Material
didático: apostila de Teologia Sistemática 2, do Prof. Dr. Nelson Célio Rocha
Aluno Prof. Alan Francisco de Souza Lemos
Síntese da
obra salvífica de Jesus Cristo
O
NT pergunta: Quem é Cristo e qual sua
função? “Jesus é designado no Novo Testamento de tantos modos, com vários
títulos, entretanto, não podendo abarcar a totalidade de sua pessoa e obra, por
si somente, num aspecto particular de sua pessoa. Todos os títulos encontram
sua unidade na pessoa de Jesus” (p. 57, ls. 8-10).
1 - A
obra terrena de Jesus
a) O profeta (πρoφήτης, prophḗtēs, איבנ, NABI)
Jesus era o próprio Deus falando,
como Profeta. O próprio conceito de profeta, no contexto judaico (p. 58, l.1),
cabia muito bem a Jesus: “homens visitados pelo Espírito Santo de Deus, que
recebiam de Deus uma vocação particular, segundo se pode verificar no Antigo
Testamento”. Este conceito, porém, destoava bastante de outros títulos
atribuídos a Jesus e que promanaram das culturas grega e egípcia. Jesus não era
um adivinho de adivinhações particulares ou “sob encomenda” (o anunciador do
mundo helênico, πρoφήτης), mas falava a todo o povo e, por extensão, a toda a
humanidade, em todos os tempos, já que, por ser o Criador, o Redentor e o
Consumador de todas as coisas (João 1:3),
falou à Criação. Assim também Jesus é o NABI, איבנ, o Áugure-mor que substituiu
o alvo da esperança escatológica dos judeus de seu tempo, a saber, os textos
dos antigos profetas (Joel 2:28ss). Todos
estes profetas apontam para Jesus. Todas as suas profecias, dalgum modo,
complementam-se, suplementam-se ou replementam-se no Evento-Cristo. Como o
próprio Prof. Dr. Nelson Célio afirma em sua apostila, Jesus não era um profeta, mas o profeta; isto porque seu ministério era redentivo, único, suficiente
e exemplar: “Esperava-se para o fim dos tempos um profeta único em que se
realizaria toda a profecia anterior” (p. 58, ls. 24,25). Além disto, é no
Evento-Cristo que todos os outros eventos históricos, todas as profecias,
enfim, toda a Revelação ganha o completo e verdadeiro sentido, pois Ele é a
consumação de todas as coisas (Mateus 13:40,
49; 28:20; Romanos 9:28; 1Coríntios 2:9; Hebreus 5:9; 9:26; 12:2; 2Pedro
3:10), como nos admoesta muito bem Horácio Simian-Yofre, citando o então
cardeal Josef Ratzinger[1]:
“O princípio que funda essa continuidade é que
somente a finalidade obtida e um processo permite entender o próprio processo.
O ‘sentido que se manifesta no fim do movimento vai além do sentido que se
podia extrair em qualquer etapa do percurso’ (p. 119). Na terminologia
escolástica, isso significaria que a
causa final precede à inteligibilidade das causas eficientes. Transferindo
esse princípio à compreensão da história, pode-se concluir legitimamente que ‘a
ação de Deus surge... como princípio de inteligibilidade da história’ (ibid.). Transferindo uma vez mais esse
princípio ao estudo da Bíblia (sic),
significaria que ‘o princípio que confere
sentido à história é o evento histórico do Cristo... Toda a história e toda a
Escritura devem ser pensadas a partir dessa ação’ do Cristo (ibid.)” – grifo meu.
Importa, outrossim e destarte,
atinar para o fato conhecido de que, na cultura judaica do início do primeiro
milênio, era comum a expectativa do retorno ou da revisitação dalgum profeta
antigo; por isto, muitos diziam que Jesus era Elias ou mesmo João Batista) –
cf. Mateus 16:15ss e par.; Deuteronômio 18:15; Malaquias 4:5; Atos dos apóstolos 3:22ss; 7:37). Assim, “A
ideia do retorno à terra do mesmo profeta contribuiu para favorecer a certeza
de que Jesus voltaria no fim do mundo” (p. 58, ls. 35,36) – o profeta do fim
dos tempos (Mateus 21:46; 23:37; Marcos 6:4,14; Lucas 7:16). Assim, as obras de Jesus são as mesmas que os textos
judaicos atribuíam à figura do profeta: operação de milagres, juntar as tribos
de Israel, vencer as potências deste mundo e lutar contra o anticristo (p. 61,
ls. 26-28).
A figura do profeta se atrela à
do servo sofredor quando entendemos que, para o áugure divino, o sofrimento não
é mais que uma consequência de sua pregação. É a característica principal do
mártir cristão: sua pregação e seu ensino prendem-se por completo ao ato de ter
consciência de que é necessário sofrer e morrer por seu povo.
b) O servo de Deus (“Ebed Yahvé”, O Servo de Deus)
Jesus,
como Servo de Deus, não abriu sua boca (Servo Sofredor – cf. Isaías 53). Como diz o autor: “Servo de Deus é um dos títulos mais
antigos relacionados à pessoa e à obra de Jesus” (p. 57, l. 12). Este segundo “ministério”
de Jesus pode ser grosso modo
sintetizado no conceito de substituição
(à luz do sacrifício substitutivo judaico antigo no qual o cordeiro, imolado,
morto, era o sucedâneo do pecador, levando sobre si os pecados deste último.
A figura do Ebed Yahvé pode ser analisada, diacrônica e sincronicamente, de
duas maneiras: no judaísmo e no cristianismo antigos.
Quanto ao judaísmo antigo, no AT,
pode-se encontrar tal personagem nos seguintes textos: Isaías 42:1-4; 49:1-7; 50:4-11; 52:13-53:12 (textos do Dêutero ou mesmo do Trito-Isaías). “Estes textos são importantes para se compreender o
significado do batismo de Jesus, e também porque o Evangelho de Mateus contém citações de Isaias (Mt 12.18ss)”. Malgrado tentarem atrelar o Servo do Senhor ao Filho de Davi ou ao Moisés redivivo,
ao próprio profeta-protagonista ou a uma especificada coletividade (Isaías 49:3) – como era comum no pensamento
semita -, é de maior consenso que a figura do Servo aponta para Cristo; a maioria não tem a menor dúvida sobre
isto.
“A história da
salvação se desenvolve do começo ao fim segundo o princípio da substituição,
segundo a forma de uma redução progressiva: da criação total, se passa à
humanidade; da humanidade ao povo de Israel; do Povo de Israel ao resto; do remanescente
a um só homem, Jesus.
Esse desenvolvimento da história da salvação é
prefigurado pelo Ebed Yahvé, que é por
sua vez: ‘resto’ e ‘indivíduo’.
O Ebed Yahvé é o Servo de Deus que sofre.
Pelo seu sofrimento se substitui a um grande número de homens que deveriam
sofrer em seu lugar. Assim, a Aliança concluída por Deus com seu povo é
restabelecida, graças à obra substitutiva do Ebed. Ele é o mediador [2] desta aliança.” (pp. 57,58).
Assim, “O sofrimento do Profeta é consequente da
sua pregação; já o do Ebed Yahvé é consequente
de sua missão” (p. 58). Da mesma maneira, Jesus, como o Bom Pástor (João 10:8,12,18), “dá a vida pelas ovelhas”, e isto não é aceito
pelos judeus, por não concernir ao modelo messiânico político. Jesus sabia que
deveria morrer (Marcos 2:18ss)
Já quanto ao cristianismo primitivo,
são poucas as passagens bíblicas que esboçam Jesus como o Servo de Deus: Mateus
8:16ss (cf. Isaías 53:4); João 1.29; 2.19ss; 3.14,16; 10.11,17; 1Pedro 2:21; Romanos 5:12ss; 10:16; 15:3, 21; 1Coríntios 5:7; Filipenses
2:6ss, 19 (cf. Isaías 53:11). Em
todas elas, os hagiógrafos neotestamentários mostram Jesus como o Cristo Sofredor,
que cura e caminha valorosamente para seu martírio[3].
“Podemos afirmar que em
Atos temos a solução mais antiga do problema cristológico (At 8.26). Prova que
Jesus havia sido explicitamente identificado como o Ebed Yahvé no Sec. I, e que
o próprio Jesus havia compreendido a sua missão” (p. 60)
Desta maneira, o NT propõe a
inseparabilidade entre a cruz e a ressurreição. A cristologia do Servo é a principal chave de leitura
cristológica.
“A
noção do Ebed Yahvé caracteriza a obra e a pessoa do Jesus histórico de uma
maneira perfeitamente concorde ao testemunho cristológico do Novo Testamento.
A
obra do Ebed Yahvé, por si mesma, basta como obra terrena, que anuncia em
virtude de seu caráter decisivo as consequências que têm mais a ver com a obra
terrenal de Jesus. Pode, perfeitamente, aliar-se às noções que fazem ressaltar
a obra do Cristo presente, futuro e pré-existente” (p. 61).
c) O Sumo Sacerdote (ἀrciereῦs)
Como
Sumo Sacerdote, Jesus foi sacrificante e sacrifício simultaneamente. A figura
do Sumo Sacerdote é judaica. Relaciona-se somente com o ministério terreno de
Jesus[4] e
é tipo do lendário Melquisedeque (Gênesis
14:18ss; Salmos 110:4; Hebreus 7). Mas Jesus não é apenas o
Sumo Sacerdote; é também Rei; por isso, muitos O consideraram o Rei-Sacerdote, figura próxima a do Mestre da Justiça (Testamento dos Doze Patriarcas, Levi 18).
“O judaísmo conhecia um
sacerdote ideal que devia consumar ao final dos tempos o sacerdócio judaico,
como único e verdadeiro sacrificador.
O Sumo Sacerdote, o verdadeiro mediador entre Deus e o seu povo,
ocupava uma posição soberanamente elevada. O judaísmo possuía na pessoa do Sumo
Sacerdote um homem que já podia satisfazer, dentro do quadro cultual, a
necessidade do povo, de um contato com Deus.
Mas, o sacerdote existente decepcionava as altas esperanças do povo. O
povo aguardava com ansiedade um novo tempo, onde haveria a consumação de todas
as coisas. Destarte, é importante
perceber como essa noção do Sumo Sacerdote foi transferida para Jesus” (p. 63).
Eis outros textos utilizados: Mateus 12:6; Marcos 14:58; João
2:19,21.
“Jesus critica a
prática sacerdotal que não condiz com a realidade do Reino de Deus. Essa
crítica fazia parelha com a esperança de um sacerdote ideal, segundo o Salmo
110, que enfatiza o ‘Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque’. É um
competidor contra o Sumo Sacerdote.
Esse tipo de
sacerdote a Igreja identificou na pessoa de Jesus, o cumprimento do Salmo 110,
constituindo-se importância capital para a Igreja Primitiva. Assim, foi de
grande importância para o desenvolvimento da consciência que Jesus passou a ter
de si mesmo: sabia que ele era o Rei-Sacerdote ‘segundo a ordem de
Melquisedeque’” (p. 63).
Para os judeus, o sacerdócio era
passageiro e imperfeito, mas, em Jesus Cristo, anunciou-se o sacerdócio que
sobrepuja a imperfeição, como Hebreus
mostra.
[1] “L’interpretazione bíblica in conflito”, tradução a
partir do francês de seu texto original “Schriftauslegung im Widerstreit. Zur Frage nach
Grundlagen und Weg der Exegese heute” em RATZINGER, J. Schriftauslegung im Widerstreit (Quaestiones disputatae 117),
Feiburg-Basel-Wien, 1989, pp. 15-44. In:
SIMIAN-YOFRE, H (Org.). Metodologia
do Antigo Testamento, 2ª edição,
Loyola, São Paulo, 2000, p. 22. [Título original: Metodologia dell’Antico Testamento, Centro Editoriale Dehoniano,
Bologna, 1994.]
[2] Cf. a função do
Mediador em de João Calvino: As
Institutas ou Tratado da Religião Cristã, Volume II, páginas 101-127 e
230-300. O autor afirma que Cristo é único Mediador da redenção da humanidade
eleita.
[3] Dietrich
Bonhoeffer im August, teólogo-mártir alemão nascido em 1906, em sua obra Tentação [Versuchung. Bearbeitet und
hrsg. von Eberhard Bethge. 3. Auflage. Kaiser,
München 1956],
vê, no Ebed, o Cristo Pro Nobis, isto é, para / por nós.
[4] Os adventistas,
porém, creem que este sacerdócio jesuíno ganha complemento na sua “atividade”
no céu, onde Ele prepara o Santuário Celestia para nós.