, para uma
certa apropriação da Escritura em ambientes não especializados.
C. Abordagens baseadas na Tradição
Mesmo que eles se diferenciem do
método histórico-crítico por uma atenção maior à unidade interna dos textos
estudados, os. métodos literários que acabamos de apresentar permanecem
insuficientes para a interpretação da Bíblia, pois eles consideram cada
escrito isoladamente. Ora, a Bíblia não se apresenta como um conjunto de textos
desprovidos de relações entre eles, mas como um composto de testemunhos de uma
mesma e grande Tradição. Para corresponder plenamente ao objeto de seu estudo, a
exegese bíblica deve levar em consideração este fato. Tal é a perspectiva
adotada por várias abordagens que se desenvolvem atualmente.
1. Abordagem canônica
Constatando
que o método histórico-crítico encontra algumas vezes dificuldades em alcançar o
nível teológico em suas conclusões, a abordagem « canônica », nascida nos
Estados Unidos há uns vinte anos, entende por bem conduzir uma tarefa teológica
de interpretação partindo do quadro especifico da fé: a Bíblia em seu conjunto.
Para fazê-lo, ela interpreta cada
texto bíblico à luz do Cânon das Escrituras, isto é, da Bíblia enquanto recebida
como norma de fé por uma comunidade de fiéis. Ela procura situar cada texto no
interior do único desígnio de Deus, com o objetivo de chegar a uma atualização
da Escritura para o nosso tempo. Ela não pretende substituir o método
histórico-crítico, mas deseja complementá-lo.
Dois pontos de vista diferentes
foram propostos: Brevard S. Childs centraliza seu interesse sobre a forma
canônica final do texto (livro ou coleção), forma aceita pela comunidade como
tendo autoridade para expressar sua fé e dirigir sua vida.
Mais do que sobre a
forma final e estabilizada do texto, James A. Sanders coloca sua atenção sobre o
« processo canônico » ou desenvolvimento progressivo das Escrituras às quais a
comunidade dos fiéis reconheceu uma autoridade normativa. O estudo crítico deste
processo examina como as antigas tradições foram reutilizadas em novos
contextos antes de constituir um todo ao mesmo tempo estável e adaptado,
coerente e fazendo união de dados divergentes, do qual a comunidade de fé tira
sua identidade. Procedimentos hermenêuticos foram acionados no decorrer desse
processo e o são ainda após a fixação do Cânon; eles são muitas vezes do gênero
do Midrashim, servindo para atualizar o texto bíblico Eles favorecem uma
constante interação entre a comunidade e sua Escrituras, fazendo apelo a uma
interpretação que visa torna contemporânea a tradição.
A abordagem canônica reage com
razão contra a valorização exagerada daquilo que é supostamente original e
primitivo, como se somente isso fosse autêntico. A Escritura inspirada é a
Escritura tal como a Igreja a reconheceu como regra de sua fé. Pode-se insistir
a esse respeito, seja sobre a forma final na qual se encontra atualmente cada um
dos livros, seja sobre o conjunto que eles constituem como Cânon. Um livro
torna-se bíblico somente à luz do Cânon inteiro.
A comunidade dos fiéis é
efetivamente o contexto adequado para a interpretação dos textos canônicos. A fé
e o Espírito Santo enriquecem a exegese; a autoridade eclesial, que se exerce a
serviço da comunidade, deve velar para que a interpretação permaneça fiel à
grande Tradição que produziu os textos (cf
Dei Verbum, 10).
A abordagem canônica encontra-se às
voltas com mais de um problema, sobretudo quando ela procura definir o «
processo canônico ». A partir de quando pode-se dizer que um texto é canônico?
Parece admissível dizer: desde que a comunidade atribui a um texto uma
autoridade normativa, mesmo antes da fixação definitiva desse texto. Pode-se
falar de uma hermenêutica « canônica » desde que a repetição das tradições, que
se efetua levando-se em conta os aspectos novos da situação (religiosa,
cultural, teológica), mantém a identidade da mensagem. Mas apresenta-se uma
questão: o processo de interpretação que conduziu à formação do Cânon deve ele
ser reconhecido como regra de interpretação da Escritura até nossos dias?
De outro lado, as relações
complexas entre o Cânon judaico das Escrituras e o Cânon cristão suscitam
numerosos problemas para a interpretação. A Igreja cristã recebeu como « Antigo
Testamento » os escritos que tinham autoridade na comunidade judaica helenística,
mas alguns deles estão ausentes da Bíblia hebraica ou se apresentam sob uma forma
diferente. O corpus é, então, diferente. Por isso a interpretação canônica não
pode ser idêntica, pois c, da texto deve ser lido em relação com o conjunto do
corpus. Ma sobretudo, a Igreja lê o Antigo Testamento à luz do acontecimento
pascal — morte e ressurreição de Cristo Jesus — que traz um radical novidade e
dá, com uma autoridade soberana, um sentido decisivo e definitivo às Escrituras
(cf
Dei Verbum, 4). Esta nova determinação de sentido faz parte integrante da fé
cristã. Ela não deve, portanto, tirar toda consistência à interpretação canônica
anterior, aquela que precedeu a Páscoa cristã, pois é preciso respeitar cada
etapa da história da salvação. Esvaziar da sus substância o Antigo Testamento
seria privar o Novo Testamento de sua raiz na história.
2. Abordagem com recurso às
tradições judaicas de interpretação
O Antigo Testamento tomou sua forma
final no judaísmo dos quatro ou cinco últimos séculos que precederam a era
cristã. Esse judaísmo foi também o ambiente de origem do Novo Testamento e da
Igreja nascente. Numerosos estudos de história judaica antiga e principalmente
as pesquisas suscitadas pelas descobertas de Qumrân colocaram em relevo a
complexidade do mundo judeu, em terra de Israel e na diáspora, ao longo deste
período.
É neste mundo que começou a
interpretação da Escritura. Um dos mais antigos testemunhos de interpretação
judaica da Bíblia é a tradução grega dos Setenta. Os Targumim aramaicos
constituem um outro testemunho do mesmo esforço, que continuou até nossos dias,
acumulando uma soma prodigiosa de procedimentos sábios Para a conservação do
texto do Antigo Testamento e para a explicação do sentido dos textos bíblicos.
Em todos os tempos, os melhores exegetas cristãos, desde Orígenes e são Jerônimo,
procuraram tirar proveito da erudição judaica para uma melhor inteligência da
Escritura. Numerosos exegetas modernos seguem esse exemplo.
As tradições judaicas antigas
permitem particularmente conhecer melhor a Bíblia judaica dos Setenta, que em
seguida tornou-se a primeira parte da Bíblia cristã durante pelo menos os quatro
primeiros séculos da Igreja, e no Oriente até nossos dias. A literatura judaica
extra-canônica, chamada apócrifa ou inter-testamentária, abundante e
diversificada, é uma fonte importante para a interpretação do Novo Testamento.
Os procedimentos variados de exegese praticados pelo judaísmo das diferentes
tendências reencontram-se no próprio Antigo Testamento, por exemplo nas Crônicas
em relação aos Livros dos Reis, e no Novo Testamento, por exemplo, em certos
raciocínios escriturísticos de são Paulo. A diversidade das formas (parábolas,
alegorias, antologia e florilégios, releituras, pesher, comparações entre textos
distantes, salmos e hinos, visões, revelações e sonhos, composições sapienciais)
é comum ao Antigo e ao Novo Testamento assim como à literatura de todos os
ambientes judaicos antes e após o tempo de Jesus. Os Targumim e os Midrashim
representam a homilética e a interpretação bíblica de grandes setores do
judaísmo dos primeiros séculos.
Além disso, numerosos exegetas do
Antigo Testamento pedem aos comentadores, gramáticos e lexicógrafos judeus
medievais e mais recentes, luzes para a inteligência de passagens obscuras ou de
palavras raras e únicas. Mais freqüentes que antigamente, aparecem hoje
referências a essas obras judaicas na discussão exegética.
A riqueza da erudição judaica
colocada a serviço da Bíblia, desde suas origens na antiguidade até nossos dias,
é uma ajuda muito valiosa para o exegeta dos dois Testamentos, à condição, no
entanto, de empregá-la com conhecimento de causa. O judaísmo antigo era de uma
grande diversidade. A forma farisaica, que prevaleceu em seguida no rabinismo,
não era a única. Os textos judeus antigos se escalonam por vários séculos; é
importante situá-los cronologicamente antes de fazer comparações. Sobretudo, o
quadro geral das comunidades judaicas e cristãs é fundamentalmente diferente: do
lado judeu, segundo formas muito variadas, trata-se de uma religião que define
um povo e uma prática de vida a partir de um escrito revelado e de uma tradição
oral, enquanto que do lado cristão é a fé ao Senhor Jesus, morto, ressuscitado
e doravante vivo, Messias e Filho de Deus, que reúne uma comunidade. Esses dois
pontos de partida criam, para a interpretação das Escrituras, dois contextos
que, apesar de muitos contatos e semelhanças, são radicalmente diferentes.
3. Abordagem através da história
dos efeitos do texto
Esta abordagem apóia-se sobre dois
princípios: a) um texto torna-se uma obra literária somente se ele encontra
leitores que lhe dão vida apropriando-se dele; b) essa apropriação do texto, que
pode se efetuar de maneira individual ou comunitária e toma forma em diferentes
domínios (literário, artístico, teológico, ascético e místico), contribui a
fazer compreender melhor o texto em si.
Sem ser totalmente desconhecida da
antiguidade, esta abordagem se desenvolveu entre 1960 e 1970 nos estudos
literários, logo que a crítica interessou-se pelas relações entre o texto e seus
leitores. A exegese bíblica só podia obter benefícios com esta pesquisa, ainda
mais que a hermenêutica filosófica afirmava por seu lado a necessária distância
entre a obra e seu autor, assim como entre a obra e seus leitores. Nesta
perspectiva, começou-se a fazer entrar no trabalho de interpretação a história
do efeito provocado por um livro ou uma passagem da Escritura («
Wirkungsgeschichte »). Esforça-se em medir a evolução da interpretação no
decorrer do tempo em função das preocupações dos leitores e em avaliar a
importância do papel da tradição para iluminar o sentido dos textos bíblicos.
Colocar-se em presença do texto e
de seus leitores suscita uma dinâmica, pois o texto exerce uma irradiação e
provoca reações. Ele faz ressoar um apelo, que é ouvido pelos leitores
individualmente ou em grupos. O leitor, aliás, não é nunca um sujeito isolado.
Ele pertence a um espaço social e se situa em uma tradição. Ele vem ao texto com
suas questões, opera uma seleção, propõe uma interpretação e, finalmente, ele
pode criar uma outra obra ou tomar iniciativas que se inspiram diretamente na
sua leitura da Escritura.
Os exemplos de uma tal abordagem já
são numerosos. A história da leitura do Cântico dos Cânticos oferece um
excelente testemunho disso; ela mostra como esse livro foi recebido na época dos
Padres da Igreja, no ambiente monástico latino da Idade Média ou ainda por um
místico como são João da Cruz; assim ele permite melhor descobrir todas as
dimensões do sentido deste escrito. Da mesma maneira no Novo Testamento é
possível e útil esclarecer o sentido de uma pericope (por exemplo, aquela do
jovem rico em Mt 19,16-26) mostrando sua fecundidade no curso da história da
Igreja.
Mas a história atesta também a
existência de correntes de interpretação tendenciosas e falsas, com efeitos
nefastos, levando, por exemplo, ao antisemitismo ou a outras discriminações
raciais ou ainda a ilusões milenaristas. Vê-se por isso que esta abordagem não
pode ser uma disciplina autônoma. Um discernimento é necessário. Deve-se evitar
o privilégio de um ou outro momento da história dos efeitos de um texto para
fazer dele a única regra de sua interpretação.
D. Abordagens através das ciências
humanas
Para se comunicar, a Palavra de
Deus se enraizou na vida de grupos humanos (cf Ecle 24,12) e ela traçou a si
mesma um caminho através dos condicionamentos psicológicos das diversas pessoas
que compuseram os escritos bíblicos. Resulta disso que as ciências humanas — em
particular a sociologia, a antropologia e a psicologia — podem contribuir a uma
compreensão melhor de certos aspectos dos textos. Convém, no entanto, notar que
existem várias escolas, com divergências notáveis sobre a própria natureza
dessas ciências. Dito isto, um bom número de exegetas tirou recentemente
proveito desse gênero de pesquisas.
1. Abordagem sociológica
Os textos religiosos estão unidos
por uma conexão de relação recíproca com as sociedades nas quais eles nascem.
Esta constatação vale evidentemente para os textos bíblicos. Consequentemente, o
estudo crítico da Bíblia necessita um conhecimento tão exato quanto possível dos
comportamentos sociais que caracterizam os diversos ambientes nos quais as
tradições bíblicas se formaram. Esse gênero de informação sócio-histórica deve
ser completado por uma explicação sociológica correta, que interprete
cientificamente, em cada caso, o alcance das condições sociais de existência.
Na história da exegese, o ponto de
vista sociológico encontrou seu lugar há muito tempo. A atenção que a «
Formgeschichte » deu ao ambiente de origem dos textos (« Sitz im Leben ») é um
testemunho disso: reconhece-se que as tradições bíblicas levam a marca dos
ambientes sócio-culturais que as transmitiram. No primeiro terço do século XX a
Escola de Chicago estudou a situação sócio-histórica da cristandade primitiva,
dando assim à crítica histórica um impulso apreciável nesta direção. Não
decorrer dos vinte últimos anos (1970-1990), a abordagem sociológica dos textos
bíblicos tornou-se parte integrante da exegese.
Numerosas são as questões feitas a
esse respeito à exegese do Antigo Testamento. Deve-se perguntar, por exemplo,
quais são as diversas formas de organização social e religiosa que Israel
conheceu no decorrer de sua história. Para o período anterior à formação de um
Estado, o modelo etnológico de uma sociedade acéfala segmentária forneceu uma
base de partida suficiente? Como se passou de uma liga de tribos, sem grande
coesão, a um Estado organizado em monarquia e, de lá, a uma comunidade baseada
simplesmente sobre as ligações religiosas e genealógicas? Quais transformações
econômicas, militares e outras foram provocadas na estrutura da sociedade pelo
movimento de centralização política e religiosa que conduziu à monarquia? O
estudo das normas de comportamento no Antigo Oriente e em Israel não contribui
com mais eficácia à inteligência do Decálogo do que as tentativas puramente
literárias de reconstrução de um texto primitivo?
Para a exegese do Novo Testamento,
as questões são evidentemente diferentes. Citemos algumas delas: para explicar
o gênero de vida adotado antes da Páscoa por Jesus e seus discípulos, qual valor
pode-se dar à teoria de um movimento de carismáticos itinerantes, vivendo sem
domicilio, nem família, nem bens? Foi mantida uma relação de continuidade,
baseada sobre o chamado de Jesus a segui-lo, entre a atitude de desprendimento
radical adotado por Jesus e aquela do movimento cristão após a Páscoa, nos mais
diversos ambientes da cristandade primitiva? O que sabemos da estrutura social
das comunidades paulinas, levando-se em conta, em cada caso, a cultura urbana
correspondente?
Geralmente a abordagem sociológica
dá uma abertura maior ao trabalho exegético e comporta muitos aspectos
positivos. O conhecimento dos dados sociológicos que contribuem a fazer
compreender o funcionamento econômico, cultural e religioso do mundo bíblico é
indispensável à crítica histórica. A tarefa da exegese, de bem compreender o
testemunho de fé da Igreja apostólica, não pode ser levada a termo de maneira
rigorosa sem uma pesquisa científica que estude os estreitos relacionamentos dos
textos do Novo Testamento com a vivência social da Igreja primitiva. A
utilização dos modelos fornecidos pela ciência sociológica assegura às pesquisas
dos historiadores das épocas bíblicas uma notável capacidade de renovação, mas é
preciso, naturalmente, que os modelos sejam modificados em função da realidade
estudada.
É o caso aqui de assinalar alguns
riscos que a abordagem sociológica faz correr a exegese. Efetivamente, se o
trabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades vivas, é previsível
encontrar algumas dificuldades logo que se quer aplicar seus métodos a ambientes
históricos que pertençam a um passado longínquo. Os textos bíblicos e
extra-bíblicos não fornecem forçosamente uma documentação suficiente para dar
uma visão de conjunto da sociedade da época. Aliás, o método sociológico tende a
dar mais atenção aos aspectos econômicos e institucionais da existência humana
do que às suas dimensões pessoais e religiosas.
2. Abordagem através da
antropologia cultural
A abordagem dos textos bíblicos que utiliza as pesquisas
de antropologia cultural está em ligação estreita com a abordagem sociológica. A
distinção dessas duas abordagens situa-se ao mesmo tempo a nível da
sensibilidade, do método e dos aspectos da realidade que retêm a atenção.
Enquanto que a abordagem sociológica — acabamos de dizê-lo — estuda sobretudo os
aspectos econômicos e institucionais, a abordagem antropológica interessa-se por
um vasto conjunto de outros aspectos que se refletem na linguagem, arte,
religião, mas também nos vestuários, ornamentos, festas, danças, mitos, lendas e
tudo o que concerne a etnografia.
Geralmente a antropologia cultural
procura definir as características dos diferentes tipos de homens no ambiente
social deles — como por exemplo, o homem mediterrânico — com tudo o que isso
implica de estudo do ambiente rural ou urbano e de atenção voltada aos valores
reconhecidos pela sociedade (honra e desonra, segredo, fidelidade, tradição,
gênero de educação e de escolas), à maneira pela qual se exerce o controle
social, às idéias que se tem da família, da casa, do parentesco, à situação da
mulher, dos binômios institucionais (patrão-cliente, proprietário-locatário,
benfeitor-beneficiário, homem livre-escravo), sem esquecer a concepção do
sagrado e do profano, os tabus, o ritual de passagem de uma situação a uma
outra, a magia, a origem dos recursos, do poder, da informação, etc.
Tendo-se por base esses diversos
elementos, constitui-se tipologias e « modelos » comuns a várias culturas.
Esse gênero de estudos pode
evidentemente ser útil para a interpretação dos textos bíblicos e ele é
efetivamente utilizado para o estudo das concepções de parentesco no Antigo
Testamento, a posição da mulher na sociedade israelita, a influência dos ritos
agrários, etc. Nos textos que relatam o ensinamento de Jesus, por exemplo as
parábolas, muitos detalhes podem ser esclarecidos graças a essa abordagem.
Ocorre o mesmo para as concepções fundamentais, como aquela do reino de Deus,
ou para a maneira de conceber o tempo na história da salvação, assim como para
os processos de aglutinação das comunidades primitivas. Esta abordagem permite
distinguir melhor os elementos permanentes da mensagem bíblica cujo fundamento
está na natureza humana, e as determinações contingentes segundo culturas
particulares. Todavia, não mais que outras abordagens particulares, esta não
está em si à altura de levar em conta as contribuições específicas da revelação.
Convém estar ciente disso no momento de apreciar o alcance de seus resultados.
3. Abordagens psicológicas e
psicanalíticas
Psicologia e teologia não cessaram
jamais de estar em diálogo uma com a outra. A extensão moderna das pesquisas
psicológicas ao estudo das estruturas dinâmicas do inconsciente suscitou novas
tentativas de interpretação dos textos antigos, e assim também da Bíblia. Obras
inteiras foram consagradas à interpretação psicanalítica de textos bíblicos.
Vivas discussões seguiram-nas: em qual medida e em quais condições as pesquisas
psicológicas e psicanalíticas podem contribuir para uma compreensão mais
profunda da Santa Escritura?
Os estudos de psicologia e de
psicanálise trazem à exegese bíblica um enriquecimento, pois, graças a eles os
textos da Bíblia podem ser melhor entendidos enquanto experiências de vida e
regras de comportamento. A religião, sabe-se, é sempre em uma situação de debate
com o inconsciente. Ela participa, em uma larga medida, à correta orientação das
pulsões humanas. As etapas que a crítica histórica percorre metodicamente
precisam ser complementadas por um estudo dos diversos níveis da realidade
expressa nos textos. A psicologia e a psicanálise
esforçam-se em avançar nesta direção. Elas abrem a via para uma compreensão
pluridimensional da Escritura, e elas ajudam a decifrar a linguagem humana da
revelação.
A psicologia e, de outra maneira, a psicanálise deram particularmente
uma nova compreensão do símbolo. A linguagem simbólica permite exprimir zonas da
experiência religiosa que não são acessíveis ao raciocínio puramente conceitual,
mas têm valor para a questão da verdade. É por isso que um estudo
interdisciplinar conduzido em comum por exegetas e psicólogos ou psicanalistas
apresenta vantagens certas, fundadas objetivamente e confirmadas na pastoral.
Numerosos exemplos podem ser
citados, que mostram a necessidade de um esforço comum dos exegetas e dos
psicólogos: para esclarecer o sentido dos ritos do culto, dos sacrifícios, dos
interditos, para explicar a linguagem cheia de imagens da Bíblia, o alcance
metafórico dos relatos de milagres, a força dramática das visões e audições
apocalípticas. Não se trata simplesmente de descrever a linguagem simbólica da
Bíblia, mas apreender sua função de revelação e de interpelação: a realidade «
luminosa » de Deus entra aqui em contato com o homem.
O diálogo entre exegese e
psicologia ou psicanálise em vista de uma compreensão melhor da Bíblia deve
evidentemente ser crítico e respeitar as fronteiras de cada disciplina. Em todo
caso, uma psicologia ou uma psicanálise que fosse atéia se tornaria incapaz de
considerar os dados da fé. Úteis para definir a extensão da responsabilidade
humana, psicologia e psicanálise não devem eliminar a realidade do pecado e da
salvação. Deve-se, aliás, evitar de confundir religiosidade espontânea e
revelação bíblica ou de prejudicar o caráter histórico da mensagem da Bíblia,
que lhe assegura um valor de acontecimento único.
Notemos ainda que não se pode falar
da « exegese psicanalítica » como se houvesse apenas uma. Existe, em realidade,
provenientes de diversos domínios da psicologia e das diversas escolas, uma
grande variedade de conhecimentos suscetíveis de contribuir à interpretação
humana e teológica da Bíblia. Considerar absoluta uma ou outra posição de uma
das escolas não favorece a fecundidade do esforço comum, ao contrário lhe e
nocivo.
As ciências humanas não se reduzem
à sociologia, à antropologia cultural e à psicologia. Outras disciplinas podem
também ser úteis para a interpretação da Bíblia. Em todos esses domínios é
preciso respeitar as competências e reconhecer que é pouco freqüente que uma
mesma pessoa seja ao mesmo tempo qualificada em exegese e em uma ou outra das
ciências humanas.
E. Abordagens contextuais
A interpretação de um texto é
sempre dependente da mentalidade e das preocupações de seus leitores. Estes
últimos dão uma atenção privilegiada a certos aspectos e, sem mesmo pensar,
negligenciam outros. É então inevitável que exegetas adotem, em seus trabalhos,
novos pontos de vista que correspondam a correntes de pensamento contemporâneas
que não obtiveram, até aqui, uma importância suficiente. Convém que eles o faça m
com discernimento crítico. Atualmente os movimentos de libertação e o feminismo
retêm particularmente a atenção.
1. Abordagem da libertação
A teologia da libertação é um
fenômeno complexo que é preciso não simplificar indevidamente. Como movimento
teológico ele se consolida no início dos anos 70. Seu ponto de partida, além das
circunstâncias econômicas, sociais e politicas dos países da América Latina,
encontra-se em dois grandes acontecimentos eclesiais: o Concilio Vaticano II,
com sua vontade declarada de aggiornamento e de orientação do trabalho pastoral
da Igreja em direção às necessidades do mundo atual, e a 2ª Assembléia plenária
do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) em Medellin em 1968, que aplicou
os ensinamentos do Concilio às necessidades da América Latina. O movimento se
propagou também em outras partes do mundo (África, Ásia, população negra dos
Estados Unidos).
É difícil discernir se existe « uma
» teologia da libertação e definir seu método. É tão difícil quanto determinar
adequadamente sua maneira de ler a Bíblia para indicar em seguida as
contribuições e os limites. Pode-se dizer que ela não adota um método especial.
Mas, partindo de pontos de vista sócio-culturais e políticos próprios, ela
pratica uma leitura bíblica orientada em função das necessidades do povo, que
procura na Bíblia o alimento da sua fé e da sua vida.
Ao invés de se contentar com uma
interpretação objetivante, que se concentra sobre aquilo que diz o texto em seu
contexto de origem, procura-se uma leitura que nasça da situação vivida pelo
povo. Se este último vive em circunstâncias de opressão, é preciso recorrer à
Bíblia para nela procurar o alimento capaz de sustentá-lo em suas lutas e suas
esperanças. A realidade presente não deve ser ignorada, mas, ao contrário,
afrontada em vista de iluminá-la à luz da Palavra. Desta luz resultará a práxis
cristã autêntica, tendendo à transformação da sociedade por meio da justiça e do
amor. Na fé, a Escritura se transforma em fator de dinamismo de libertação
integral.
Os princípios são os seguintes:
Deus está presente na história de
seu povo para salvá-lo. Ele é o Deus dos pobres, que não pode tolerar a opressão
nem a injustiça.
É por isso que a exegese não pode
ser neutra, mas deve tomar partido pelos pobres no seguimento de Deus, e
engajar-se no combate pela libertação dos oprimidos.
A participação a esse combate
permite, precisamente, de fazer aparecer sentidos que se descobrem somente
quando os textos bíblicos são lidos em um contexto de solidariedade efetiva com
os oprimidos.
Como a libertação dos oprimidos é
um processo coletivo, a comunidade dos pobres é a melhor destinatária para
receber a Bíblia como palavra de libertação. Além disso, os textos bíblicos
tendo sido escritos para comunidades, é a comunidades que em primeiro lugar a
leitura da Bíblia é confiada. A Palavra de Deus é plenamente atual, graças
sobretudo à capacidade que possuem os « acontecimentos fundadores » (a saída do
Egito, a paixão e a ressurreição de Jesus) de suscitar novas realizações no
curso da história.
A teologia da libertação compreende
elementos cujo valor é indubitável: o sentido profundo da presença de Deus que
salva; a insistência sobre a dimensão comunitária da fé; a urgência de uma
práxis libertadora enraizada na justiça e no amor; uma releitura da Bíblia que
procura fazer da Palavra de Deus a luz e o alimento do povo de Deus em meio a
suas lutas e suas esperanças. Assim é sublinhada a plena atualidade do texto
inspirado.
Mas a leitura tão engajada da
Bíblia comporta riscos. Como ela é ligada a um movimento em plena evolução, as
observações que seguem não podem que ser provisórias.
Essa leitura se concentra sobre
textos narrativos e proféticos que iluminam situações de opressão e que inspiram
uma práxis tendendo a uma mudança social: aqui ou lá ela pôde ser parcial, não
dando tanta atenção a outros textos da Bíblia. É certo que a exegese não pode
ser neutra, mas ela deve também evitar de ser unilateral. Aliás, o engajamento
social e politico não é a tarefa direta do exegeta.
Querendo inserir a mensagem bíblica
no contexto sócio-político, teólogos e exegetas foram levados ao recurso de
instrumentos de análise da realidade social. Nesta perspectiva, algumas
correntes da teologia da libertação fizeram uma análise inspirada em doutrinas
materialistas e é nesse quadro também que elas leram a Bíblia, o que não deixou
de provocar questões, notadamente no que concerne o princípio marxista da luta
de classes.
Sob a pressão de enormes problemas
sociais, o acento foi colocado principalmente sobre uma escatologia terrestre,
muitas vezes em detrimento da dimensão escatológica transcendente da Escritura.
As mudanças sociais e políticas
conduzem esta abordagem a se propôr novas questões e a procurar novas
orientações. Para seu desenvolvimento ulterior e sua fecundidade na Igreja, um
fator decisivo será o esclarecimento de seus pressupostos hermenêuticos, de seus
métodos e de sua coerência com a fé e a Tradição do conjunto da Igreja.
2. Abordagem feminista
A hermenêutica bíblica feminista
nasceu por volta do fim do século XIX nos Estados Unidos, no contexto
sócio-cultural da luta pelos direitos da mulher, com o comitê de revisão da
Bíblia. Este último produziu o « The Woman's Bible » em dois volumes (New York
1885, 1898). Esta corrente se manifestou com grande vigor e teve um enorme
desenvolvimento a partir dos anos '70, em ligação com o movimento de libertação
da mulher, sobretudo na América do Norte. Melhor dizendo, deve-se distinguir
várias hermenêuticas bíblicas feministas, pois as abordagens utilizadas são
muito diversas. A unidade delas provém do tema comum, isto é a mulher, e do fim
perseguido: a libertação da mulher e a conquista de direitos iguais aos do
homem.
Deve-se mencionar aqui três formas
principais da hermenêutica bíblica feminista: a forma radical, a forma
neo-ortodoxa e a forma crítica.
A forma radical recusa
completamente a autoridade da Bíblia, dizendo que ela foi produzida por homens
em vista de assegurar a dominação do homem sobre a mulher (androcentrismo).
A forma neo-ortodoxa aceita a
Bíblia como profecia e suscetível de servir, na medida em que ela toma partido
pelos fracos e assim também pela mulher; esta orientação é adotada como « cânon
no cânon », para colocar em relevo tudo aquilo que é em favor da libertação da
mulher e de seus direitos.
A forma crítica utiliza uma
metodologia sutil e procura redescobrir a posição e o papel da mulher cristã no
movimento de Jesus e nas Igrejas paulinas. Naquela época teria-se adotado o
igualitarismo. Mas esta situação teria sido mascarada, em grande parte, nos
escritos do Novo Testamento e ainda mais na sua sequência, tendo
progressivamente prevalecido o patriarcalismo e o androcentrismo.
A hermenêutica feminista não
elaborou um método novo. Ela se serve dos métodos correntes em exegese,
especialmente o método histórico-crítico. Mas ela acrescenta dois critérios de
investigação.
O primeiro é o critério feminista,
tomado do movimento de libertação da mulher, na linha do movimento mais geral da
teologia da libertação. Ele utiliza uma hermenêutica da suspeita: tendo a
história sido regularmente escrita pelos vencedores, para encontrar a verdade
não se deve confiar nos textos, mas procurar neles indícios que revelem outra
coisa.
O segundo critério é sociológico;
ele se baseia no estudo das sociedades dos tempos bíblicos, de sua
estratificação social e da posição que a mulher ocupava.
No que concerne os escritos
neo-testamentários, o objeto do estudo, em definitivo, não é a concepção da
mulher expressa no Novo Testamento, mas a reconstrução histórica de duas
situações diferentes da mulher no primeiro século: aquela que era habitual na
sociedade judaica e greco-romana e a outra, inovadora, instituída no movimento
de Jesus e nas Igrejas paulinas, onde teria-se formado « uma comunidade de
discípulos de Jesus, todos iguais ». Um dos apoios invocados para sustentar esta
visão das coisas é o texto de Gal 3,28. O objetivo é redescobrir para o presente
a história esquecida do papel da mulher na Igreja das origens.
Numerosas são as contribuições
positivas que provêm da exegese feminista. As mulheres tomaram assim uma parte
mais ativa na pesquisa exegética. Elas conseguiram, muitas vezes melhor do que
os homens, perceber a presença, o significado e o papel da mulher na Bíblia, na
história das origens cristãs e na Igreja. O horizonte cultural moderno, graças à
sua maior atenção à dignidade da mulher e ao papel dela na sociedade e na
Igreja, faz com que sejam dirigidas ao texto bíblico interrogações novas,
ocasiões de novas descobertas. A sensibilidade feminina leva a revelar e a
corrigir certas interpretações correntes, que eram tendenciosas e visavam
justificar a dominação do homem, sobre a mulher.
No que concerne o Antigo
Testamento, vários estudos esforçaram-se de chegar a uma compreensão melhor da
imagem de Deus. O Deus da Bíblia não é projeção de uma mentalidade patriarcal.
Ele é Pai, mas ele é também Deus de ternura e de amor maternais.
Na medida em que a exegese
feminista se fundamenta sobre uma idéia preconcebida, ela se expõe a interpretar
os textos bíblicos de maneira tendenciosa e portanto contestável. Para provar
suas teses ela deve muitas vezes, na falta de melhor, recorrer a argumentos ex
silentio. É sabido que estes são geralmente duvidosos; eles não podem nunca
bastar para estabelecer solidamente uma conclusão. De outro lado, a tentativa
feita para reconstituir, graças a indícios fugitivos discernidos nos textos, uma
situação histórica que esses mesmos textos pretendem querer esconder, não
corresponde mais a um trabalho de exegese propriamente dito, pois ela conduz à
rejeição dos textos inspirados preferindo uma construção hipotética diferente.
A exegese feminista propõe muitas
vezes questões de poder na Igreja que são, sabe-se, objeto de discussões e mesmo
de confrontos. Nesse domínio, a exegese feminista só poderá ser útil à Igreja na
medida em que ela não cair nas armadilhas mesmas que denuncia e quando ela não
perder de vista o ensinamento evangélico sobre o poder como serviço, ensinamento
endereçado por Jesus a todos os seus discípulos, homens e mulheres.(2)
F. Leitura fundamentalista
A leitura fundamentalista parte do
princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro,
deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por «
interpretação literal » ela entende uma interpretação primária, literalista,
isto é, excluindo todo esforço de compreensão da Bíblia que leve em conta seu
crescimento histórico e seu desenvolvimento. Ela se opõe assim à utilização do
método histórico-crítico, como de qualquer outro método científico, para a
interpretação da Escritura.
A leitura fundamentalista teve sua
origem na época da Reforma, com uma preocupação de fidelidade ao sentido literal
da Escritura. Após o século das Luzes, ela se apresentou no protestantismo como
uma proteção contra a exegese liberal. O termo « fundamentalista » é ligado
diretamente ao Congresso Bíblico Americano realizado em Niagara, Estado de New
York, em 1895. Os exegetas protestantes conservadores definiram nele « cinco
pontos de fundamentalismo »: a inerrância verbal da Escritura, a divindade de
Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreição
corporal quando da segunda vinda de Cristo. Logo que a leitura fundamentalista
da Bíblia se propagou em outras partes do mundo ela fez nascer outras espécies
de leituras, igualmente « literalistas », na Europa, Ásia, Africa e América do
Sul. Esse gênero de leitura encontra cada vez mais adeptos, no decorrer da
última parte do século XX, em grupos religiosos e seitas assim como também
entre os católicos.
Se bem que o fundamentalismo tenha
razão em insistir sobre a inspiração divina da Bíblia, a inerrância da Palavra
de Deus e as outras verdades bíblicas inclusas nos cinco pontos fundamentais,
sua maneira de apresentar essas verdades está enraizada em uma ideologia que não
é bíblica, apesar do que dizem seus representantes. Ela exige uma forte adesão a
atitudes doutrinárias rígidas e impõe, como fonte única de ensinamento a
respeito da vida cristã e da salvação, uma leitura da Bíblia que recusa todo
questionamento e toda pesquisa crítica.
O problema de base dessa leitura
fundamentalista é que recusando de levar em consideração o caráter histórico da
revelação bíblica, ela se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da
própria Encarnação. O fundamentalismo foge da estreita relação do divino e do
humano no relacionamento com Deus. Ele se recusa em admitir que a Palavra de
Deus inspirada foi expressa em linguagem humana e que ela foi redigida, sob a
inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram
limitados. Por esta razão, ele tende a tratar o texto bíblico como se ele
tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer
que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia
condicionadas por uma ou outra época. Ele não dá nenhuma atenção às formas
literárias e às maneiras humanas de pensar presentes nos textos bíblicos, muitos
dos quais são fruto de uma elaboração que se estendeu por longos períodos de
tempo e leva a marca de situações históricas muito diversas.
O fundamentalismo insiste também de
uma maneira indevida sobre a inerrância dos detalhes nos textos bíblicos,
especialmente em matéria de fatos históricos ou de pretensas verdades
científicas. Muitas vezes ele torna histórico aquilo que não tinha a pretensão
de historicidade, pois ele considera como histórico tudo aquilo que é reportado
ou contado com os verbos em um tempo passado, sem a necessária atenção à
possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo.
O fundamentalismo tem muitas vezes
tendência a ignorar ou a negar os problemas que o texto bíblico comporta na sua
formulação hebraica, aramaica ou grega. Ele é muitas vezes estreitamente ligado
a uma tradição determinada, antiga ou moderna. Ele se omite igualmente de
considerar as « releituras » de certas passagens no interior da própria Bíblia.
No que concerne os Evangelhos, o
fundamentalismo não leva em consideração o crescimento da tradição evangélica,
mas confunde ingenuamente o estágio final desta tradição (o que os evangelistas
escreveram) com o estágio inicial (as ações e as palavras do Jesus da história).
Ele negligencia assim um dado importante: a maneira com a qual as próprias
primeiras comunidades cristãs compreenderam o impacto produzido por Jesus de
Nazaré e sua mensagem. Ora, aqui está um testemunho da origem apostólica da fé
cristã e sua expressão direta. O fundamentalismo desnatura assim o apelo
lançado pelo próprio Evangelho.
O fundamentalismo tem igualmente
tendência a uma grande estreiteza de visão, pois ele considera conforme à
realidade uma antiga cosmologia já ultrapassada, só porque encontra-se expressa
na Bíblia; isso impede o diálogo com uma concepção mais ampla das relações entre
a cultura e a fé. Ele se apóia sobre uma leitura não-crítica de certos textos da
Bíblia para confirmar idéias políticas e atitudes sociais marcadas por
preconceitos, racistas, por exemplo, simplesmente contrários ao Evangelho
cristão.
Enfim, em sua adesão ao princípio
do « sola Scriptura », o fundamentalismo separa a interpretação da Bíblia da
Tradição guiada pelo Espírito, que se desenvolve autenticamente em ligação com a
Escritura no seio da comunidade de fé. Falta-lhe entender que o Novo Testamento
tomou forma no interior da Igreja cristã e que ele é Escritura Santa desta
Igreja, cuja existência precedeu a composição de seus textos. Assim, o
fundamentalismo é muitas vezes anti-eclesial; ele considera negligenciáveis os
credos, os dogmas e as práticas litúrgicas que se tornam parte da tradição
eclesiástica, como também a função de ensinamento da própria Igreja. Ele se
apresenta como uma forma de interpretação privada, que não reconhece que a
Igreja é fundada sobre a Bíblia e tira sua vida e sua inspiração das Escrituras.
A abordagem fundamentalista é
perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram respostas bíblicas
para seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações
piedosas mas ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém
necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas. O
fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ele
coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde inconscientemente as
limitações humanas da mensagem bíblica com a substancia divina dessa mensagem.
A. Hermenêuticas filosóficas
A atividade da exegese é chamada a
ser repensada levando-se em consideração a hermenêutica filosófica
contemporânea, que colocou em evidência a implicação da subjetividade no
conhecimento, especialmente no conhecimento histórico. A reflexão hermenêutica
teve nova força com a publicação dos trabalhos de Friedrich Schleiermacher,
Wilhelm Dilthey e, sobretudo, Martin Heidegger. Na trilha destes filósofos, mas
também distanciando-se deles, diversos autores aprofundaram a teoria
hermenêutica contemporânea e suas aplicações à Escritura. Entre eles
mencionaremos especialmente Rudolf Bultmann, Hans Georg Gadamer e Paul Ricceur.
Não se pode aqui resumir-lhes o pensamento. Será suficiente indicar algumas
idéias centrais da filosofia deles, aquelas que têm uma incidência sobre a
interpretação dos textos bíblicos.(3)
1. Perspetivas modernas
Constatando a distância cultural
entre o mundo do primeiro século e aquele do século XX, e preocupado em obter
que a realidade da qual trata a Escritura fale ao homem contemporâneo, Bultmann
insistiu na pré-compreensão necessária a toda compreensão e elaborou a teoria da
interpretação existencial dos escritos do Novo Testamento. Apoiando-se no
pensamento de Heidegger, ele afirma que a exegese de um texto bíblico não é
possível sem pressupostos que dirigem a compreensão. A pré-compreensão («
Vorverständnis ») é fundamentada na relação vital (« Lebensverhältnis ») do
intérprete com a coisa da qual fala o texto. Para evitar o subjetivismo, é
preciso no entanto que a pré-compreensão se deixe aprofundar e enriquecer, até
mesmo se modificar e se corrigir, por aquilo do qual fala o texto.
Interrogando-se sobre a
conceituação justa que definirá o questionamento a partir do qual os textos da
Escritura poderão ser entendidos pelo homem de hoje, Bultmann pretende encontrar
a resposta na analítica existencial de Heidegger. Os existenciais heideggerianos
teriam um alcance universal e ofereceriam as estruturas e os conceitos mais
apropriados para a compreensão da existência humana revelada na mensagem do Novo
Testamento.
Gadamer sublinha igualmente a
distância histórica entre o texto e seu intérprete. Ele retoma e desenvolve a
teoria do círculo hermenêutico. As antecipações e as pré-concepções que marcam
nossa compreensão provêm da tradição que nos sustenta. Esta consiste em um
conjunto de dados históricos e culturais, que constituem nosso contexto vital,
nosso horizonte de compreensão. O intérprete deve entrar em diálogo com a
realidade à qual se refere o texto. A compreensão se opera na fusão dos
horizontes diferentes do texto e de seu leitor (« Horizontverschmelzung »). Ela
só é possível se há uma dependência (« Zugehörigkeit »), isto é, uma afinidade
fundamental entre o intérprete e seu objeto. A hermenêutica é um processo
dialético: a compreensão de um texto é sempre uma compreensão mais ampla de si
mesmo.
Do pensamento hermenêutico de
Ricoeur retém-se primeiramente o relevo dado à função de distanciação como
condição necessária a uma justa apropriação do texto. Uma primeira distância
existe entre o texto e seu autor, pois, uma vez produzido, o texto adquire uma
certa autonomia em relação a seu autor; ele começa uma carreira de sentidos. Uma
outra distancia existe entre o texto e seus leitores sucessivos; estes devem
respeitar o mundo do texto em sua alteridade. Os
métodos de análise literária e histórica são assim necessários à interpretação.
No entanto, o sentido de um texto só pode ser dado plenamente se ele é
atualizado na vida de leitores que se apropriam dele. A partir da própria
situação, os leitores são chamados a realçar significados novos, na linha do
sentido fundamental indicado pelo texto. O conhecimento bíblico não deve se
fixar só na linguagem; ele procura atingir a realidade da qual fala o texto. A
linguagem religiosa da Bíblia é uma linguagem simbólica que « faz pensar », uma
linguagem da qual não se cessa de descobrir as riquezas de sentido, uma
linguagem que visa uma realidade transcendente e que, ao mesmo tempo, desperta a
pessoa humana à dimensão profunda de seu ser.
2. Utilidade para a exegese
O que dizer dessas teorias
contemporâneas de interpretação dos textos? A Bíblia é Palavra de Deus para
todas as épocas que se sucedem. Consequentemente não se poderia dispensar uma
teoria hermenêutica que permite incorporar os métodos de crítica literária e
histórica em um modelo de interpretação mais amplo. Trata-se de ultrapassar a
distância entre o tempo dos autores e primeiros destinatários dos textos
bíblicos e nossa época contemporânea, de modo a atualizar corretamente a
mensagem dos textos para alimentar a vida de fé dos cristãos. Toda exegese dos
textos é chamada a ser completada por uma « hermenêutica », no sentido recente
do termo.
A necessidade de uma hermenêutica,
isto é, de uma interpretação no hoje do nosso mundo, encontra um fundamento na
própria Bíblia e na história de sua interpretação. O conjunto dos escritos do
Antigo e do Novo Testamento apresenta-se como o produto de um longo processo de
reinterpretação dos acontecimentos fundadores, ligado com a vida das
comunidades de fiéis. Na tradição eclesial, os primeiros intérpretes da
Escritura, os Padres da Igreja, consideravam que a exegese que faziam dos textos
só era completa quando eles evidenciavam o sentido para os cristãos do tempo
deles e na situação em que viviam. Só se é fiel à intencionalidade dos textos
bíblicos na medida que se tenta reencontrar no coração de sua formulação a
realidade de fé que eles exprimem, e se esta se liga à experiência dos fiéis do
nosso mundo.
A hermenêutica contemporânea é uma
reação sadia ao positivismo histórico e à tentação de aplicar ao estudo da
Bíblia os critérios de objetividade utilizados nas ciências naturais. De um
lado, os acontecimentos narrados na Bíblia são acontecimentos interpretados. De
outro lado, toda exegese dos relatos desses acontecimentos implica
necessariamente a subjetividade do exegeta. O conhecimento justo do texto
bíblico só é acessível àquele que tem uma afinidade viva com aquilo do qual fala
o texto. A pergunta que se faz a todo intérprete é a seguinte: qual teoria
hermenêutica torna possível a justa apreensão da realidade profunda da qual fala
a Escritura e sua expressão significativa para o homem de hoje?
É preciso reconhecer, efetivamente,
que certas teorias hermenêuticas são inadequadas para interpretar a Escritura.
Por exemplo, a interpretação existencial de Bultmann conduz ao aprisionamento
da mensagem cristã na argola de uma filosofia particular. Além disso, em virtude
dos pressupostos que comandam esta hermenêutica, a mensagem religiosa da Bíblia
é esvaziada em grande parte de sua realidade objetiva (na sequência de uma
excessiva « demitização ») e tende a se subordinar a uma mensagem antropológica.
A filosofia torna-se norma de interpretação invés de ser instrumento de
compreensão daquilo que é o objeto central de toda interpretação: a pessoa de
Jesus Cristo e os acontecimentos da salvação realizados em nossa história. Uma
autêntica interpretação da Escritura é primeiramente acolhida de um sentido dado
nos acontecimentos e, de maneira suprema, na pessoa de Jesus Cristo.
Este sentido é expresso nos textos.
Para evitar o subjetivismo, uma boa atualização deve então ser fundada sobre o
estudo do texto e os pressupostos de leitura devem ser constantemente
submetidos à verificação através do texto.
A hermenêutica bíblica, se ela é da
competência da hermenêutica geral de todo texto literário e histórico, é ao
mesmo tempo um caso único dentro dela. Suas características específicas vêm-lhe
de seu objeto. Os acontecimentos da salvação e sua realização na pessoa de Jesus
Cristo dão sentido a toda a história humana. As novas interpretações históricas
só poderão ser descoberta e desdobramento dessas riquezas de sentido. O relato
bíblico desses acontecimentos não pode ser plenamente entendido só pela razão.
Pressupostos particulares comandam sua interpretação, como a fé vivida na
comunidade eclesial e à luz do Espírito. Com o crescimento da vida no Espírito
cresce, no leitor, a compreensão das realidades das quais fala o texto bíblico.
B. Sentido da Escritura inspirada
A contribuição moderna das
hermenêuticas filosóficas e os desenvolvimentos recentes do estudo científico
das literaturas, permitem à exegese bíblica de aprofundar a compreensão de sua
tarefa, cuja complexidade tornou-se mais evidente. A exegese antiga, que
evidentemente não podia levar em consideração as exigências científicas
modernas, atribuía a todo texto da Escritura sentidos de vários níveis. A
distinção mais corrente se fazia entre sentido literal e sentido espiritual. A
exegese medieval distinguiu no sentido espiritual três aspectos diferentes que
se relacionam, respectivamente, à verdade revelada, à conduta a ser mantida e à
realização final. Daí o célebre dístico de Agostinho da Dinamarca (século XIII):
« Littera gesta docet, quid credas allegoria, moralis quid agas, quid speres
anagogia ».
Como reação a esta multiplicidade
de sentidos, a exegese histórico-crítica adotou, mais ou menos abertamente, a
tese da unicidade de sentidos, segundo a qual um texto não pode ter
simultaneamente vários significados. Todo esforço da exegese histórico-crítica é
de definir « o » sentido preciso de um ou outro texto bíblico nas circunstâncias
de sua produção.
Mas esta tese choca-se agora com as
conclusões das ciências da linguagem e das hermenêuticas filosóficas, que
afirmam a polissemia dos textos escritos.
O problema não é simples e ele não
se apresenta da mesma maneira para todos os gêneros de textos: relatos
históricos, parábolas, oráculos, leis, provérbios, orações, hinos, etc. Pode-se,
entretanto, dar alguns princípios gerais, levando-se em conta a diversidade das
opiniões.
1. Sentido literal
É não apenas legítimo mas
indispensável procurar definir o sentido preciso dos textos tais como foram
produzidos por seus autores, sentido chamado de « literal ». Já são Tomás de
Aquino afirmava sua importância fundamental ( S. Th., I, q.l, a. 10, ad. 1).
O sentido literal não deve ser
confundido com o sentido « literalista » ao qual aderem os fundamentalistas. Não
é suficiente traduzir um texto palavra por palavra para obter seu sentido
literal. É preciso compreendê-lo segundo as convenções literárias da época.
Quando um texto é metafórico, seu sentido literal não é aquele que resulta
imediatamente do palavra por palavra (por exemplo: « Tende os rins cingidos »,
Lc 12,35), mas aquele que corresponde ao uso metafórico dos
termos (« Tende uma
atitude de disponibilidade »). Quando se trata de um relato, o sentido
literal
não comporta necessariamente a afirmação de que os fatos contados
tenham efetivamente acontecido, pois um relato pode não pertencer ao
gênero histórico,
mas ser uma obra de imaginação.
O sentido literal da Escritura é
aquele que foi expresso diretamente pelos autores humanos inspirados. Sendo o
fruto da inspiração, este sentido é também desejado por Deus, autor principal.
Ele é discernido graças a uma análise precisa do texto, situado em seu contexto
literário e histórico. A tarefa principal da exegese é de bem conduzir esta
análise, utilizando todas as possibilidades das pesquisas literárias e
históricas, em vista de definir o sentido literal dos textos bíblicos com a
maior exatidão possível (cf.
Divino afflante Spiritu: E. B., 550). Para esta
finalidade, o estudo dos gêneros literários antigos é particularmente necessário
(ibid. 560).
O sentido literal de um texto é
único? Geralmente sim; mas não se trata aqui de um princípio absoluto, e isso
por duas razões. De um lado, um autor humano pode querer se referir ao mesmo
tempo a vários níveis de realidade. O caso é comum em poesia. A inspiração
bíblica não desdenha esta possibilidade da psicologia e da linguagem humana; o
IV Evangelho fornece numerosos exemplos disto. De outro lado, mesmo quando uma
expressão humana parece ter um único significado, a inspiração divina pode guiar
a expressão de maneira a produzir urna ambivalência. Este é o caso da palavra de
Caifás em Jo 11,50. Ela exprime ao mesmo tempo um cálculo político imoral e uma
revelação divina. Estes dois aspectos pertencem um e outro ao sentido literal,
pois eles são, os dois, colocados em evidência pelo contexto. Se bem que ele
seja extremo, este caso é significativo; ele deve advertir contra uma concepção
muito estrita do sentido literal dos textos inspirados.
Convém particularmente estar atento
ao aspecto dinâmico de muitos textos. O sentido dos Salmos reais, por exemplo,
não deve estar limitado estritamente às circunstâncias históricas da produção
deles. Falando do rei, o salmista evocava ao mesmo tempo uma instituição
verdadeira e uma visão ideal da realeza, conforme ao plano de Deus, de maneira
que seu texto ultrapassava a instituição real tal como ela tinha se manifestado
na história. A exegese histórico-crítica teve muitas vezes a tendência de fixar
o sentido dos textos, ligando-o exclusivamente a circunstâncias históricas
precisas. Ela deve antes de tudo procurar determinar a direção do pensamento
expresso pelo texto, direção que, ao invés de convidar o exegeta a fixar o
sentido, sugere-lhe, ao contrário, de perceber seu desenvolvimento mais ou menos
previsível.
Uma corrente da hermenêutica
moderna sublinhou a diferença de estatuto que afeta a palavra humana logo que
ela é colocada por escrito. Um texto escrito tem a capacidade de ser colocado em
circunstancias novas, que o iluminam de maneiras diferentes, acrescentando ao
seu sentido novas determinações. Esta capacidade do texto escrito é
especialmente efetiva no caso dos textos bíblicos, reconhecidos como Palavra de
Deus. Efetivamente, o que levou a comunidade de fiéis a conservá-los foi a
convicção que eles continuariam a ser portadores de luz e de vida para as
gerações vindouras. O sentido literal é, desde o início, aberto a
desenvolvimentos ulteriores, que se produzem graças a « releituras » em
contextos novos.
Não se deve concluir que se possa
atribuir a um texto bíblico qualquer sentido, interpretando-o de maneira
subjetiva. E preciso, ao contrário, rejeitar como inautêntica toda interpretação
que seja heterogênea ao sentido expresso pelos autores humanos e no texto
escrito por eles. Admitir sentidos heterogêneos equivaleria a cortar a mensagem
bíblica de sua raiz, que é a Palavra de Deus comunicada historicamente, e a
abrir a porta a um subjetivismo incontrolável.
2. Sentido espiritual
Não é o caso, no entanto, de tomar
« heterogêneo » em um sentido estrito, contrário a toda possibilidade de
realização superior. O acontecimento pascal, morte e ressurreição de Jesus, deu
origem a um contexto histórico radicalmente novo, que ilumina de maneira nova os
textos antigos e os faz sofrer uma mutação de sentido. Particularmente certos
textos que nas antigas circunstancias deveriam ser considerados como hipérboles
(por exemplo, o oráculo onde Deus, falando de um filho de Davi, prometia afirmar
« para sempre » seu trono: 2 Sam 7,12-13; 1 Cron 17,11-14), doravante esses
textos devem ser tomados ao pé da letra, porque o « Cristo, tendo ressuscitado
dentre os mortos, já não morre » (Rom 6,9). Os exegetas que têm uma noção
limitada, « histórica », do sentido literal estimarão que aqui há
heterogeneidade. Aqueles que são abertos ao aspecto dinâmico dos textos
reconhecerão uma continuidade profunda ao mesmo tempo que uma passagem a um
nível diferente: o Cristo reina para sempre, mas não sobre o trono terrestre de
Davi (cf também Sal 2,7-8; 110,1.4).
Nos casos desse gênero, fala-se de
« sentido espiritual ». Em regra geral, pode-se definir o sentido espiritual,
entendido segundo a fé cristã, como o sentido expresso pelos textos bíblicos,
logo que são lidos sob influência do Espírito Santo no contexto do mistério
pascal do Cristo e da vida nova que resulta dele. Esse contexto existe
efetivamente. O Novo Testamento reconhece nele a realização das Escrituras. É,
assim, normal reler as Escrituras à luz deste novo contexto, que é aquele da
vida no Espírito.
Da definição dada pode-se fazer
várias precisões úteis sobre as relações entre sentido espiritual e sentido
literal:
Em sentido contrário a uma opinião
corrente, não há necessariamente distinção entre esses dois sentidos. Quando um
texto bíblico se refere diretamente ao mistério pascal do Cristo ou à vida nova
que resulta dele, seu sentido literal é um sentido espiritual. Este é o caso
habitual no Novo Testamento. Conclui-se que é a respeito do Antigo Testamento
que a exegese cristã fala muitas vezes de sentido espiritual. Mas já no Antigo
Testamento, os textos têm em vários casos como sentido literal um sentido
religioso e espiritual. A fé cristã reconhece aqui uma relação antecipada com a
vida nova trazida pelo Cristo.
Quando há distinção, o sentido
espiritual não pode jamais ser privado de relações com o sentido literal. Este
último permanece a base indispensável. De outra maneira não se poderia falar de
« realização » da Escritura. Para que haja realização efetiva, é essencial uma
relação de continuidade e de conformidade. Mas é preciso também que haja
passagem a um nível superior de realidade.
O sentido espiritual não pode ser
confundido com as interpretações subjetivas ditadas pela imaginação ou a
especulação intelectual. Ele resulta da relação do texto com dados reais que não
lhe são estranhos, como o acontecimento pascal e sua fecundidade inesgotável que
constitui o grau supremo da intervenção divina na história de Israel em proveito
da humanidade inteira.
A leitura espiritual, feita em
comunidade ou individualmente, descobre um sentido espiritual autêntico somente
se ela se mantém nessas perspectivas. Entram assim em relação três níveis de
realidade: o texto bíblico, o mistério pascal e as circunstâncias presentes de
vida no Espírito.
Convencida de que o mistério de
Cristo dá a chave de interpretação a todas as Escrituras, a exegese antiga se
esforçou de encontrar um sentido espiritual nos menores detalhes dos textos
bíblicos — por exemplo, em cada prescrição das leis rituais — servindo-se de
métodos rabínicos ou inspirando-se no alegorismo helenístico. A exegese moderna
não pode dar um verdadeiro valor de interpretação a esse gênero de tentativa,
qualquer que tenha sido no passado sua utilidade pastoral (cf
Divino afflante Spiritu,
E. B., 553).
Um dos aspectos possíveis do
sentido espiritual é o aspecto tipológico, do qual se diz habitualmente que
pertence não à Escritura em si mas às realidades expressas por ela: Adão figura
de Cristo (cf Rm 5,14), o dilúvio figura do batismo (1 Pd 3,20-21), etc. De
fato, a relação de tipologia é ordinariamente baseada sobre a maneira pela qual
a Escritura descreve a realidade antiga (cf a voz de Abel: Gn 4,10; He 11,4;
12,24) e não simplesmente sobre esta realidade. Consequentemente, trata-se de um
sentido da Escritura.
3. Sentido pleno
Relativamente recente, a
denominação de « sentido pleno » suscita discussões. Define-se o sentido pleno
como um sentido mais profundo do texto, desejado por Deus, mas não claramente
expresso pelo autor humano. Descobre-se sua existência em um texto bíblico
quando se estuda esse texto à luz de outros textos bíblicos que o utilizam ou em
sua relação com o desenvolvimento interno da revelação.
Trata-se, então, ou do significado
que um autor bíblico atribui a um texto bíblico que lhe é anterior, quando ele o
retoma em um contexto que lhe confere um sentido literal novo, ou ainda do
significado que a tradição doutrinal autêntica ou uma definição conciliar dão a
um texto da Bíblia. Por exemplo, o contexto de Mt 1,23 dá um sentido pleno ao
oráculo de Is 7,14 sobre a almah que conceberá, utilizando a tradução dos
Setenta (parthenos): « A virgem conceberá ». O ensinamento patrístico e
conciliar sobre a Trindade expressa o sentido pleno do ensinamento do Novo
Testamento sobre Deus Pai, Filho e Espírito. A definição do pecado original pelo
Concilio de Trento fornece o sentido pleno do ensinamento de Paulo em Rm 5,12-21
a respeito das consequências do pecado de Adão para a humanidade. Mas, quando
falta um controle desse gênero — por um texto bíblico explicito ou por uma
tradição doutrinal autêntica — o recurso a um pretenso sentido pleno poderia
conduzir a interpretações subjetivas desprovidas de toda validade.
Em definitivo, poderia-se
considerar o « sentido pleno » como uma outra maneira de designar o sentido
espiritual de um texto bíblico, no caso onde o sentido espiritual se distingue
do sentido literal. Seu fundamento é o fato de que o Espírito Santo, autor
principal da Bíblia, pode guiar o autor humano na escolha de suas expressões de
tal forma que estas últimas expressem uma verdade da qual ele não percebe toda a
profundidade. Esta é revelada mais completamente no decorrer do tempo, graças,
de um lado, a realizações divinas ulteriores que manifestem melhor o alcance dos
textos e graças também, de outro lado, à inserção dos textos no Cânon das
Escrituras. Assim é constituído um novo contexto, que faz aparecer
potencialidades de sentido que o contexto primitivo deixava na obscuridade.
A exegese católica não procura se
diferenciar por um método científico particular. Ela reconhece que um dos
aspectos dos textos bíblicos é o de ser a obra de autores humanos, que se
serviram de suas próprias capacidades de expressão e meios que a época e o
ambiente deles colocavam-lhes à disposição. Consequentemente, ela utiliza sem
subentendidos todos os métodos e abordagens científicos que permitem melhor
apreender o sentido dos textos no contexto linguístico, literário,
sócio-cultural, religioso e histórico deles, iluminando-os também pelo estudo de
suas fontes e levando em conta a personalidade de cada autor (cf
Divino afflante Spiritu,
E. B., 557). Ela contribui ativamente ao desenvolvimento dos métodos e
ao progresso da pesquisa.
O que a caracteriza é que ela se
situa conscientemente na tradição viva da Igreja, cuja primeira preocupação é a
fidelidade à revelação atestada pela Bíblia. As hermenêuticas modernas
colocaram em destaque, lembremo-nos, a impossibilidade de interpretar um texto
sem partir de uma « pré-compreensão » de um gênero ou de um outro. A exegese
católica aborda os escritos bíblicos com uma pré-compreensão que une
estreitamente a cultura moderna científica e a tradição religiosa proveniente de
Israel e da comunidade cristã primitiva. Sua interpretação encontra-se, assim,
em continuidade com o dinamismo de interpretação que se manifesta no interior da
própria Bíblia e que se prolonga em seguida na vida da Igreja. Ela corresponde à
exigência de afinidade vital entre o intérprete e seu objeto, afinidade que
constitui uma das condições de possibilidade do trabalho exegético.
Toda pré-compreensão comporta,
entretanto, seus perigos. No caso da exegese católica o risco existe de atribuir
a textos bíblicos um sentido que eles não exprimem, mas que é o fruto de um
desenvolvimento ulterior da tradição. A exegese deve evitar este perigo.
A. A interpretação na Tradição
bíblica
Os textos da Bíblia são a expressão
de tradições religiosas que existiam antes deles. A maneira pela qual eles se
ligam a essas tradições é diferente segundo o caso, a criatividade dos autores
manifestando-se em graus diversos. No decorrer dos tempos, múltiplas tradições
convergiram pouco a pouco para formar uma grande tradição comum. A Bíblia é urna
manifestação privilegiada desse processo, que ela contribuiu a realizar e do
qual ela continua a ser reguladora.
« A interpretação na Tradição
bíblica » comporta uma grande variedade de aspectos. Pode-se entender por esta
expressão a maneira com a qual a Bíblia interpreta as experiências humanas
fundamentais ou os acontecimentos particulares da história de Israel, ou ainda a
maneira com a qual os textos bíblicos utilizam fontes, escritas ou orais —
algumas das quais podem provenir de outras religiões ou culturas —
reinterpretando-as. Mas sendo nosso assunto a interpretação da Bíblia, nós não
queremos tratar aqui destas questões tão vastas, mas simplesmente propor
algumas observações sobre a interpretação dos textos bíblicos no interior da
própria Bíblia.
1. Releituras
O que contribui a dar à Bíblia sua
unidade interna, única em seu gênero, é o fato de que os escritos bíblicos
posteriores apóiam-se muitas vezes sobre os escritos anteriores. Fazem alusão a
eles, propõem « releituras » que desenvolvem novos aspectos de sentido, algumas
vezes muito diferentes do sentido primitivo, ou ainda referem-se a eles
explicitamente, seja para aprofundar-lhes o significado, seja para afirmar-lhes
a realização.
É assim que a herança de uma terra,
prometida por Deus a Abrahão para a sua descendência (Gn 15,7.18), torna-se a
entrada no santuário de Deus (Ex 15,17), uma participação ao repouso de Deus
(Sal 132,7-8) reservada aos verdadeiros fiéis (Sal 95,8-11; He 3,7-4,11) e,
finalmente, a entrada no santuário celeste (He 6,12.18-20), «herança eterna » (He
9,15).
O oráculo do profeta Natã, que
promete a Davi uma « casa », isto é, uma sucessão dinástica, « estável para
sempre » (2 Sam 7,12-16), é lembrado em numerosas ocasiões (2 Sam 23,5; 1
Re
2,4; 3,6; 1 Cron 17,11-14), especialmente nos tempos de aflição (Sal 89,20-38),
não sem variações significativas, e ele é desenvolvido por outros oráculos (Sal
2,7-8; 110,1.4; Am 9,11; Is 7,13-14; Jer 23,5-6; etc.), alguns dos quais
anunciam o retorno do próprio reino de Davi (Os 3,5; Jer 30,9; Ez 34,24;
37,24-25; cf Mc 11,10). O reino prometido torna-se universal (Sal 2,8;
Dn
2,35.44; 7,14; cf Mt 28,18). Ele realiza plenamente a vocação do homem (Gn
1,28; Sal 8,6-9; Sab 9,2-3; 10,2).
O oráculo de Jeremias sobre os 70
anos de castigo merecidos por Jerusalem e Judá (Jer 25,11-12; 29,10) é lembrado
em 2 Cron 25,20-23, que constata sua realização. Mas, no entanto, ele é
remeditado após muito tempo pelo autor de Daniel na convicção de que esta
palavra de Deus guarda ainda um sentido escondido, que deve iluminar a situação
presente (Dn 9,24-27).
A afirmação fundamental da justiça
retributiva de Deus, que recompensa os bons e pune os maus (Sal 1,1-6; 112,1-10;
Lv 26,3-33; etc.), choca-se com a experiência imediata, que muitas vezes não
corresponde a ela. A Escritura deixa, então, o protesto e a contestação
exprimirem-se com vigor (Sal 44; Jó 10,1-7; 13,3-28; 23-24) e aprofunda
progressivamente o mistério (Sal 37; Jó 38-42; Is 53; Sab 3-5).
2. Relações entre o Antigo e Novo
Testamento
As relações inter-textuais assumem
uma densidade extrema nos escritos do Novo Testamento, todo formado de alusões
ao Antigo Testamento e de citações explicitas. Os autores do Novo Testamento
reconhecem no Antigo um valor de revelação divina. Eles proclamam que esta
revelação encontrou sua realização na vida, no ensinamento e sobretudo na morte
e ressurreição de Jesus, fonte de perdão e de vida eterna. « Cristo morreu por
nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro
dia, segundo as Escrituras. Apareceu... » (1 Co 15,3-5): este é o núcleo central
da pregação apostólica (1 Co 15,11).
Como sempre, entre as Escrituras e
os acontecimentos que as realizam, as relações não são de simples
correspondência material, mas de iluminação recíproca e de progresso dialético:
constata-se ao mesmo tempo que as Escrituras revelam o sentido dos
acontecimentos e que os acontecimentos revelam o sentido das Escrituras, isto
é, que eles obrigam a renunciar a certos aspectos da interpretação recebida para
adotar uma interpretação nova.
Desde o tempo de seu ministério
público, Jesus tinha tomado uma posição pessoal original, diferente da
interpretação recebida em sua época, que era aquela « dos escribas e dos
fariseus » (Mt 5,20). Numerosos são os testemunhos disso: as antíteses do
Sermão da montanha (Mt 5,21-48), a liberdade soberana de Jesus na observância
do sábado (Mc 2, 27-28 e paral.), sua maneira de tornar relativos os preceitos
de pureza ritual (Mc 7,1-23 e paral.), ao contrário, sua exigência radical em
outros domínios (Mt 10,2-12 e paral.; 10,17-27 e paral.) e sobretudo sua atitude
de receptividade em relação « aos publicanos e pecadores » (Mc 2,15-17 e paral.).
De sua parte não era capricho de contestador mas, ao contrário, fidelidade mais
profunda à vontade de Deus expressa na Escritura (cf Mt 5,17; 9,13; Mc 7,8-13 e
paral.; 10,5-9 e paral.).
A morte e ressurreição de Jesus
forçaram ao extremo a evolução começada, provocando em alguns pontos um
rompimento completo, ao mesmo tempo que uma abertura inesperada. A morte do
Messias, « rei dos Judeus » (Mc 15,26 e paral.), provocou uma transformação na
interpretação terrestre dos Salmos reais e dos oráculos messiânicos. Sua
ressurreição e sua glorificação celeste como Filho de Deus deram a esses mesmos
textos uma plenitude de sentido inconcebível anteriormente. Expressões que
pareciam hiperbólicas devem doravante ser tomadas ao pé da letra. Elas aparecem
como que preparadas por Deus para expressar a glória do Cristo Jesus, pois Jesus
é realmente « Senhor » (Sal 110,1) no sentido mais forte do termo (At 2,36;
Fil 2,10-11; He 1,10-12); ele é o Filho de Deus (Sal 2,7;
Mc 14,62; Rm 1,3-4),
Deus com Deus (Sal 45,7; He 1,8; Jo 1,1; 20,28); « seu reino não terá fim » (Lc
1,32-33; cf 1 Cron 17,11-14; Sal 45,7; He 1,8) e ele é ao mesmo tempo «
sacerdote eternamente » (Sal 110,4; He 5,6-10; 7,23-24).
Foi à luz dos acontecimentos da
Páscoa que os autores do Novo Testamento releram o Antigo Testamento. O Espírito
Santo enviado pelo Cristo glorificado (cf Jo 15,26; 16,7) os fez descobrir nele
o sentido espiritual. Foram assim conduzidos a afirmar mais do que nunca o valor
profético do Antigo Testamento, mas também a tornar fortemente relativo seu
valor de instituição salvífica. Esse segundo ponto de vista, que aparece já nos
Evangelhos (cf Mt 11,11-13 e paral.; 12,41-42 e paral.; Jo 4,12-14; 5,37; 6,32)
aparece com vigor em certas cartas paulinas assim como na Carta aos Hebreus.
Paulo e o autor da Carta aos Hebreus demonstram que a Torá, enquanto revelação,
anuncia ela mesma seu próprio fim como sistema legislativo (cf Gal 2,15-5,1;
Rm
3,20-21; 6,14; He 7,11-19; 10,8-9). Conclui-se que os pagãos que aderem à fé no
Cristo não têm que ser submetidos a todos os preceitos da legislação bíblica,
doravante reduzida, em seu conjunto, ao estatuto de instituição legal de um povo
particular. Mas eles têm que se alimentar do Antigo Testamento como Palavra de
Deus, que lhes permite de melhor descobrir todas as dimensões do mistério pascal
do qual eles vivem (cf Lc 24,25-27.44-45; Rm 1,1-2).
No interior da Bíblia cristã as
relações entre Novo e Antigo Testamento não deixam de ser complexas. Quando se
trata da utilização de textos particulares, os autores do Novo Testamento recorrem
naturalmente aos conhecimentos e aos procedimentos de interpretação da época
deles. Exigir que se conformem aos métodos científicos modernos seria um
anacronismo. O exegeta deve antes de tudo adquirir o conhecimento dos
procedimentos antigos para poder interpretar corretamente o uso que é feito
deles. É verdade, de outro lado, que ele não deve dar um valor absoluto àquilo
que é conhecimento humano limitado.
Convém, enfim, acrescentar que no
interior do Novo Testamento, como já no interior do Antigo, observa-se a
justaposição de perspectivas diferentes e algumas vezes em tensão umas com as
outras, por exemplo, sobre a situação de Jesus (Jo 8,29; 16,32 e Mc 15,34) ou
sobre o valor da Lei mosaica (Mt 5,17-19 e Rm 6,14) ou sobre a necessidade das
obras para ser justificado (Tg 2,24 e Rm 3,28; Ef 2,8-9). Uma das
características da Bíblia é precisamente a ausência do espírito de sistema e a
presença, ao contrário, de tensões dinamizantes. A Bíblia acolheu várias
maneiras de interpretar os mesmos acontecimentos ou de pensar os mesmos
problemas. Assim ela convida a recusar o simplismo e a estreiteza de espírito.
3. Algumas conclusões
Disto que foi dito pode-se concluir
que a Bíblia contém numerosas indicações e sugestões sobre a arte de
interpretar. A Bíblia é efetivamente, desde o início, ela mesma uma
interpretação. Seus textos foram reconhecidos pelas comunidades da Antiga
Aliança e do tempo apostólico como expressão válida da fé que elas tinham. É
segundo a interpretação das comunidades e em relação àquela que foram
reconhecidos como Santa Escritura (assim, por exemplo, o Cântico dos Cânticos
foi reconhecido como Santa Escritura enquanto aplicado à relação entre Deus e
Israel). No decorrer da formação da Bíblia, os escritos que a compõem foram, em
muitos casos, retrabalhados e reinterpretados para responderem a situações
novas, desconhecidas anteriormente.
A maneira de interpretar os textos
que se manifesta na Santa Escritura sugere as seguintes observações:
Dado que a Santa Escritura nasceu
sobre a base de um consenso de comunidades de fiéis que reconheceram em seu
texto a expressão da fé revelada, sua própria interpretação deve ser, para a fé
viva das comunidades eclesiais, fonte de consenso sobre os pontos essenciais.
Dado que a expressão da fé, tal
como se encontrava reconhecida por todos na Santa Escritura, teve que se
renovar continuamente para fazer face a situações novas — o que explicam as «
releituras » de muitos textos bíblicos — a interpretação da Bíblia deve
igualmente ter um aspecto de criatividade e afrontar as questões novas, para
respondê-las partindo da Bíblia.
Dado que os textos da Santa
Escritura têm algumas vezes relações de tensão entre eles, a interpretação deve
necessariamente ser múltipla. Nenhuma interpretação particular pode esgotar o
sentido do conjunto, que é uma sinfonia a várias vozes. A interpretação de um
texto particular deve assim evitar de ser exclusivista.
A Santa Escritura está em diálogo
com as comunidades dos fiéis: ela saiu de suas tradições de fé. Seus textos se
desenvolveram em relação com essas tradições e contribuíram, reciprocamente, ao
desenvolvimento delas. Conclui-se que a interpretação da Escritura faz-se no
seio da Igreja, em sua pluralidade, em sua unidade e em sua tradição de fé.
As tradições de fé formavam o
ambiente vital no qual inseriu-se a atividade literária dos autores da Santa
Escritura. Esta inserção compreendia também a participação à vida litúrgica e à
atividade externa das comunidades; ao mundo espiritual, à cultura e às
peripécias do destino histórico delas. Assim, de maneira semelhante, a
interpretação da Santa Escritura exige a participação dos exegetas em toda a
vida e em toda a fé da comunidade crente do tempo deles.
O diálogo com a Santa Escritura em
seu conjunto, e, assim, com a compreensão da fé própria a épocas anteriores, é
acompanhado necessariamente de um diálogo com a geração presente. Isso provoca
o estabelecimento de uma relação de continuidade, mas também a constatação de
diferenças. Conclui-se que a interpretação da Escritura comporta um trabalho de
verificação e de triagem; ele permanece em continuidade com as tradições
exegéticas anteriores, das quais conserva e toma para si muitos elementos, mas
em outros pontos ela se separa delas para poder progredir.
B. A interpretação na Tradição da
Igreja
A Igreja, povo de Deus, tem
consciência de ser ajudada pelo Espírito Santo em sua compreensão e sua
interpretação das Escrituras. Os primeiros discípulos de Jesus sabiam que não
estavam à altura de compreender imediatamente em todos os seus aspectos a
totalidade do que tinham recebido. Faziam a experiência, na vida de comunidade
conduzida com perseverança, de um aprofundamento e de uma explicitação
progressiva da revelação recebida. Eles reconheciam nisso a influência e a ação
do « Espírito da verdade », que o Cristo lhes havia prometido para guiá-los em
direção à plenitude da verdade (Jo 16,12-13). É assim igualmente que a Igreja
prossegue seu caminho, sustentada pela promessa do Cristo: « O Paráclito, o
Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará
tudo o que eu vos disse » (Jo 14,26).
1. Formação do Cânon
Guiada pelo Espírito Santo à luz da
Tradição viva que ela recebeu, a Igreja discerniu os escritos que devem ser
olhados como Santa Escritura no sentido de que, « tendo sido escritos sob a
inspiração do Espírito Santo, eles têm Deus por autor, foram transmitidos como
tais à Igreja » (Dei Verbum, 11) e contêm « a verdade que Deus, para nossa
salvação, quis ver consignada nas Letras sagradas » (ibid.).
O discernimento de um « cânon » das
Santas Escrituras foi a conclusão de um longo processo. As comunidades da Antiga
Aliança (de grupos particulares, como os círculos proféticos ou o ambiente
sacerdotal, até o conjunto do povo) reconheceram em um certo número de textos a
Palavra de Deus que lhes suscitava a fé e os guiava na vida; elas receberam
esses textos como um patrimônio a ser guardado e transmitido. Assim, esses
textos cessaram de ser simplesmente a expressão da inspiração de autores
particulares; eles se tornaram propriedade comum do povo de Deus. O Novo
Testamento atesta sua veneração por esses textos sagrados, que ele recebe como
uma preciosa herança transmitida pelo povo judeu. Ele os olha como as «
Escrituras Santas » (Rm 1,2), inspiradas » pelo Espírito de Deus (2 Tim 3,16; cf
2 Pd 1,20- 21), que « não podem ser abolidas » (Jo 10,35).
A esses textos que formam o «
Antigo Testamento » (cf 2 Co 3,14), a Igreja uniu estreitamente os escritos onde
ela reconheceu, de um lado o testemunho autêntico proveniente dos apóstolos (cf
Lc 1,2; 1 Jo 1,1-3) e garantido pelo Espírito Santo (cf 1 Pd 1,12), sobre «
todas as coisas que Jesus fez e ensinou » (At 1,1), e de outro lado instruções
dadas pelos apóstolos mesmos e outros discípulos para constituir a comunidade de
fiéis. Esta dupla série de escritos recebeu depois o nome de « Novo Testamento
».
Nesse processo, numerosos fatores
tiveram um papel: a certeza de que Jesus — e os apóstolos com ele — tinha
reconhecido o Antigo Testamento como Escritura inspirada e que esta recebia sua
realização em seu mistério pascal; a convicção de que os escritos do Novo
Testamento provêm autenticamente da pregação apostólica (o que não implica que
eles tenham sido todos compostos pelos próprios apóstolos); a constatação da sua
conformidade com a regra da fé e da sua utilização na liturgia cristã; enfim, a
experiência da conformidade deles com a vida eclesial das comunidades e da
capacidade de alimentar esta vida.
Discernindo o Cânon das Escrituras,
a Igreja discernia e definia sua própria identidade, de maneira que as
Escrituras são doravante um espelho no qual a Igreja pode constantemente
redescobrir sua identidade e verificar, século após século, a maneira com a qual
ela responde sem cessar ao Evangelho e se dispõe ela mesma a ser o meio de
transmissão dele (cf
Dei Verbum, 7). Isso confere aos escritos canônicos um
valor salvífico e teológico completamente diferente daquele de outros textos
antigos. Se esses últimos podem dar muita luz sobre as origens da fé, eles não
podem jamais substituir a autoridade dos escritos considerados como canônicos e,
assim, fundamentais para a inteligência da fé cristã.
2. Exegese patrística
Desde os primórdios compreendeu-se
que o mesmo Espírito Santo, que levou os autores do Novo Testamento a colocar
por escrito a mensagem da salvação (Dei Verbum, 7, 18), traz igualmente à Igreja
uma assistência continua para a interpretação de seus escritos inspirados (cf
Irineu, Adv. Haer. 3.24.1; cf 3.1.1; 4.33.8; Orígenes, De Princ., 2.7.2; Tertuliano,
De Praescr., 22).
Os Padres da Igreja, que
tiveram um papel
particular no processo de formação do Cânon, tiveram igualmente um papel
fundador em relação à tradição viva que sem cessar acompanha e guia a
leitura e
a interpretação que a Igreja faz das Escrituras (cf Providentissimus Deus, E. B.,
110-111;
Divino afflante Spiritu, 28-30, E. B., 554;
Dei Verbum, 23; PCB,
Instr.
de Evang. histor., 1). No decorrer da grande Tradição, a contribuição
particular da exegese patrística consiste nisto: ela tirou do conjunto da
Escritura as orientações de base que deram forma à tradição doutrinal da Igreja
e ela forneceu um rico ensinamento teológico para a instrução e o alimento
espiritual dos fiéis.
Nos Padres da Igreja, a leitura da Escritura e sua
interpretação ocupam um lugar considerável. Testemunhas disso são, primeiramente, as obras diretamente ligadas
à inteligência das Escrituras, isto é as homilias e os comentários, mas também
as obras de controvérsia e de teologia, onde o apelo à Escritura serve de
argumento principal.
O lugar habitual da leitura bíblica é a igreja, no decorrer
da liturgia. É por isso que a interpretação proposta é sempre de natureza
teológica, pastoral e teologal, a serviço das comunidades e dos fiéis
individuais.
Os Padres consideram a Bíblia antes de tudo como Livro de Deus,
obra única de um único autor. Mesmo assim eles não reduzem os autores humanos a
meros instrumentos passivos e eles sabem atribuir a um ou outro livro tomado
individualmente uma finalidade singular. Mas o tipo de abordagem deles dá apenas
uma pequena atenção ao desenvolvimento histórico da revelação. Numerosos Padres
da Igreja apresentam o Logos, Verbo de Deus, como autor do Antigo Testamento e
afirmam assim que toda a Escritura tem um alcance cristológico.
Com exceção de
certos exegetas da Escola Antioquense (Teodoro de Mopsuesta particularmente), os
Padres sentem-se autorizados a tomar uma frase fora de seu contexto para
reconhecer nela uma verdade revelada por Deus. Na apologética diante dos Judeus
ou na controvérsia dogmática com outros teólogos eles não hesitam em se apoiar
sobre interpretações desse gênero.
Preocupados antes de tudo em viver da Bíblia
em comunhão com seus irmãos, os Padres contentam-se muitas vezes em utilizar o
texto bíblico mais comum no meio deles. Interessando-se metodicamente pela
Bíblia hebraica, Orígenes é animado sobretudo pelo cuidado de argumentar face
aos Judeus a partir de textos aceitáveis por esses últimos. Exaltando a hebraica veritas, são Jerônimo figura como excepção.
Os Padres praticam de maneira mais
ou menos freqüente o método alegórico afim de dissipar o escândalo que poderia
ser provocado em certos cristãos e nos adversários pagãos do cristianismo diante de uma ou outra
passagem da Bíblia. Mas a literalidade e a historicidade dos textos são muito
raramente esvaziadas. O recurso dos Padres à alegoria ultrapassa geralmente o
fenômeno de uma adaptação ao método alegórico dos autores pagãos.
O recurso à
alegoria deriva também da convicção de que a Bíblia, livro de Deus, foi dado por
ele a seu povo, a Igreja. Em princípio nada deve ser deixado de lado como
antiquado ou definitivamente caduco. Deus dirige uma mensagem sempre de
atualidade a seu povo cristão. Em suas explicações da Bíblia, os Padres misturam
e entrelaçam as interpretações tipológicas e alegóricas de uma maneira mais ou
menos inextricável, sempre com finalidade pastoral e pedagógica. Tudo o que está
escrito o foi para nossa instrução (cf 1 Co 10,11).
Persuadidos de que se trata
do livro de Deus, portanto inesgotável, os Padres crêem poder interpretar uma
passagem segundo um determinado esquema alegórico, mas eles estimam que cada um
permanece livre para propor outra coisa, contanto que respeite a analogia da fé.
A interpretação alegórica das Escrituras, que caracteriza a exegese patrística,
corre o risco de desorientar o homem moderno, mas a experiência de Igreja que
esta exegese exprime oferece uma contribuição sempre útil (cf ,
Divino afflante Spiritu 31-32; Dei Verbum, 23). Os Padres ensinam a ler teologicamente a
Bíblia no seio de uma Tradição viva com um autêntico espírito cristão.
3. Papel
dos diversos membros da Igreja na interpretação
Enquanto dadas à Igreja, as
Escrituras são um tesouro comum do corpo completo formado pelos fiéis: « A Santa
Tradição e a Santa Escritura constituem um único depósito sagrado da Palavra de
Deus, confiado à Igreja. Ligando-se a ele, todo o povo santo unido a seus
pastores permanece assiduamente fiel ao ensinamento dos apóstolos... » (Dei Verbum, 10; cf também 21). É bem
verdade que a familiaridade com o texto
das Escrituras foi, entre c fiéis, mais notável em certas épocas da história do
que em outras Mas as Escrituras ocuparam uma posição de primeiro plano em ta dos
os momentos importantes de renovação na vida da Igreja, desde o movimento
monástico dos primeiros séculos até a época recente do Concilio Vaticano II.
Este mesmo Concilio ensina que todos os batizados,
quando tomam parte, na fé ao
Cristo, da celebração da Eucaristia, reconhecem a presença do Cristo também em
sua palavra, « pois é ele mesmo que fala quando as Santas Escrituras são lidas
na igreja (Sacrosanctum Concilium, 7). A esta escuta da palavra eles contribuem
com o « sentido da fé (sensus fidei) que caracteriza o Povo (de Deus) inteiro.
(...) Graças a esse sentido da fé que é desperta do e sustentado pelo Espírito
de verdade, o Povo de Deus, sob direção do magistério sagrado, que ele segue
fielmente, recebe, não uma palavra humana, mas verdadeiramente a Palavra de Deu:
(cf 1 Tess 2,13). Ele se une indefectivelmente à fé transmitida ao: santos uma
vez por todas (cf Jud 3), ele a aprofunda corretamente e a aplica à sua vida da
maneira mais completa » (Lumen gentium, 12) .
Assim, todos os membros da Igreja
têm um papel na interpretação das Escrituras. No exercício de seus ministérios
pastorais, oi bispos, enquanto sucessores dos apóstolos, são as primeiras
testemunhas e garantias da tradição viva na qual as Escrituras sãc interpretadas
em cada época. « Iluminados pelo Espírito da verdade, devem guardar fielmente a
Palavra de Deus, explicá-la e propagá-la pela pregação » (Dei Verbum, 9; cf
Lumen gentium, 25). Enquanto colaboradores dos bispos, os padres têm como
primeiro dever a proclamação da Palavra (Presbyterorum ordinis, 4). Eles são
dotados de um carisma particular para a interpretação da Escritura quando,
transmitindo não suas idéias pessoais mas a Palavra de Deus, eles aplicam a
verdade eterna do Evangelho às circunstâncias concretas da vida (ibid.). Cabe
aos padres e aos diáconos, sobretudo quando eles
administram os sacramentos, de colocar em evidência a unidade que Palavra e
Sacramento formam no ministério da Igreja.
Enquanto presidentes da comunidade
eucarística e educadores da fé, os ministros da Palavra têm como tarefa
principal não apenas dar um ensinamento mas ajudar os fiéis a entender e
discernir o que a Palavra de Deus lhes diz ao coração quando eles escutam e
meditam as Escrituras. É assim que o conjunto da Igreja local, segundo o modelo
de Israel, povo de Deus (Ex 19,5-6), torna-se uma comunidade que sabe que Deus
lhe fala (cf Jo 6,45) e que se empenha em escutá-lo com fé, amor e docilidade
para com sua Palavra (Dt 6,4-6). Tais comunidades, que escutam verdadeiramente e
à condição de permanecerem sempre unidas na fé e no amor com a Igreja inteira,
tornam-se vigorosos focos de evangelização e de diálogo, assim como agentes de
transformação social
(Evangelii nuntiandi, 57-58; CDF,
Instrução sobre a
liberdade cristã e a libertação, 69-70).
O Espírito é dado também, claro, aos
cristãos individualmente, de maneira que seus corações possam tornar-se «
ardentes dentro deles » (cf Lc 24,32) quando rezam e fazem um estudo em oração
das Escrituras no contexto da vida pessoal deles. É por isso que o Concilio
Vaticano II pediu com insistência que o acesso às Escrituras seja facilitado de
todas as maneiras possíveis (Dei Verbum, 22, 25). Esse gênero de leitura,
note-se, não é nunca completamente privado pois, aquele que crê, também lê e
interpreta a Escritura sempre na fé da Igreja e traz em seguida à comunidade o
fruto de sua leitura, para enriquecer a fé comum.
Toda a tradição bíblica e, de
uma maneira mais notável, o ensinamento de Jesus nos Evangelhos indicam como
ouvintes privilegiados da Palavra de Deus aqueles que o mundo considera como
gente de condição humilde. Jesus reconheceu que coisas escondidas aos sábios e
doutores foram reveladas aos simples (Mt 11,25; Lc 10,21) e que o Reino de Deus
pertence àqueles que se parecem com as crianças (Mc 10,14 e paral.).
Na mesma linha, Jesus proclamou: «
Bem aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus » (Lc 6,20; cf
Mt
5,3). Entre os sinais dos tempos messiânicos encontra-se a proclamação da boa
nova aos pobres (Lc 4,18; 7,22; Mt 11,5; cf CDF, Instrução sobre a liberdade
cristã e a libertação, 47-48 ). Aqueles que, na incapacidade e na privação de
seus recursos humanos, encontram-se forçados a colocar a única esperança deles
em Deus e sua justiça, têm uma capacidade de escutar e interpretar a Palavra de
Deus que deve ser levada em conta pela Igreja inteira e pede também uma resposta
a nível social.
Reconhecendo a diversidade de dons e de funções que o Espírito
coloca a serviço da comunidade, particularmente o dom de ensinar (1 Co 12,28-30;
Rm 12,6-7; Ef 4,11-16), a Igreja concede sua estima àqueles que manifestam uma
capacidade particular de contribuir à construção do Corpo do Cristo pela
competência que têm na interpretação da Escritura (Divino afflante Spiritu,
46-48, E. B., 564-565;
Dei Verbum, 23; PCB,
Instrução sobre a historicidade dos
Evangelhos, Introd.). Se bem que seus trabalhos não tenham sempre obtido o
encorajamento que se lhes dá agora, os exegetas que colocam seu saber a serviço
da Igreja encontram-se situados em uma rica tradição que se estende desde os
primeiros séculos, com Orígenes e Jerônimo, até os tempos mais recentes, com o
padre Lagrange e outros, e prolonga-se até nossos dias. Particularmente a
pesquisa do sentido literal da Escritura, sobre o qual doravante insiste-se
tanto, requer os esforços conjugados daqueles que têm competências em matéria de
línguas antigas, de história e de cultura, de crítica textual e de análise de
formas literárias, e que sabem utilizar os métodos da crítica científica. Além
desta atenção ao texto em seu contexto histórico original, a Igreja confia em
exegetas animados pelo mesmo Espírito que inspirou a Escritura para assegurar
que « um maior número possível de servidores da Palavra de Deus esteja à altura
de oferecer efetivamente ao povo de Deus o alimento das Escrituras » (Divino afflante Spiritu, 24; 53-55; E. B.,
551, 567;
Dei Verbum, 23; Paulo VI,
Sedula cura [1971]). Um motivo de satisfação é dado à nossa época pelo número
crescente de mulheres exegetas, que trazem mais de uma vez à interpretação da
Escritura novas visões mais penetrantes e colocam em evidência aspectos que
tinham caído no esquecimento.
Se as Escrituras, como se lembrou
acima, são o bem da Igreja inteira e fazem parte da « herança da fé » que todos,
pastores e fiéis, « conservam, professam e colocam em prática em um esforço
comum », é bem verdade no entanto que a « tarefa de interpretar de maneira
autêntica a Palavra de Deus, transmitida pela Escritura ou pela Tradição, foi
confiada unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade exerce-se em
nome de Jesus Cristo » (Dei Verbum, 10). Assim, em última análise, é o Magistério que tem a tarefa de
garantir a autenticidade de interpretação e de indicar, quando ocorre, que uma
ou outra interpretação particular é incompatível com o autêntico Evangelho. Ele
desempenha encargo no interior da koinônia do Corpo, exprimindo oficialmente a
fé da Igreja para servir a Igreja; para este efeito ele consulta teólogos,
exegetas e outros expertos, dos quais reconhece a legítima liberdade e com os
quais permanece ligado por uma relação recíproca com o fim comum de « conservar
o povo de Deus na verdade que torna livre » (CDF, Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, 21).
C. A tarefa do exegeta
A tarefa dos exegetas católicos
comporta vários aspectos. É uma tarefa de Igreja, pois ela consiste em estudar e
explicar a Santa Escritura de maneira a colocar todas as riquezas à disposição
dos pastores e dos fiéis. Mas é ao mesmo tempo uma tarefa científica que coloca
o exegeta católico em relação com seus colegas não-católicos e com vários
setores da pesquisa científica. De outro lado, esta tarefa compreende ao mesmo
tempo o trabalho de pesquisa e aquele de ensinamento. Tanto um como outro
concluem normalmente em publicações.
1. Orientações principais
Aplicando-se às suas tarefas, os exegetas católicos devem levai em séria
consideração o caráter histórico da revelação bíblica. Pois os dois Testamentos
exprimem em palavras humanas, que levam a marca do tempo delas, a revelação
histórica que Deus fez, por diversos meios, dele mesmo e de seu piano de
salvação. Consequentemente, os exegetas devem se servir do método
histórico-crítico. Eles não podem, no entanto, atribuir-lhe a exclusividade.
Todos o; métodos pertinentes de interpretação dos textos são habilitados a dar
sua contribuição à exegese da Bíblia.
No trabalho de interpretação que fazem, os
exegetas católicos não devem nunca esquecer que o que eles interpretam é a
Palavra de Deus. A tarefa comum que têm não está terminada após terem
distinguido as fontes, definido as formas ou explicado os procedimentos
literários. A finalidade do trabalho deles só é atingida quando tiverem
esclarecido o sentido do texto bíblico como palavra atual de Deus. A esse efeito
devem levar em consideração as diversas perspectivas hermenêuticas que ajudam a
perceber a atualidade da mensagem bíblica e lhes permitem de responder às
necessidades dos leitores modernos das Escrituras.
Os exegetas têm também que
explicar o alcance cristológico, canônico e eclesial dos escritos bíblicos.
O
alcance cristológico dos textos bíblicos não é sempre evidente; deve ser
colocado em evidência cada vez que seja possível. Se bem que o Cristo tenha
estabelecido a Nova Aliança em seu sangue, os livros da Primeira Aliança não
perderam seu valor. Assumidos na proclamação do Evangelho, adquirem e
manifestam seu pleno significado no « mistério do Cristo » (Ef 3,4), do qual
eles iluminam os múltiplos aspectos ao mesmo tempo que são iluminados por ele.
Esses livros, efetivamente, preparavam o povo de Deus à sua vinda (cf
Dei Verbum,
14-16).
Se bem que cada livro da Bíblia tenha sido escrito com uma finalidade distinta e que tenha o seu
significado específico, ele se manifesta portador de um sentido ulterior quando
se torna uma parte do conjunto canônico. A tarefa dos exegetas inclui, então, a
explicação da afirmação agostiniana: « Novum Testamentum in Vetere latet, et in
Novo Vestus patet » (cf s. Agostinho, Quaest. in Hept., 2, 73: CSEL 28, III, 3,
p.141).
Os exegetas devem explicar também a relação que existe entre a Bíblia e
a Igreja. A Bíblia veio à luz em comunidades de fiéis. Ela exprime a fé de
Israel e aquela das comunidades cristãs primitivas. Unida à Tradição viva que a
precedeu, a acompanha e da qual se alimenta (cf
Dei Verbum, 21), ela é o meio
privilegiado do qual Deus se serve para guiar, ainda hoje, a construção e o
crescimento da Igreja enquanto Povo de Deus. Inseparável da dimensão eclesial
está a abertura ecumênica.
Pelo fato de que a Bíblia exprime uma oferta de
salvação apresentada por Deus a todos os homens, a tarefa dos exegetas comporta
uma dimensão universal, que requer uma atenção às outras religiões e aos anseios
do mundo atual.
2. Pesquisa
A tarefa exegética é vasta demais para poder ser bem conduzida por um único indivíduo. Impõe-se uma divisão de trabalho,
especialmente para a pesquisa, que requer especialistas em diferentes domínios.
Os inconvenientes possíveis da especialização serão evitados graças a esforços
interdisciplinares.
É muito importante para o
bem da Igreja inteira e para sua irradiação no mundo moderno que um
número suficiente de pessoas bem formadas
sejam consagradas à pesquisa em diferentes setores da ciência exegética.
Preocupados com as necessidades mais imediatas do ministério, os bispos e
os
superiores religiosos são muitas vezes tentados a não levar
suficientemente a
sério a responsabilidade que lhes incumbe de prover a esta necessidade
fundamental. Mas uma carência neste
ponto expõe a Igreja a graves inconvenientes, pois pastores e fiéis
arriscam de
estarem à mercê de uma ciência exegética estranha à Igreja e privada de
relações
com a vida da fé. Declarando que « o estudo da Santa Escritura » deve
ser « como
a alma da teologia » (Dei Verbum, 24), o II Concílio do Vaticano mostrou toda a
importância da pesquisa exegética. Ao mesmo tempo também lembrou implicitamente
aos exegetas católicos que suas pesquisas têm uma relação essencial com a
teologia, da qual eles devem se mostrar conscientes.
3. Ensinamento
A declaração
do Concilio faz igualmente compreender o papel fundamental que é dado ao
ensinamento da exegese nas Faculdades de Teologia, Seminários e Escolasticados.
É evidente que o nível dos estudos não será uniforme nestes diferentes casos. É
desejável que o ensinamento da exegese seja dado por homens e por mulheres. Mais
técnico nas Faculdades, esse ensinamento terá uma orientação mais diretamente
pastoral nos Seminários. Mas ele não poderá nunca esquecer uma dimensão
intelectual séria. Proceder de outra maneira seria faltar de respeito com a
Palavra de Deus.
Os professores de exegese devem comunicar aos estudantes uma
profunda estima pela Santa Escritura, mostrando o quanto ela merece um estudo
atento e objetivo que permita apreciar melhor seu valor literário, histórico,
social e teológico. Eles não podem se contentar em transmitir uma série de
conhecimentos a serem registrados passivamente mas devem dar uma iniciação aos
métodos exegéticos, explicando suas principais operações para tornar os
estudantes capazes de julgamento pessoal. Visto o tempo limitado que se dispõe,
convém utilizar alternativamente duas maneiras de ensinar: de um lado, por meio
de exposições sintéticas, que introduzem ao estudo de livros bíblicos inteiros e
não deixam de lado nenhum setor importante do Antigo Testamento nem do Novo; de outro lado, por meio de análises
aprofundadas de alguns textos bem escolhidos, que sejam ao mesmo tempo uma
iniciação à prática da exegese. Tanto em um como em outro caso é preciso cuidar
para não ser unilateral, isto é, de não se limitar nem a um comentário
espiritual desprovido de base histórico-crítica, nem a um comentário
histórico-crítico desprovido de conteúdo doutrinal e espiritual (cf
Divino afflante Spiritu;
E. B., 551-552; PC, De Sacra Scriptura recte docenda, E. B., 598). O
ensinamento deve mostrar ao mesmo tempo as raízes históricas dos escritos
bíblicos, o aspecto deles enquanto palavra pessoal do Pai celeste que se dirige
com amor a seus filhos (cf
Dei Verbum, 21) e o papel indispensável que têm no
ministério pastoral (cf 2 Tim 3,16).
4. Publicações
Como fruto da pesquisa e
complemento do ensinamento, as publicações têm uma função de grande importância
para o progresso e a difusão da exegese. Em nossos dias, a publicação não se
realiza mais somente pelos textos impressos, mas também por outros meios, mais
rápidos e mais potentes (rádio, televisão, técnicas eletrônicas), dos quais
convém aprender a se servir.
As publicações de alto
nível científico são o
instrumento principal de diálogo, de discussão e de cooperação entre os
pesquisadores. Graças a elas a exegese católica pode se manter em
relação
recíproca com outros ambientes da pesquisa exegética e também com o
mundo dos
estudiosos em geral.
A curto prazo, são as outras publicações que prestam
grandes serviços pois se adaptam a diversas categorias de leitores, desde o
público cultivado até às crianças dos catecismos, passando pelos grupos
bíblicos, os movimentos apostólicos e as congregações religiosas. Os exegetas
dotados para a divulgação fazem uma obra extremamente útil e fecunda,
indispensável para assegurar aos estudos exegéticos a irradiação que devem ter.
Neste setor, a necessidade de atualização da mensagem
bíblica faz-se sentir de maneira mais premente. Isso significa que os exegetas
levem em consideração as legítimas exigências das pessoas instruídas e cultas de
nosso tempo e distingüam claramente, para o bem delas, o que deve ser olhado
como detalhe secundário condicionado pela época, o que é preciso interpretar com
linguagem mítica e o que é preciso apreciar como sentido próprio, histórico e
inspirado. Os escritos bíblicos não foram compostos em linguagem moderna, nem em
estilo do século XX. As formas de expressão e os gêneros literários que eles
utilizam no texto hebreu, aramaico ou grego devem ser tornados inteligíveis aos
homens e mulheres de hoje que, de outra maneira, seriam tentatos ou a perder o
interesse pela Bíblia, ou a interpretá-la de maneira simplista: literalista ou
fantasiosa.
Em toda a diversidade de suas tarefas, o exegeta católico não tem
outra finalidade senão o serviço da Palavra de Deus. Sua ambição não é
substituir aos textos bíblicos os resultados de seu trabalho, que se trate de
reconstituição de documentos antigos utilizados pelos autores inspirados ou de
uma apresentação moderna das últimas conclusões da ciência exegética. Sua
ambição é, ao contrário, colocar em maior evidência os próprios textos bíblicos,
ajudando a apreciá-los melhor e a compreendê-los com sempre mais exatidão
histórica e profundidade espiritual.
D. As relações com as outras disciplinas
teológicas
Sendo ela mesma uma disciplina teológica, « fides quaerens
intellectum », a exegese mantém relações estreitas e complexas com as outras
disciplinas da teologia. De um lado, efetivamente, a teologia sistemática tem
uma influência sobre a pré-compreensão com a qual os exegetas abordam os textos
bíblicos. Mas, de outro lado, a exegese fornece às outras disciplinas teológicas
dados que lhes são fundamentais. São estabelecidas, então, relações de diálogo
entre a exegese e as outras disciplinas teológicas, no respeito mútuo à
especificidade de cada uma delas.
1. Teologia e pré-compreensão dos
textos bíblicos
Quando fazem a abordagem dos escritos bíblicos, os exegetas têm
necessariamente uma pré-compreensão. No caso da exegese católica, trata-se de
uma pré-compreensão baseada nas certezas de fé: a Bíblia é um texto inspirado
por Deus e confiado à Igreja para suscitar a fé e guiar a vida cristã. As
certezas de fé não chegam aos exegetas em estado bruto, mas depois de terem sido
elaboradas na comunidade eclesial pela reflexão teológica. Os exegetas são,
assim, orientados em suas pesquisas pela reflexão dos dogmáticos sobre a
inspiração da Escritura e a função desta na vida eclesial.
Mas, reciprocamente,
o trabalho dos exegetas sobre os textos inspirados traz-lhes uma experiência da
qual os dogmáticos devem levar em conta para melhor elucidar a teologia da
inspiração escriturária e da interpretação eclesial da Bíblia. A exegese suscita
particularmente uma consciência mais viva e mais precisa do caráter histórico da
inspiração bíblica. Ela mostra que o processo da inspiração é histórico não
apenas porque ele teve seu lugar no decorrer da história de Israel e da Igreja
primitiva, mas também porque ele se realizou através da mediação de pessoas
humanas marcadas cada uma pela sua época e que, sob a guia do Espírito, tiveram
um papel ativo na vida do povo de Deus.
Aliás, a afirmação teológica da relação
estreita entre Escritura inspirada e Tradição da Igreja viu-se confirmada e
precisada graças ao desenvolvimento dos estudos exegéticos, que levou os
exegetas a dar uma atenção maior à influência que teve sobre os textos o
ambiente vital onde eles se formaram (« Sitz im Leben »).
2. Exegese e teologia
dogmática
Sem ser seu único locus theologicus, a Santa Escritura constitui a
base privilegiada dos estudos teológicos. Para interpretar a Escritura com
exatidão científica e precisão, os teólogos necessitam do trabalho dos exegetas.
De outro lado, os exegetas devem orientar suas pesquisas de tal maneira que o
« estudo da Santa Escritura » possa efetivamente ser « como a alma da Teologia »
(Dei Verbum, 24). A este efeito, é preciso dar uma atenção particular ao
conteúdo religioso dos escritos bíblicos.
Os exegetas podem ajudar os dogmáticos
a evitar dois extremos: de um lado o dualismo, que separa completamente uma
verdade doutrinal de sua expressão lingüística, considerada como sem
importância; de outro lado o fundamentalismo que, confundindo o humano e o
divino, considera como verdade revelada mesmo os aspectos contingentes das
expressões humanas.
Para evitar esses dois extremos é preciso distinguir sem
separar, e assim aceitar uma tensão persistente. A Palavra de Deus exprimiu-se
na obra de autores humanos. Pensamento e palavras são ao mesmo tempo de Deus e
do homem, de maneira que tudo na Bíblia vem ao mesmo tempo de Deus e do autor
inspirado. Não se conclui, no entanto, que Deus tenha dado um valor absoluto ao
condicionamento histórico de sua mensagem. Esta é suscetível de ser interpretada
e atualizada, isto é, de ser separada, pelo menos parcialmente, de seu
condicionamento histórico passado para ser transplantada no condicionamento
histórico presente. O exegeta estabelece as bases desta operação que o dogmático
continua, levando em consideração os outros loci theologici que contribuem ao
desenvolvimento do dogma.
3. Exegese e teologia moral
Observações análogas podem ser
feitas sobre as relações entre exegese e teologia moral. Aos relatos
concernentes à história da salvação, a Bíblia une estreitamente múltiplas
instruções sobre a conduta a ser mantida: mandamentos, interdições, prescrições
jurídicas, exortações, invectivas proféticas, conselhos de sábios. Uma das
tarefas da exegese consiste em precisar o alcance deste abundante material e em
preparar, assim, o trabalho dos moralistas.
Esta tarefa não é simples pois
muitas vezes os textos bíblicos não se preocupam em distinguir
preceitos morais universais, prescrições de pureza ritual e ordens jurídicas
particulares. Tudo é posto junto. De outro lado, a Bíblia reflete uma evolução
moral considerável, que encontra sua perfeição no Novo Testamento. Não é
suficiente que uma certa posição em matéria de moral seja atestada no Antigo
Testamento (por exemplo, a prática da escravidão ou do divórcio, ou aquela das
exterminações em caso de guerra), para que esta posição continue a ser válida.
Um discernimento deve ser feito, levando em conta o necessário progresso da
consciência moral. Os escritos do Antigo Testamento contêm elementos «
imperfeitos e caducos » (Dei Verbum, 15), que a pedagogia divina não podia
eliminar de uma só vez. O Novo Testamento mesmo não é fácil de interpretar no
domínio da moral, pois muitas vezes ele se exprime através de imagem, ou de
maneira paradoxal, ou mesmo provocadora, e a relação dos cristãos com a Lei
judaica é objeto aqui de ásperas controvérsias.
Os moralistas são, assim,
levados a apresentar aos exegetas muitas questões importantes que estimularão
suas pesquisas. Em mais de um caso, a resposta poderá ser que nenhum texto
bíblico trata explicitamente do problema considerado. Mas mesmo assim o
testemunho da Bíblia, compreendido em seu vigoroso dinamismo de conjunto, não
pode deixar de ajudar a definir uma orientação fecunda. Sobre os pontos mais
importantes, a moral do Decálogo permanece fundamental. O Antigo Testamento
contém já os princípios e os valores que comandam um agir plenamente conforme à
dignidade da pessoa humana, criada « à imagem de Deus » (Gn 1,27). 0 Novo
Testamento coloca esses princípios e esses valores em grande evidência, graças à
revelação do amor de Deus no Cristo.
4. Pontos de vista diferentes e interação necessária
Em seu documento de 1988 sobre a interpretação dos dogmas,
a Comissão Teológica Internacional lembrou que, nos tempos modernos, um conflito surgiu entre a
exegese e a teologia dogmática; ela observa em seguida as contribuições da
exegese moderna à teologia sistemática (A interpretação dos dogmas, 1988, C.I,
2). Para maior precisão, é útil acrescentar que o conflito foi provocado pela
exegese liberal. Entre a exegese católica e a teologia dogmática não houve
conflito generalizado, mas apenas momentos de forte tensão. É bem verdade, no
entanto, que a tensão pode degenerar em conflito se de um lado e de outro
endurecem-se legítimas diferenças de pontos de vista até transformá-las em
oposições irredutíveis.
Os pontos de vista, efetivamente, são diferentes e devem
sê-lo. A primeira tarefa da exegese é discernir com precisão o sentido dos
textos bíblicos no próprio contexto deles, isto é, primeiramente no contexto
literário e histórico particular desses mesmos textos e em seguida no contexto
do Cânon das Escrituras. Realizando esta tarefa, o exegeta coloca em evidência
o sentido teológico dos textos, desde que eles tenham um alcance dessa natureza.
Uma relação de continuidade é, assim, feita possível entre a exegese e a
reflexão teológica ulterior. Mas o ponto de vista não é o mesmo, pois a tarefa
da exegese é fundamentalmente histórica e descritiva e limita-se à interpretação
da Bíblia.
O dogmático realiza uma obra mais especulativa e mais sistemática.
Por esta razão ele só se interessa verdadeiramente por certos textos e por
certos aspectos da Bíblia e, aliás, ele leva em consideração muitos outros dados
que não são bíblicos — escritos patrísticos, definições conciliares, outros
documentos do Magistério, liturgia — assim como sistemas filosóficos e a
situação cultural, social e política contemporânea. Sua tarefa não é
simplesmente interpretar a Bíblia, mas visar uma compreensão plenamente
refletida da fé cristã em todas as suas dimensões e especialmente em sua
relação decisiva com a existência humana.
Por causa de sua orientação
especulativa e sistemática, a teologia muitas vezes cedeu à tentação de
considerar a Bíblia como um reservatório de dicta probantia destinado a
confirmar teses doutrinárias. Em nossos dias, os
dogmáticos adquiriram uma viva consciência da importância do contexto literário
e histórico para a correta interpretação dos textos antigos e eles recorrem
muito mais à colaboração dos exegetas.
Enquanto Palavra de Deus colocada por
escrito, a Bíblia tem uma riqueza de significado que não pode ser completamente
captado nem emprisionado em nenhuma teologia sistemática. Uma das funções
principais da Bíblia é aquela de lançar sérios desafios aos sistemas teológicos
e de lembrar continuamente a existência de importantes aspectos da revelação
divina e da realidade humana que algumas vezes foram esquecidos ou
negligenciados nos esforços de reflexão sistemática. A renovação da metodologia
exegética pode contribuir a esta tomada de consciência.
Reciprocamente, a
exegese deve se deixar iluminar pela pesquisa teológica. Esta a estimulará a
apresentar aos textos questões importantes e descobrir melhor todo o alcance e a
fecundidade deles. O estudo científico da Bíblia não pode se isolar da pesquisa
teológica, nem da experiência espiritual e do discernimento da Igreja. A exegese
produz seus melhores frutos quando ela se realiza no contexto da fé viva da
comunidade cristã, que é orientada em direção da salvação do mundo inteiro.
Tarefa particular dos exegetas, a interpretação da Bíblia mesmo assim
não lhes pertence como um monopólio, pois na Igreja essa interpretação apresenta
aspectos que vão além da análise científica dos textos. A Igreja, efetivamente,
não considera a Bíblia simplesmente como um conjunto de documentos históricos
concernentes às suas origens; acolhe-a como Palavra de Deus que se dirige a ela
e ao mundo inteiro no tempo presente. Esta convicção de fé tem como consequência
a prática da atualização e da inculturação da mensagem bíblica, assim como os
diversos modos de utilização dos textos inspirados, na liturgia, a « lectio
divina » , o ministério pastoral e o movimento ecumênico.
A. Atualização
Já no
interior da própria Bíblia — havíamos notado no capítulo precedente — pode-se
constatar a prática da atualização: textos mais antigos foram relidos à luz de
circunstâncias novas e aplicados à situação presente do Povo de Deus. Baseada
sobre as mesmas convicções, a atualização continua necessariamente a ser
praticada nas comunidades dos fiéis.
1. Princípios
Os princípios que fundamentam
a prática da atualização são os seguintes: A atualização é possível, pois a
plenitude do sentido do texto bíblico dá-lhe valor para todas as épocas e todas
as culturas (cf Is 40,8; 66,18-21; Mt 28,19-20). A mensagem bíblica pode ao
mesmo tempo tornar relativos e fecundar os sistemas de valores e as normas de
comportamento de cada geração.
A atualização é necessária, pois,
se bem que a mensagem dos textos da Bíblia tenha um valor durável, estes foram
redigidos em função de circunstâncias passadas e em uma linguagem condicionada
por diversas épocas. Para manifestar o alcance que eles têm para os homens e as
mulheres de hoje, é necessário aplicar a mensagem desses textos às
circunstâncias presentes e exprimi-la em uma linguagem adaptada à época atual.
Isso pressupõe um esforço hermenêutico que visa discernir através do
condicionamento histórico os pontos essenciais da mensagem.
A atualização deve
constantemente levar em consideração as relações complexas que existem na Bíblia
cristã entre o Novo Testamento e o Antigo, pelo fato de que o Novo se apresenta
ao mesmo tempo como realização e ultrapassagem do Antigo. A atualização
efetua-se em conformidade com a unidade dinâmica assim constituída.
A atualização realiza-se graças ao dinamismo da tradição viva da comunidade de fé.
Esta situa-se explicitamente no prolongamento das comunidades onde a Escritura
nasceu e foi conservada e transmitida. Na atualização, a tradição tem um papel
duplo: ela procura, de um lado uma proteção contra as interpretações aberrantes;
ela assegura de outro lado a transmissão do dinamismo original.
Atualização não
significa assim a manipulação dos textos. Não se trata de projetar sobre os
escritos bíblicos opiniões ou ideologias novas, mas de procurar sinceramente a
luz que eles contêm para o tempo presente. O texto da Bíblia tem autoridade em
todos os tempos sobre a Igreja cristã e, se bem que passaram-se séculos desde
os tempos de sua composição, ele conserva seu papel de guia privilegiado que não
se pode manipular. O Magistério da Igreja « não está acima da Palavra de Deus,
mas ele a serve, ensinando somente aquilo que foi transmitido; por mandato de
Deus, com a assistência do Espírito Santo, ele a escuta com amor, conserva-a
santamente e explica-a com fidelidade » (Dei Verbum, 10).
2. Métodos
Partindo destes
princípios, pode-se utilizar diversos métodos de atualização.
A atualização, já
praticada no interior da Bíblia, prosseguiu em seguida na Tradição judaica
através de procedimentos que podem ser observados nos Targumim e Midrashim:
procura de passagens paralelas (gézérah shawah), modificação na leitura do texto
('al tiqerey), adoção de um segundo sentido (tartey mishma'), etc.
Enquanto isso,
os Padres da Igreja serviram-se da tipologia e da alegoria para atualizar os
textos bíblicos de uma maneira adaptada à situação dos cristãos do tempo deles.
Em nossa época, a atualização deve levar em conta a evolução das mentalidades e
o progresso dos métodos de interpretação.
A atualização pressupõe uma exegese
correta do texto, que determina o sentido literal dele. Se a pessoa que atualiza não tem ela mesma uma formação exegética, deve recorrer a bons guias de
leitura que permitam de bem orientar a interpretação.
Para bem conduzir a atualização, a interpretação da Escritura pela Escritura é o método mais seguro
e o mais fecundo, especialmente no caso dos textos do Antigo Testamento que
foram relidos no próprio Antigo Testamento (por exemplo, o maná de Ex 16 em
Sab
16,20-29) e/ou no Novo Testamento (Jo 6). A atualização de um texto bíblico na
existência cristã não pode ser feito corretamente sem se colocar em relação com
o mistério do Cristo e da Igreja. Não seria normal, por exemplo, propor a
cristãos, como modelos para uma luta de libertação, unicamente episódios do
Antigo Testamento (Êxodo; 1-2 Macabeus).
Inspirada nas filosofias
hermenêuticas, a operação hermenêutica vem em seguida e comporta três etapas: 1)
escutar a Palavra a partir da situação presente; 2) discernir os aspectos da
situação presente que o texto bíblico ilumina ou coloca em questão; 3) tirar da
plenitude de sentido do texto bíblico os elementos suscetíveis de fazer evoluir a
situação presente de uma maneira fecunda, conforme à vontade salvífica de Deus
no Cristo.
Graças à atualização, a Bíblia vem iluminar inúmeros problemas atuais,
por exemplo: a questão dos ministérios, a dimensão comunitária da Igreja, a
opção preferencial pelos pobres, a teologia da libertação, a condição da mulher.
A atualização pode também estar atenta a valores cada vez mais reconhecidos pela
consciência moderna como os direitos da pessoa, a proteção da vida humana, a
preservação da natureza, a aspiração à paz universal.
3. Limites
Para permanecer
de acordo com a verdade salvífica expressa na Bíblia, a atualização deve
respeitar certos limites e evitar possíveis desvios.
Se bem que toda leitura da
Bíblia seja forçosamente seletiva, as leituras tendenciosas devem ser
descartadas, isto é, aquelas que ao invés de serem dóceis ao texto só os
utilizam para fins limitados (como é o caso na atualização feita pelas seitas, a
dos Testemunhas de Jeová, por exemplo).
A atualização perde toda validade se ela
se baseia em princípios teóricos que estão em desacordo com as orientações
fundamentais do texto da Bíblia, como por exemplo, o racionalismo oposto à fé ou
o materialismo ateu.
É preciso eliminar também, evidentemente, toda atualização
orientada no sentido contrário à justiça e à caridade evangélicas, as mesmas
que, por exemplo, queriam basear a segregação racial, o antisemitismo ou o
sexismo, masculino ou feminino, sobre textos bíblicos. Uma atenção especial é
necessária, segundo o espírito do Concílio Vaticano II (Nostra aetate, 4), para
evitar absolutamente de atualizar certos textos do Novo Testamento em um sentido
que poderia provocar ou reforçar atitudes desfavoráveis em relação aos judeus.
Os acontecimentos trágicos do passado devem forçar, ao contrário, a lembrar sem cessar que
segundo o Novo Testamento os judeus permanecem « amados » por Deus, « porque os
dons e a vocação de Deus são sem arrependimento » (Rm 11,28-29).
Os desvios
serão evitados se a atualização parte de uma correta interpretação do texto e é
feita no decorrer da Tradição viva, sob a guia do Magistério eclesial.
De toda
maneira, os riscos de desvios não podem constituir uma objeção válida contra a
realização de uma tarefa necessária, isto é, a de fazer chegar a mensagem da
Bíblia até os ouvidos e o coração de nossa geração.
B. Inculturação
Ao esforço de atualização, que
permite à Bíblia de permanecer fecunda através da diversidade dos tempos,
corresponde, no que concerne a diversidade dos lugares, ao esforço de
inculturação que assegura o enraizamento da mensagem bíblica em terrenos os mais
diversos. Esta diversidade, aliás, nunca é total. Toda cultura autêntica é
portadora, à sua maneira, de valores universais fundados por Deus.
O fundamento
teológico da inculturação é a convicção de fé que a Palavra de Deus transcende
as culturas nas quais ela foi expressa e tem a capacidade de se propagar em
outras culturas, de maneira a atingir todas as pessoas humanas no contexto
cultural onde elas vivem. Esta convicção decorre da própria Bíblia que, desde o
livro do Gênesis, toma uma orientação universal (Gn 1,27-28), a mantém em
seguida na bênção prometida a todos os povos graças a Abraão e à sua descedência
(Gn 12,3; 18,18) e a confirma definitivamente estendendo a « todas as nações » a
evangelização cristã (Mt 28,18-20; Rm 4,16-17; Ef 3,6).
A primeira etapa da inculturação consiste em
traduzir em uma outra língua a Escritura inspirada.
Este primeiro passo foi dado desde os tempos do Antigo Testamento quando se
traduziu oralmente o texto hebreu da Bíblia em
aramaico (Ne 8,8.12) e, mais tarde, por escrito em grego. Uma tradução,
efetivamente, é sempre mais que uma simples transcrição do texto original. A
passagem de uma língua a uma outra comporta necessariamente uma mudança de
contexto cultural: os conceitos não são idênticos e o alcance dos símbolos é
diferente, pois eles colocam em relação com outras tradições de pensamento e
outras maneiras de viver.
Escrito em grego, o Novo Testamento é inteiramente
marcado por um dinamismo de inculturação, pois ele transpõe na cultura
judeo-helenística a mensagem palestina de Jesus, manifestando desta maneira uma
clara vontade de ultrapassar os limites de um ambiente cultural único.
Etapa
fundamental, a tradução dos textos bíblicos não pode, no entanto, ser suficiente
a assegurar uma verdadeira inculturação. Esta deve continuar graças a uma
interpretação que coloque a mensagem bíblica em relação mais explícita com as
maneiras de sentir, de pensar, de viver e de se exprimir próprias à cultura
local. Da interpretação passa-se em seguida a outras etapas da inculturação que
terminam na formação de uma cultura local cristã, estendendo-se a todas as
dimensões da existência (oração, trabalho, vida social, costumes, legislação,
ciências e artes, reflexão filosófica e teológica). A Palavra de Deus é,
efetivamente, uma semente que tira da terra, onde ela se encontra, os elementos
úteis ao seu crescimento e à sua fecundidade (cf
Ad Gentes, 22).
Consequentemente, os cristãos devem procurar discernir « quais riquezas Deus, em
sua generosidade, dispensou às nações; eles devem ao mesmo tempo fazer um
esforço para iluminar essas riquezas com a luz evangélica, de libertá-las, de
trazê-las sob a autoridade do Deus Salvador » (Ad Gentes, 11).
Não se trata, pode-se ver, de um
processo com sentido único, mas de uma « mútua fecundação » . De um lado as
riquezas contidas nas diversas culturas permitem à Palavra de Deus de produzir
novos frutos e de outro lado a luz da Palavra de Deus permite de fazer uma triagem naquilo que
trazem as culturas, para rejeitar os elementos nocivos e favorecer o
desenvolvimento dos elementos válidos. A total fidelidade à pessoa do Cristo, ao
dinamismo de seu mistério pascal e a seu amor pela Igreja faz evitar duas
soluções falsas: aquela da « adaptação » superficial da mensagem e aquela da
confusão sincretista (cf
Ad Gentes, 22).
No Oriente e no Ocidente cristãos a inculturação da Bíblia efetuou-se desde os primeiros séculos e manifestou uma
grande fecundidade. Não se pode, no entanto, nunca considerá-la como terminada.
Ela deve ser retomada constantemente, em relação com a continua evolução das
culturas. Nos países de evangelização mais recente, o problema coloca-se em
termos diferentes. Os missionários, efetivamente, levam necessariamente a
Palavra de Deus sob a forma na qual ela se inculturou no país de origem deles.
Grandes esforços devem ser realizados pelas novas Igrejas locais para passar
desta forma estrangeira de inculturação da Bíblia a uma outra forma, que
corresponda à cultura do próprio país.
C. Uso da Bíblia
1. Na liturgia
Desde os
primórdios da Igreja, a leitura das Escrituras fez parte integrante da liturgia
cristã, por um lado herdeira da liturgia sinagogal. Hoje ainda, é principalmente
pela liturgia que os cristãos entram em contato com as Escrituras,
particularmente durante a celebração eucarística do domingo.
Em princípio, a
liturgia, e especialmente a liturgia sacramental, onde a celebração eucarística
constitui o grau máximo, realiza a atualização mais perfeita dos textos
bíblicos, pois ela situa a proclamação no meio da comunidade dos fiéis reunida
em torno de Cristo a fim de se aproximar de Deus. Cristo é então « presente em
sua palavra, pois é ele mesmo quem fala quando as Santas Escrituras são lidas na igreja » (Sacrosanctum
Concilium, 7). O texto escrito volta assim a ser palavra viva.
A reforma
litúrgica decidida pelo Concilio Vaticano II esforçou-se em apresentar aos
católicos um alimento bíblico mais rico. Os três ciclos de leituras das missas
dominicais dão um lugar privilegiado aos Evangelhos, de maneira a colocar bem em
evidência o mistério de Cristo como princípio de nossa salvação. Colocando
regularmente um texto do Antigo Testamento em relação com o texto do Evangelho,
este ciclo muitas vezes sugere o caminho da tipologia para a interpretação
escriturária. Esta, sabe-se, não é a única leitura possível.
A homilia, que atualiza mais explicitamente a Palavra de Deus, faz parte integrante da
liturgia. Falaremos mais adiante a propósito do ministério pastoral.
O lecionário, saído das diretivas do Concilio (Sacrosanctum
Concilium, 35),
deveria permitir uma leitura da Santa Escritura « mais abundante, mais variada e
mais adaptada ». Em seu estado atual ele responde somente em parte a esta
orientação. No entanto, sua existência teve felizes efeitos ecumênicos. Em
alguns países ele mediu a falta de familiaridade dos católicos com a Escritura.
A liturgia da Palavra é um elemento decisivo na celebração de cada um dos
sacramentos da Igreja; ela não consiste em uma simples sucessão de leituras,
pois deve comportar igualmente tempos de silêncio e de oração. Esta liturgia, em
particular a Liturgia das Horas, recorre ao livro dos Salmos para colocar em
oração a comunidade cristã. Hinos e orações são todos impregnados da linguagem
bíblica e de seu simbolismo. Isto para dizer o quanto é necessário que a
participação à liturgia seja preparada e acompanhada por uma prática da leitura
da Escritura.
Se nas leituras « Deus dirige a palavra a seu povo » (Missal
romano, n. 33), a liturgia da Palavra exige um grande cuidado tanto para a
proclamação das leituras como para a interpretação delas. Assim, é desejável que
a formação dos futuros presidentes de assembléias e daqueles que os circundam
leve em conta as exigências de uma liturgia da Palavra de Deus fortemente
renovada. Assim, graças aos esforços de todos, a Igreja continuará a missão que
lhe foi confiada « de tomar o pão da vida sobre a mesa da Palavra de Deus bem
como sobre a mesa do Corpo do Cristo para oferecê-lo aos fiéis» (Dei Verbum, 21).
2. A lectio divina
A lectio divina é uma leitura, individual ou
comunitária, de uma passagem mais ou menos longa da Escritura acolhida como
Palavra de Deus e que se desenvolve sob a moção do Espírito em meditação, oração
e contemplação.
O cuidado de se fazer uma leitura regular, e mesmo cotidiana, da
Escritura corresponde a uma prática antiga na Igreja. Como prática coletiva, ela
é atestada no século III, na época de Orígenes; este fazia a homilia a partir de
um texto da Escritura lido continuadamente durante a semana. Havia então
assembléias cotidianas consagradas à leitura e à explicação da Escritura. Esta
prática, que foi abandonada posteriormente, não encontrava sempre um grande
sucesso junto aos cristãos (Orígenes, Hom. Gen. X,1).
A lectio divina como
prática sobretudo individual é atestada no ambiente monástico em seu
auge. No
período contemporâneo, uma Instrução da Comissão Bíblica aprovada pelo
papa Pio XII recomendou-a a todos os clérigos, tanto seculares como
regulares (De Scriptura Sacra, 1950;
E. B., 592). A insistência sobre a lectio divina sob seu
duplo aspecto, individual e comunitário, voltou assim a ser atual. A finalidade
que se procura é a de suscitar e de alimentar « um amor efetivo e constante » à
Santa Escritura, fonte de vida interior e de fecundidade apostólica (E. B., 591
e 567), de favorecer também uma melhor inteligência da liturgia e de assegurar à
Bíblia um lugar mais importante nos estudos teológicos e na oração.
A Constituição conciliar
Dei Verbum
(n. 25) insiste igualmente sobre a leitura assídua das Escrituras para os padres
e religiosos. Além disso — e é uma novidade — ela convida também « todos os
fiéis do Cristo » a adquirir « por uma frequente leitura das Escrituras divinas
"a eminente ciência de Jesus Cristo" (Fil 3,8) ». Diversos meios são propostos.
Ao lado de uma leitura individual é sugerida uma leitura em grupo. O texto
conciliar sublinha que a oração deve acompanhar a leitura da Escritura, pois ela
é a resposta à Palavra de Deus encontrada na Escritura sob a inspiração do
Espírito. Numerosas iniciativas foram tomadas no povo cristão para uma leitura
comunitária e só se pode encorajar esse desejo de um melhor conhecimento de Deus
e de seu plano de salvação em Jesus Cristo através das Escrituras.
3. No
ministério pastoral
Recomendado pela
Dei Verbum (n. 24), o freqüente recurso à
Bíblia no ministério pastoral toma diversas formas dependendo do gênero de
hermenêutica da qual se servem os pastores e que os fiéis podem compreender.
Pode-se distinguir três situações principais: a catequese, a pregação e o
apostolado bíblico. Numerosos fatores intervêm, no que se refere ao nível geral
de vida cristã.
A explicação da Palavra de Deus na catequese —
Sacros. Conc.,
35; Direct. catéch. gén., 1971, 16 — tem como primeira fonte a Santa Escritura
que, explicada no contexto da Tradição, fornece o ponto de partida, o fundamento
e a norma de ensinamento catequético. Uma das finalidades da catequese deveria
ser a de introduzir a uma justa compreensão da Bíblia e à sua leitura frutuosa,
que permitam descobrir a verdade divina que ela contém e que suscitem uma
resposta, a mais generosa possível, à mensagem que Deus dirige por sua palavra à
humanidade.
A catequese deve partir do contexto
histórico da revelação divina para apresentar personagens e acontecimentos do
Antigo e do Novo Testamento à luz do plano de Deus.
Para passar do texto bíblico ao suo
significado de salvação para o tempo presente, utiliza-se hermenêuticas variadas
que inspiram diversos gêneros de comentários. A fecundidade da catequese depende
do valor da hermenêutica empregada. O perigo consiste em se contentar de um
comentário superficial que permaneça em uma consideração cronológica sobre a
sucessão dos acontecimentos e dos personagens da Bíblia.
A catequese pode
evidentemente explorar apenas uma pequena parte dos textos bíblicos. Geralmente
ela utiliza sobretudo os relatos, tanto no Novo como no Antigo Testamento. Ela
insiste sobre o Decálogo. Ela deve cuidar em empregar igualmente os oráculos dos
profetas, o ensinamento sapiencial e os grandes discursos evangélicos como o
Sermão da montanha.
A apresentação dos Evangelhos deve ser feita de maneira a
provocar um encontro com o Cristo, que dá a chave de toda a revelação bíblica e
transmite o apelo de Deus, ao qual cada um deve responder. A palavra dos
profetas e aquela dos « ministros da Palavra » (Lc 1,2) devem aparecer como
dirigidas agora aos cristãos.
Observações análogas aplicam-se ao ministério da
pregação, que deve tirar dos textos antigos um alimento espiritual adaptado às
necessidades atuais da comunidade cristã.
Atualmente esse ministério exerce-se
sobretudo no fim da primeira parte da celebração eucarística, pela homilia que
segue à proclamação da Palavra de Deus.
A explicação que se dá dos textos
bíblicos no decorrer da homilia não pode entrar em muitos detalhes. Convém,
então, colocar em evidência as contribuições principais desses textos, aqueles
que são os mais esclarecedores para a fé e os mais estimulantes para o progresso
da vida cristã, comunitária ou pessoal. Apresentando essas contribuições, é
preciso fazer uma atualização e uma inculturação, segundo o que foi dito acima.
A este efeito são necessários princípios hermenêuticos válidos. Uma falta de
preparação neste domínio provoca uma tentativa de renúncia a um aprofundamento das leituras bíblicas e contenta-se
em moralizar ou em falar de questões atuais sem iluminá-las pela Palavra de
Deus.
Em diversos países, publicações foram feitas com o auxílio de exegetas
para ajudar os responsáveis pastorais a interpretar corretamente as leituras
bíblicas da liturgia e a atualizá-las de maneira válida. É desejável que
esforços semelhantes sejam generalizados.
Uma insistência unilateral sobre as
obrigações que se impõem aos fiéis deve seguramente ser evitada. A mensagem
bíblica deve conservar seu caráter principal de boa nova da salvação oferecida
por Deus. A pregação fará trabalho mais útil e mais conforme à Bíblia se ele
ajudar primeiramente os fiéis a « conhecer o dom de Deus » (Jo 4,10), tal como
ele é revelado na Escritura, e a compreender de maneira positiva as exigências
que decorrem disso.
O apostolado bíblico tem como objetivo fazer conhecer a
Bíblia como Palavra de Deus e fonte de vida. Em primeiro lugar ele favorece a
tradução da Bíblia nas línguas mais diversas e a difusão dessas traduções. Ele
suscita e sustenta numerosas iniciativas: formação de grupos bíblicos,
conferências sobre a Bíblia, semanas bíblicas, publicação de revistas e de
livros, etc.
Uma importante contribuição
é trazida por associações e movimentos eclesiais, que colocam em
primeiro plano a leitura da Bíblia em uma perspectiva
de fé e de engajamento cristão. Numerosas « comunidades de base »
centralizam
suas reuniões sobre a Bíblia e se propõem um triplo objetivo: conhecer a
Bíblia,
construir a comunidade e servir o povo. Aqui também a ajuda de exegetas é
útil
para evitar atualizações mal fundadas. Mas deve-se alegrar em ver a
Bíblia
tomada por mãos de gente humilde, dos pobres, que podem trazer à sua
interpretação e à sua atualização uma luz mais penetrante do ponto de
vista
espiritual e existencial do que aquela que vem de uma ciência segura
dela mesma
(cf Mt 11,25).
A importância sempre crescente dos meios de comunicação de massa
(« mass-media »), imprensa, rádio, televisão, exige que o anúncio da Palavra de
Deus e o conhecimento da Bíblia sejam propagados ativamente por estes meios.
Seus aspectos bem particulares e, de outro lado, a influência sobre públicos
muito vastos, requerem para a utilização desses meios uma preparação específica
que permita evitar as improvisações lamentáveis assim como os efeitos
espetaculares de má qualidade.
Que se trate de catequese, de pregação ou de
apostolado bíblico, o texto da Bíblia deve sempre ser apresentado com o
respeito que ele merece.
4. No ecumenismo
Se o ecumenismo, enquanto movimento
específico e organizado, é relativamente recente, a idéia de unidade do povo de
Deus, que esse movimento se propõe de restaurar, é profundamente enraizado na
Escritura. Tal objetivo era a preocupação constante do Senhor (Jo 10,16;
17,11.20-23). Ele supõe a união dos cristãos na fé, na esperança e na caridade (Ef
4,2-5), no respeito mútuo (Fil 2,1-5) e a solidariedade (1 Co 12,14-27;
Rm
12,4-5) mas também e sobretudo a união orgânica ao Cristo, à maneira dos
sarmentos e da vinha (Jo 15,4-5), dos membros e da cabeça (Ef 1,22-23; 4,12-16).
Esta união deve ser perfeita, à imagem daquela do Pai e do Filho (Jo 17,11.22);
a Escritura define seu fundamento teológico (Ef 4,4-6; Gal 3,27-28). A primeira
comunidade apostólica é um modelo concreto e vivo dessa união (At 2,44; 4,32).
A
maior parte dos problemas que enfrenta o diálogo ecumênico tem relação com a
interpretação de textos bíblicos. Alguns desses problemas são de ordem
teológica: a escatologia, a estrutura da Igreja, o primado e a colegialidade, o
casamento e o divórcio, a atribuição do sacerdócio ministerial às mulheres, etc.
Outros são de ordem canônica e jurisdicional; eles concernem à administração da
Igreja universal e das Igrejas locais. Outros, enfim, são de ordem estritamente
bíblica: a lista dos livros canônicos, algumas questões hermenêuticas, etc.
Se bem que ela não possa ter a
pretensão de resolver sozinha todos esses problemas, a exegese bíblica é chamada
a trazer ao ecumenismo uma importante contribuição. Progressos notáveis já foram
realizados. Graças à adoção dos mesmos métodos e de metas hermenêuticas
análogas, os exegetas de diversas confissões cristãs chegaram a uma grande
convergência na interpretação das Escrituras, como o mostram o texto e as notas
de diversas traduções ecumênicas da Bíblia, assim como em outras publicações.
Deve-se reconhecer, aliás, que em pontos particulares as divergências na
interpretação das Escrituras são muitas vezes estimulantes e podem se revelar
complementares e enriquecedoras. É o caso quando elas exprimem os valores das
tradições particulares de diversas comunidades cristãs e traduzem assim os
múltiplos aspectos do Mistério de Cristo.
Como a Bíblia é a base comum da regra
de fé, o imperativo ecumênico comporta para todos os cristãos um apelo premente
a reler os textos inspirados na docilidade ao Espírito Santo, na caridade, na
sinceridade, na humildade, a meditar esses textos e a vivê-los de maneira a
chegar à conversão do coração e à santidade de vida, as quais, unidas à oração
para a unidade dos cristãos, são a alma de todo o movimento ecumênico (cf. Unitatis redintegratio, 8). Seria preciso para isso tornar acessível ao maior
número possível de cristãos a aquisição da Bíblia, encorajar as traduções
ecumênicas — pois um texto comum ajuda uma leitura e uma compreensão comuns —
promover grupos de oração ecumênicos afim de contribuir com um testemunho
autêntico e vivo à realização da unidade na diversidade (cf Rm 12,4-5).
Do que foi dito no
decorrer desta longa exposição — que no entanto continua breve demais sobre
vários pontos — a primeira conclusão que se salienta é que a exegese bíblica
preenche, na Igreja e no mundo, uma tarefa indispensável. Querer se dispensar
dela para compreender a Bíblia seria ilusão e manifestaria urna falta de
respeito para com a Escritura inspirada.
Pretendendo reduzir os exegetas ao
papel de tradutores (ou ignorando que traduzir a Bíblia já é fazer obra de
exegese) e recusando de segui-los em seus estudos, os fundamentalistas não se
dão conta de que, por um louvável cuidado de inteira fidelidade à Palavra de
Deus, em realidade eles entram em caminhos que os afastam do sentido exato dos
textos bíblicos assim como da plena aceitação das consequências da Encarnação. A
Palavra eterna encarnou-se em uma época precisa da história, em um ambiente
social e cultural bem determinado. Quem deseja entendê-la deve humildemente
procurá-la lá onde ela se tornou perceptível, aceitando a ajuda necessária do
saber humano. Para falar aos homens e às mulheres, desde a época do Antigo
Testamento, Deus explorou todas as possibilidades da linguagem humana, mas ao
mesmo tempo ele teve também que submeter sua palavra a todos os condicionamentos
dessa linguagem. O verdadeiro respeito pela Escritura inspirada exige que sejam
realizados todos os esforços necessários para que se possa compreender bem seu
sentido. Seguramente não é possível que cada cristão faça pessoalmente as
pesquisas de todos os gêneros que permitam compreender melhor os textos
bíblicos. Esta tarefa é confiada aos exegetas, responsáveis nesse setor pelo
bem de todos.
Uma segunda conclusão é que a natureza mesma dos textos bíblicos
exige que para interpretá-los, continue-se o emprego do método histórico-crítico,
ao menos em suas operações principais. A Bíblia, efetivamente, não se
apresenta como uma revelação direta de verdades atemporais, mas como a atestação
escrita de uma série de intervenções pelas quais Deus se revela na história
humana. A diferença de doutrinas sagradas de outras religiões, a mensagem
bíblica é solidamente enraizada na história. Conclui-se que os escritos bíblicos
não podem ser corretamente compreendidos sem um exame de seu condicionamento
histórico. As pesquisas « diacrônicas » serão sempre indispensáveis à exegese.
Qualquer que seja o interesse das abordagens « sincrônicas », elas não estão à
altura de substitui-las. Para funcionar de maneira fecunda, estas devem
primeiramente aceitar as conclusões das outras, pelo menos em suas grandes
linhas.
Mas, uma vez preenchida esta condição, as abordagens sincrônicas
(retórica, narrativa, semiótica e outras) são suscetíveis de renovar em parte a
exegese e de dar uma contribuição muito útil. O método histórico-crítico,
efetivamente, não pode pretender o monopólio. Ele deve ser consciente de seus
limites, assim como dos perigos que o espreitam. Os desenvolvimentos
recentes
das hermenêuticas filosóficas e, de outro lado, as observações que
pudemos fazer
sobre a interpretação na Tradição Bíblica e na Tradição da Igreja
colocaram em
evidência vários aspectos do problema da interpretação que o método
histórico-crítico tinha tendência a ignorar. Preocupado, efetivamente,
em bem
fixar o sentido dos textos, situando-os no contexto histórico original
deles,
este método mostra-se algumas vezes insuficientemente atento ao aspecto
dinâmico
do significado e às possibilidades de desenvolvimento do sentido. Quando
ele não
vai até o estudo da redação, mas se absorve unicamente nos problemas de
fontes e
de estratificação dos textos, ele não preenche completamente a tarefa
exegética.
Por fidelidade à grande Tradição, da qual a própria Bíblia é testemunha, a
exegese católica deve evitar tanto quanto possível esse gênero de deformação
profissional e manter sua identidade de disciplina teológica, cuja finalidade
principal é o aprofundamento da fé. Isso não significa ter um
compromisso menor com uma pesquisa científica mais rigorosa, nem a deformaçãos
dos métodos por preocupações apologéticas. Cada setor da pesquisa (crítica
textual, estudos linguísticos, análises literárias, etc.) tem suas próprias
regras, que é preciso seguir com toda autonomia. Mas nenhuma dessas
especialidades é uma finalidade em si mesma. Na organização de conjunto da
tarefa exegética, a orientação em direção à finalidade principal deve permanecer
efetiva e evitar os desperdícios de energia. A exegese católica não tem o
direito de se parecer com um curso d'água que se perde nas areias de uma análise
hiper-crítica. Ela deve preencher na Igreja e no mundo uma função vital, isto é,
de contribuir a uma transmissão mais autêntica do conteúdo da Escritura
inspirada.
É bem a esta finalidade que
tendem desde já seus esforços, em ligação
com a renovação das outras disciplinas teológicas e com o trabalho
pastoral de atualização e de inculturação da Palavra de Deus. Examinando
a problemática
atual e exprimindo algumas reflexões a esse respeito, a presente
exposição
espera ter facilitado a todos uma tomada de consciência mais clara do
papel dos
exegetas católicos.
Roma, 15 de Abril de 1993.
Notas
(1) Por « método » exegético compreendemos um
conjunto de procedimentos científicos colocados em ação para explicar os textos.
Falamos de « abordagem », quando se trata de uma pesquisa orientada segundo um
ponto de vista particular.
(2) O texto desta última alínea foi escolhido por 11
votos favoráveis entre 19 votantes; 4 votaram contra e 4 se abstiveram. Os
oponentes pediram que o resultado da votação fosse publicado com o texto. A
Comissão comprometeu-se em fazê-lo.
(3) A hermenêutica da Palavra desenvolvida por
Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs parte de uma outra abordagem e depende de um outro
campo de pensamento. Trata-se mais de uma teologia hermenêutica do que uma
filosofia hermenêutica. Ebeling está de acordo, no entanto, com autores tais
como Bultmann e Ricoeur para afirmar que a Palavra de Deus só acha plenamente
seu sentido quando encontra aqueles aos quais ela se dirige.