quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Síntese da obra salvífica de Jesus Cristo _ Primeira parte: A obra terrena de Jesus Cristo


Material didático: apostila de Teologia Sistemática 2, do Prof. Dr. Nelson Célio Rocha
Aluno Prof. Alan Francisco de Souza Lemos






Síntese da obra salvífica de Jesus Cristo


          O NT pergunta: Quem é Cristo e qual sua função? “Jesus é designado no Novo Testamento de tantos modos, com vários títulos, entretanto, não podendo abarcar a totalidade de sua pessoa e obra, por si somente, num aspecto particular de sua pessoa. Todos os títulos encontram sua unidade na pessoa de Jesus” (p. 57, ls. 8-10).

1          -           A obra terrena de Jesus

a)      O profeta (πρoφήτης, prophḗtēs, איבנ, NABI)
Jesus era o próprio Deus falando, como Profeta. O próprio conceito de profeta, no contexto judaico (p. 58, l.1), cabia muito bem a Jesus: “homens visitados pelo Espírito Santo de Deus, que recebiam de Deus uma vocação particular, segundo se pode verificar no Antigo Testamento”. Este conceito, porém, destoava bastante de outros títulos atribuídos a Jesus e que promanaram das culturas grega e egípcia. Jesus não era um adivinho de adivinhações particulares ou “sob encomenda” (o anunciador do mundo helênico, πρoφήτης), mas falava a todo o povo e, por extensão, a toda a humanidade, em todos os tempos, já que, por ser o Criador, o Redentor e o Consumador de todas as coisas (João 1:3), falou à Criação. Assim também Jesus é o NABI, איבנ, o Áugure-mor que substituiu o alvo da esperança escatológica dos judeus de seu tempo, a saber, os textos dos antigos profetas (Joel 2:28ss). Todos estes profetas apontam para Jesus. Todas as suas profecias, dalgum modo, complementam-se, suplementam-se ou replementam-se no Evento-Cristo. Como o próprio Prof. Dr. Nelson Célio afirma em sua apostila, Jesus não era um profeta, mas o profeta; isto porque seu ministério era redentivo, único, suficiente e exemplar: “Esperava-se para o fim dos tempos um profeta único em que se realizaria toda a profecia anterior” (p. 58, ls. 24,25). Além disto, é no Evento-Cristo que todos os outros eventos históricos, todas as profecias, enfim, toda a Revelação ganha o completo e verdadeiro sentido, pois Ele é a consumação de todas as coisas (Mateus 13:40, 49; 28:20; Romanos 9:28; 1Coríntios 2:9; Hebreus 5:9; 9:26; 12:2; 2Pedro 3:10), como nos admoesta muito bem Horácio Simian-Yofre, citando o então cardeal Josef Ratzinger[1]:
“O princípio que funda essa continuidade é que somente a finalidade obtida e um processo permite entender o próprio processo. O ‘sentido que se manifesta no fim do movimento vai além do sentido que se podia extrair em qualquer etapa do percurso’ (p. 119). Na terminologia escolástica, isso significaria que a causa final precede à inteligibilidade das causas eficientes. Transferindo esse princípio à compreensão da história, pode-se concluir legitimamente que ‘a ação de Deus surge... como princípio de inteligibilidade da história’ (ibid.). Transferindo uma vez mais esse princípio ao estudo da Bíblia (sic), significaria que ‘o princípio que confere sentido à história é o evento histórico do Cristo... Toda a história e toda a Escritura devem ser pensadas a partir dessa ação’ do Cristo (ibid.)” – grifo meu.
Importa, outrossim e destarte, atinar para o fato conhecido de que, na cultura judaica do início do primeiro milênio, era comum a expectativa do retorno ou da revisitação dalgum profeta antigo; por isto, muitos diziam que Jesus era Elias ou mesmo João Batista) – cf. Mateus 16:15ss e par.; Deuteronômio 18:15; Malaquias 4:5; Atos dos apóstolos 3:22ss; 7:37). Assim, “A ideia do retorno à terra do mesmo profeta contribuiu para favorecer a certeza de que Jesus voltaria no fim do mundo” (p. 58, ls. 35,36) – o profeta do fim dos tempos (Mateus 21:46; 23:37; Marcos 6:4,14; Lucas 7:16). Assim, as obras de Jesus são as mesmas que os textos judaicos atribuíam à figura do profeta: operação de milagres, juntar as tribos de Israel, vencer as potências deste mundo e lutar contra o anticristo (p. 61, ls. 26-28).
A figura do profeta se atrela à do servo sofredor quando entendemos que, para o áugure divino, o sofrimento não é mais que uma consequência de sua pregação. É a característica principal do mártir cristão: sua pregação e seu ensino prendem-se por completo ao ato de ter consciência de que é necessário sofrer e morrer por seu povo.

b)     O servo de Deus (“Ebed Yahvé”, O Servo de Deus)
          Jesus, como Servo de Deus, não abriu sua boca (Servo Sofredor – cf. Isaías 53). Como diz o autor: “Servo de Deus é um dos títulos mais antigos relacionados à pessoa e à obra de Jesus” (p. 57, l. 12). Este segundo “ministério” de Jesus pode ser grosso modo sintetizado no conceito de substituição (à luz do sacrifício substitutivo judaico antigo no qual o cordeiro, imolado, morto, era o sucedâneo do pecador, levando sobre si os pecados deste último.
          A figura do Ebed Yahvé pode ser analisada, diacrônica e sincronicamente, de duas maneiras: no judaísmo e no cristianismo antigos.
          Quanto ao judaísmo antigo, no AT, pode-se encontrar tal personagem nos seguintes textos: Isaías 42:1-4; 49:1-7; 50:4-11; 52:13-53:12 (textos do Dêutero ou mesmo do Trito-Isaías). “Estes textos são importantes para se compreender o significado do batismo de Jesus, e também porque o Evangelho de Mateus contém citações de Isaias (Mt 12.18ss)”. Malgrado tentarem atrelar o Servo do Senhor ao Filho de Davi ou ao Moisés redivivo, ao próprio profeta-protagonista ou a uma especificada coletividade (Isaías 49:3) – como era comum no pensamento semita -, é de maior consenso que a figura do Servo aponta para Cristo; a maioria não tem a menor dúvida sobre isto.

“A história da salvação se desenvolve do começo ao fim segundo o princípio da substituição, segundo a forma de uma redução progressiva: da criação total, se passa à humanidade; da humanidade ao povo de Israel; do Povo de Israel ao resto; do remanescente a um só homem, Jesus.
Esse desenvolvimento da história da salvação é prefigurado pelo Ebed Yahvé, que é por sua vez: ‘resto’ e ‘indivíduo’.
O Ebed Yahvé é o Servo de Deus que sofre. Pelo seu sofrimento se substitui a um grande número de homens que deveriam sofrer em seu lugar. Assim, a Aliança concluída por Deus com seu povo é restabelecida, graças à obra substitutiva do Ebed. Ele é o mediador [2]  desta aliança.” (pp. 57,58).

          Assim, “O sofrimento do Profeta é consequente da sua pregação; já o do Ebed Yahvé é consequente de sua missão” (p. 58). Da mesma maneira, Jesus, como o Bom Pástor (João 10:8,12,18), “dá a vida pelas ovelhas”, e isto não é aceito pelos judeus, por não concernir ao modelo messiânico político. Jesus sabia que deveria morrer (Marcos 2:18ss)
            Já quanto ao cristianismo primitivo, são poucas as passagens bíblicas que esboçam Jesus como o Servo de Deus: Mateus 8:16ss (cf. Isaías 53:4); João 1.29; 2.19ss; 3.14,16; 10.11,17; 1Pedro 2:21; Romanos 5:12ss; 10:16; 15:3, 21; 1Coríntios 5:7; Filipenses 2:6ss, 19 (cf. Isaías 53:11). Em todas elas, os hagiógrafos neotestamentários mostram Jesus como o Cristo Sofredor, que cura e caminha valorosamente para seu martírio[3].
“Podemos afirmar que em Atos temos a solução mais antiga do problema cristológico (At 8.26). Prova que Jesus havia sido explicitamente identificado como o Ebed Yahvé no Sec. I, e que o próprio Jesus havia compreendido a sua missão” (p. 60)
            Desta maneira, o NT propõe a inseparabilidade entre a cruz e a ressurreição. A cristologia do Servo é a principal chave de leitura cristológica.
“A noção do Ebed Yahvé caracteriza a obra e a pessoa do Jesus histórico de uma maneira perfeitamente concorde ao testemunho cristológico do Novo Testamento.
A obra do Ebed Yahvé, por si mesma, basta como obra terrena, que anuncia em virtude de seu caráter decisivo as consequências que têm mais a ver com a obra terrenal de Jesus. Pode, perfeitamente, aliar-se às noções que fazem ressaltar a obra do Cristo presente, futuro e pré-existente” (p. 61).
               
           
c)      O Sumo Sacerdote (ἀrcieres)

Como Sumo Sacerdote, Jesus foi sacrificante e sacrifício simultaneamente. A figura do Sumo Sacerdote é judaica. Relaciona-se somente com o ministério terreno de Jesus[4] e é tipo do lendário Melquisedeque (Gênesis 14:18ss; Salmos 110:4; Hebreus 7). Mas Jesus não é apenas o Sumo Sacerdote; é também Rei; por isso, muitos O consideraram o Rei-Sacerdote, figura próxima a do Mestre da Justiça (Testamento dos Doze Patriarcas, Levi 18).
“O judaísmo conhecia um sacerdote ideal que devia consumar ao final dos tempos o sacerdócio judaico, como único e verdadeiro sacrificador.
O Sumo Sacerdote, o verdadeiro mediador entre Deus e o seu povo, ocupava uma posição soberanamente elevada. O judaísmo possuía na pessoa do Sumo Sacerdote um homem que já podia satisfazer, dentro do quadro cultual, a necessidade do povo, de um contato com Deus.  Mas, o sacerdote existente decepcionava as altas esperanças do povo. O povo aguardava com ansiedade um novo tempo, onde haveria a consumação de todas as coisas.  Destarte, é importante perceber como essa noção do Sumo Sacerdote foi transferida para Jesus” (p. 63).
            Eis outros textos utilizados: Mateus 12:6; Marcos 14:58; João 2:19,21.
“Jesus critica a prática sacerdotal que não condiz com a realidade do Reino de Deus. Essa crítica fazia parelha com a esperança de um sacerdote ideal, segundo o Salmo 110, que enfatiza o ‘Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque’. É um competidor contra o Sumo Sacerdote.
Esse tipo de sacerdote a Igreja identificou na pessoa de Jesus, o cumprimento do Salmo 110, constituindo-se importância capital para a Igreja Primitiva. Assim, foi de grande importância para o desenvolvimento da consciência que Jesus passou a ter de si mesmo: sabia que ele era o Rei-Sacerdote ‘segundo a ordem de Melquisedeque’” (p. 63).
               
Para os judeus, o sacerdócio era passageiro e imperfeito, mas, em Jesus Cristo, anunciou-se o sacerdócio que sobrepuja a imperfeição, como Hebreus mostra.



[1] “L’interpretazione bíblica in conflito”, tradução a partir do francês de seu texto original “Schriftauslegung im Widerstreit. Zur Frage nach Grundlagen und Weg der Exegese heute” em RATZINGER, J. Schriftauslegung im Widerstreit (Quaestiones disputatae 117), Feiburg-Basel-Wien, 1989, pp. 15-44. In: SIMIAN-YOFRE, H (Org.).  Metodologia do Antigo Testamento, 2ª edição,  Loyola, São Paulo, 2000, p. 22. [Título original: Metodologia dell’Antico Testamento, Centro Editoriale Dehoniano, Bologna, 1994.]
[2] Cf. a função do Mediador em de João Calvino: As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, Volume II, páginas 101-127 e 230-300. O autor afirma que Cristo é único Mediador da redenção da humanidade eleita.
[3] Dietrich Bonhoeffer im August, teólogo-mártir alemão nascido em 1906, em sua obra Tentação [Versuchung. Bearbeitet und hrsg. von Eberhard Bethge. 3. Auflage. Kaiser, München 1956], vê, no Ebed, o Cristo Pro Nobis, isto é, para / por nós.
[4] Os adventistas, porém, creem que este sacerdócio jesuíno ganha complemento na sua “atividade” no céu, onde Ele prepara o Santuário Celestia para nós.

EXEGESE DA SEGUNDA EPÍSTOLA UNIVERSAL DO APÓSTOLO SÃO JOÃO


Minhas observações sobre 2Jo.



            Pela exiguidade das duas últimas epístolas de João, dificilmente, estes textos seriam conservados no cânon. Porém, como a elas muitos autores antigos fizeram referências, como Policarpo (Phil. 7,1), Irineu (Adv. Haer. 1,16), o cânon Muratori, Tertuliano (De Carne Christi, 24), Prisciliano, Rufim, Agostinho etc., permaneceram na Bíblia.
            Segundo os estudiosos, esta epístola foi escrita por volta do ano 90 d.C.
Embora haja dúvidas quanto ao autor (ou autores) do material joanino (corpus joaninum) - o evangelho, as epístolas e o Apocalipse -, nas introduções, as três epístolas, são normalmente tratadas como uma unidade. Esta análise, que, agora, propomos, foca-se na Segunda João, mas, sempre que nos parecer necessário, agrupá-las-emos, pois não há qualquer razão convincente de que não provieram todas as três da mesma escola de tradição, ainda que mais de um autor tivesse se envolvido em sua escrita.
Tal como no caso das cartas Aos Hebreus e De Tiago, ainda que a primeira epístola de João seja chamada de “epístola”, nada há de epistolar na mesma. Mais, provavelmente, trata-se de um tratado, de uma dissertação, que visava uma situação particular na igreja, e não uma congregação ou um grupo de congregações cristãs, como se dá no caso de uma carta. Em contraste com isso, Segunda e Terceira João são, definitivamente, dotadas de natureza epistolar. A atração de todas as três, contudo, reside na simplicidade e no poder de seu testemunho, no sentido que Deus é amor (ἀgάph), e que a verdadeira espiritualidade consiste no amor. Estas cartas também atacam a heresia gnóstica incipiente; e, assim, juntamente com as chamadas epístolas pastorais, I e II Timóteo e Tito, II Pedro, Judas e Colossenses (e talvez até mesmo Efésios), elas se tornaram parte do que se tornou conhecido por literatura de heresia, isto é, a porção do N.T. que foi escrita para combater as primeiras heresias que surgiram no seio do cristianismo.[1] Essas epístolas de João também vieram a ser classificadas junto às epístolas católicas, alinhando-se ao lado das epístolas de Tiago, de I e II Pedro e de Judas. Todas elas recebem essa designação. O significado ordinariamente dado ao termo católica, quando aplicado a essas epístolas, é que tencionavam ser universais, ou seja, foram dirigidas à igreja em geral, ou ao cristianismo de uma área geral, e não a alguma comunidade cristã em particular e muito menos, ainda, a algum indivíduo isolado. Esta concepção patrística, porém, será contestada e modificada, mais tarde, por exegetas modernos.
2Jo foi citada pelos primeiros padres da Igreja, quer diretamente, quer indiretamente. Devemos saber distinguir os ecos e as influências literárias do material em comum e das citações diretas. Nunca será fácil perceber se algum dos pais da igreja cita uma obra diretamente, a menos que se faça uma tradução de palavra por palavra, ou se houver a identificação de suas palavras como uma citação. No caso das epistolas católicas somente I Pedro e as epístolas joaninas gozam de confirmação verdadeiramente antiga (antes do século III d.C.). No caso de I João, há citações extraídas dos manuscritos dos primeiros pais da igreja, embora não exista qualquer afirmativa de que o apóstolo João a escreveu, senão já no fim do segundo século de nossa era. No caso específico de 2 João, o Cânon Muratoriano (180 d.C. a 200 d.C.) arrola-a como obra canônica e joanina (junto com as duas outras epístolas). Este Cânon Muratoriano foi aceito por Orígenes, Clemente e seus sucedâneos alexandrinos. A segunda e a terceira epístolas são alvo de dúvidas desde o início, talvez devido à brevidade de sua extensão.
Assim, por exemplo, o capítulo sétimo de Ad phillipensis de Policarpo de Esmirna se assemelha a 2Jo 7. Alguns especialistas dizem que 2Jo inspirou Policarpo, que teria sido seu discípulo direto; outros, que Policarpo inspirou João. Irineu também faz citações extraídas da segunda epístola de João, quando se refere aos pseudoprofetas de 2Jo 7,8. Desta maneira, nos primeiros séculos do primeiro milênio depois de Cristo, a patrística não pode dar nenhuma confirmação peremptória a respeito da autoria da Segunda epístola de João. Estudiosos posteriores se dividiram entre a) aqueles que viam, no Evangelho e na Primeira Carta, o mesmo autor, b) aqueles que viam, na Segunda, na Terceira e no Apocalipse, o mesmo autor e outros, com suas variadas propostas – quase todas as combinações foram algures propostas. Não há maneira certa de alguém resolver o problema de autoria dessas epístolas. Devemos observar que, no tocante às epistolas de João e ao livro de Apocalipse, não há qualquer declaração, nessas obras, de que foi o apóstolo João quem as escreveu; e isso nem ao menos foi sugerido até o fim do século II d.C. Portanto, sem importar o que cremos sobre a autoria desses livros, tal crença deve repousar, pelo menos em parte, sobre a tradição ou conjectura, porque nenhuma evidência interna serve para comprovar qualquer coisa. O material joanino, além do evangelho de João, desde tempos antigos, vem sendo atribuído a João, filho de Zebedeu, o mesmo João que repousou a cabeça no peito de Jesus (João 13:25) e estava ao lado de Maria, mãe de Jesus, aos pés da cruz (João 19:25-27), segundo a Tradição; mas há estudiosos que o têm atribuído ao João aludido por Papias, o ancião de Éfeso (que não era o apóstolo do mesmo nome). E ainda outros estudiosos, nos tempos antigos, não faziam qualquer ideia quanto à sua autoria, conforme nos mostra Orígenes, nos meados do século terceiro de nossa era. Outros preferem que o autor seja João Batista (esta proposta, todavia, enfrentaria várias dificuldades, como o fato deste João ter morrido bem antes de Jesus). Se a autoria é contraditória, não menos é a datação. Os estudiosos dividem-se entre algumas datas possíveis no século primeiro e no segundo. As nuances que contribuem e interferem na exegese de 2João são muitas e não serão contempladas todas aqui, pois exigiria mais espaço e não é nosso objetivo.
Mais polêmica, talvez, seja a discussão que se dá em torno dos destinatários da segunda carta. A priori, todas as três epístolas de João parecem ter sido destinadas às comunidades eclesiais da Ásia Menor, onde vários membros seriam conhecidos do autor sagrado; mas, como vimos acima, 1Jo possui uma redação típica de uma exposição universal, não de uma carta; e a Segunda Epístola Católica do Apóstolo João, como veremos, pode não ter sido escrita para uma pessoa ou alguma comunidade local. A tradição universal, porém, diz que estas epístolas foram enviadas à província romana na Ásia, território atualmente correspondente à Turquia. As principais cidades dessa área seriam aquelas sete que figuram no Apocalipse: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia, além de Colossos e Hierápolis. Para essa área em geral também foram enviadas a primeira e a segunda epístolas de Pedro e a epístola de Judas. Com esta análise, a possibilidade de o destinatário de 2Jo ser uma comunidade eclesial da Ásia ganha força. Estas cartas teriam o propósito de combater o protognosticismo nascente. Portanto, a literatura de heresia surgiu a fim de combater os assédios dos gnósticos naquela região, além de dar instruções éticas necessárias aos crentes dali (o que parece corroborar com o conteúdo e as intenções comunicativas do autor de Segunda João). Apesar de não haver evidências esmagadoras em favor da Ásia Menor, como destino, esse destino simplesmente não tem rival. Alguns poucos manuscritos trazem títulos que destinam as epístolas de João a parthos. Mas não há qualquer tradição que vincule João aos partas (antigo reino a sudoeste do mar Cáspio). Clemente de Alexandria aludiu a essas epístolas como escritas às “virgens”, e alguns estudiosos têm conjecturado que parthos seja abreviação ou corruptela de parthenos (virgem). Mas outros dizem que parthenos teria sido uma explicação para um original parthos. Agostinho repetiu a identificação de parthos como o destino dessas epístolas. Mas todas essas tradições são mal definidas e envolvem obscuridades. Em todo o caso, especificamente sobre a Segunda epístola católica de João, este problema volta-se para o sintagma nominal Senhora Eleita (Ἐklekt kurίᾳ, Eclectḗi cyríai). Muitos estudiosos viram, neste destinatário, uma mulher mãe de filhos e, provavelmente, chefe de uma comunidade cristã. A maioria dos especialistas, porém, atribuem esta misteriosa designação a uma comunidade eclesial – o que afastaria o estilo do início desta carta da designação “Anjo” encontrada no Apocalipse e que se refere ao guardião celestial da comunidade, e não a um homem comum, um pastor ou líder local (p.e., Ap 2:12). Tanto Anjo (ou anjo) quanto Senhora Eleita aparecem como elementos de interlocução nestes livros, e, se lastrarmo-nos na hipótese de que o mesmo João que escreveu o Apocalipse foi o mesmo que escreveu a Segunda Carta, soaria improvável que o autor usasse dois semelhantes elementos de interlocução com dois significados diferentes, ou seja, Senhora Eleita como uma comunidade local e Anjo como um indivíduo guardião celeste. Esta análise, portanto, daria força a autorias diferentes. No que pesa à hipótese de a Senhora Eleita ser uma mulher, o “anjo” de Apocalipse 2:12 guarda, ao menos, uma semelhança: ambos são um só indivíduo. Agora, diferentemente, esta análise daria força a autorias iguais. E agora? Como sair deste impasse? Propomos que o elemento peremptório para acusar a melhor alternativa seja o conteúdo da carta. No que pesa à hipótese de a Senhora Eleita ser uma comunidade, está, a favor, o argumento de que os problemas eclesiológicos tratados na carta se acomodam melhor a esta possibilidade de interpretação, e, sendo assim, a possibilidade de o destinatário de 2João ter sido uma comunidade eclesial é mais provável.
Segundo a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB -, a Segunda Carta de João é, na verdade, um “bilhete de amizade da parte do Ancião (no caso, João) de uma comunidade (a Irmã Eleita do derradeiro verso) à outra comunidade, a que ele quer bem e chama de Senhora Eleita (título que se refere ao povo de Deus”. Esta Irmã Eleita, segundo a Bíblia de Jerusalém, em nota, provavelmente seria a igreja de Éfeso, que, segundo comentário exegético da Nova Versão Internacional, seria capitaneada pelo próprio apóstolo João.
Na segunda e na terceira epístolas de João, o autor sagrado, chama a si mesmo de ancião, mas sem dar qualquer indicação que esclareça tal posição, pelo que tais epístolas são sinônimas. A primeira epístola de João, porém, nem ao menos alude ao ancião... Os falsos mestres gnósticos estavam conseguindo grandes conquistas na igreja, e tinham de sofrer oposição. Estavam reduzindo o Cristo anunciado pelos apóstolos, o Verbo encarnado, o Deus-homem, a mera emanação angelical de Deus. Negavam a realidade da encarnação, e viam o Espírito-Cristo meramente como um dos sombrios éons, o qual, por ocasião do batismo de Jesus de Nazaré, teria vindo possuir-lhe o corpo, usando-o como seu instrumento, até à sua crucificação. Por ocasião da morte, o éon teria abandonado a Jesus, pelo que sua morte, quando muito, teria sido a de um mártir por uma boa causa, mas sem valor como expiação. Os gnósticos, por conseguinte, degradavam tanto a pessoa como a obra de Cristo. Em lugar de Cristo, apresentavam um pseudocristo, dotado de uma missão diferente; um anticristo, assim como eles próprios! Alguns líderes cristãos tinham sido conquistados para os pensamentos dos gnósticos, e assim um evangelho não-cristão estava sendo impingido à igreja. Diótrefes (ver 3João 9), que assumira poderes ditatoriais sobre a igreja da região da Ásia Menor, provavelmente era um dos principais proponentes do gnosticismo da igreja. O que esse homem foi capaz de fazer, o que é descrito em 2João 9-11, demonstra a natureza crítica do problema que era enfrentado. O trecho de 1João 2:19 mostra, entretanto, que os verdadeiros crentes tinham obtido certa vitória sobre os mestres falsos, porquanto muitos deles tinham rompido comunhão com a igreja cristã. Os versículos sétimo a décimo primeiro mostram que a doutrina dos gnósticos se espalhara por muitos lugares da Ásia Menor, através de pregadores itinerantes, que se aproveitavam da boa vontade e da hospitalidade natural dos cristãos primitivos. Foi mister que o ancião advertisse à igreja que os supostos evangelistas-itinerantes de modo algum eram representantes da tradição apostólica. A igreja cristã foi avisada, pois, a não dar hospitalidade a tais homens, e a segunda epistola de João foi escrita essencialmente como advertência contra esses itinerantes pregadores gnósticos, embora o seu conteúdo não verse exclusivamente sobre esse tema. A presente epístola, naturalmente, é a mais polêmica de todas, mas polêmicas também são as demais epístolas joaninas. O grande tema do amor é novamente salientado (ver os versículos quarto a sexto); mas, devido à sua extrema brevidade, somente esse tema, além daquele que trata da defesa da verdade cristã contra os assédios da heresia, é abordado nesta epístola. E, agora, no nosso trabalho.
A epístola inicia com o sujeito ὁ presbteroς, ho presbyteros, que pode ser um ancião ou líder da comunidade destinatária da carta, mas muitos enxergam, nesta expressão, uma ligação com o autor do evangelho. Há uma tendência, por parte de muitos, que este ancião seja uma espécie de bispo ou supervisor da Igreja antiga, o que preludiaria a figura do bispo católico na modernidade.
Este presbítero tem como preocupação premente orientar seus leitores a permanecerem na verdade[2], outrora, anunciada, a estarem firmes na vontade e nas determinações passadas e cultivarem a prática do amor.
Para o ancião, a igreja era algo amado; ou então a matriarca Eleita Kiria era assim chamada. Se, porventura, está em foco uma pessoa literal, então suas obras eram de tal natureza que toda a igreja da Ásia Menor assumira para com ela grande dívida de gratidão, que o ancião, agora, reconhece. No original grego, a palavra oὕς, quem, é plural, de tal maneira que tanto a senhora como seus filhos são, aqui, chamados amados. Na tradução para o português, esta palavra pode ser traduzida pela expressão aos quais.
Aqueles que conhecem a verdade são os membros da igreja, em contraste com os hereges gnósticos, os quais pervertiam a verdade (vv. 7 e 11). Todos os crentes verdadeiros amavam a essa senhora eleita, Eleita Kiria. Esta porção do versículo favorece um pouco a interpretação literal, no sentido que uma mulher está aqui endereçada, porquanto, doutro modo, a igreja seria retratada como quem ama a si mesma. Naturalmente, isto é um uso possível, embora improvável. Além disto, isto indicaria que as outras igrejas estimavam a comunidade cristã da Ásia Menor, amando-a como comunidade de crentes.
Por causa destes periclitantes gnósticos, o ancião afirma a urgência de se permanecer na verdade. Mas este clamor não se dirige a quem não sabe o que é a verdade, mas àqueles que já sabem que ela é a genuína fé cristã, o evangelho apostólico, em contraste com o sistema falso dos gnósticos.
A palavra verdade figura cinco vezes nos versículos primeiro a quarto, e, se o uso que se faz desta palavra se assemelha ao que aparece em 3João, onde ela é precedida pelo artigo definido, isto apontaria para o próprio evangelho ensinado pelos apóstolos o qual retinha a verdadeira doutrina de Cristo, que é a Verdade personificada (João 14:6). Mas, somando as ocorrências deste vocábulo no evangelho e nas epístolas, ao todo, verdade aparece 74 vezes!
A fidelidade das comunidades à verdade apostólica garantia a genuína solidariedade, e o amor. Ao passo que aqueles protognósticos mascaravam esta verdade, deturpando-a À medida que limitavam e minoravam a pessoa de Cristo, bem como sua missão e seu messianismo de serviço.
Consoante se percebe no versículo 2, a verdade habita e permanece nos crentes e, assim, é potente para transformar o caráter e dissolver a confusão.[3] A verdade, na qualidade de poder residente e permanente, que nos leva a nos amarmos mutuamente. A verdade é a base do amor.
Todas as transmissões e benefícios divinos são conferidos em amor, sendo essa a base dessas bênçãos, não menos que a verdade (João 3:16; 1João 4:8). O amor é nota essencial desta carta. Nos versos 4 a 6, o hagiógrafo se ocupa do mandamento do amor, assunto já exposto à exaustão na primeira carta.
O autor ordena que os seus leitores amem-se uns aos outros e coloca a prática caritativa como prova da autenticidade da identidade cristã (conditio sine qua non). Todavia, este mandamento joanino não isenta a comunidade de recusar hospitalidade aos falsos mestres. Amar (em grego, ἀgapάw; agapáō, transliterado para caracteres latinos), é uma das palavras que podem expressar o conceito de amor no Novo Testamento.gapάw indica uma ligação racional e judiciosa fundamentada na convicção de que seu objeto é digno de estima ou merecedor desta por conta de benefícios concedidos. Φilέw (philéō) representa um sentimento mais caloroso, mais instintivo, mais intimamente ligado ao sentimento e envolve mais a paixão. Por isso, ἀgapάw é representado pelo termo latino dĭlīgo, que possui a mesma raiz de dĭlĭgentia, ou seja, palavras que explicitam uma característica de racionalidade e vontade; assim, a ideia fundamental de dĭlīgo é seleção, a escolha deliberada, com fundamentos suficientes, de um entre muitos como o objeto de estima.[4]
Assim, filέw enfatiza o elemento afetivo do amor, e ἀgapάw, o elemento racional, inteligente – aliás, racionalidade e inteligência são características intrínsecas à verdade, bem como requisitos mínimos para sua distinção. Em Mateus 22:37, em 1Coríntios 8:3 e aqui, em João, os homens são ordenados a ἀgapn, agapân, isto é amar. Mas amar conforme o significado que o verbo possui no infinitivo presente ativo: amar e estar amando, ou seja, o amor como ato contínuo e progressivo.
Em nenhuma outra passagem bíblica, verdade e amor justapõem-se num mesmo sintagma nominal.
João também não usou ἐrάw, eráō, a paixão sensual, vocábulo do qual fazem uso Platão e os neoplatônicos.




[1] Mais informações sobre esse combate contra as heresias bem como suas especificidades podem ser encontradas em CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. Vol. 6. Candeia, 1996. Págs. 304-313; e _____________. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol.3. Hagnos, 2001. Págs. 530-554.
[2] lqeia, em grego, alḗtheia, transliterado para caracteres latinos, verdade ou realidade, na tradução para o português. Na Grécia, definia-se verdade como sendo algo real, em oposição ao falso e ao irreal (ver ROBINSON, E. Léxico grego do Novo Testamento. CPAD, Rio de Janeiro, 2012.). Assim, nota-se com mais profundidade, a preocupação do autor com os ataques docetistas à comunidade eclesial destinatária da carta. Para ele, verdade é a revelação de Deus em Jesus Cristo.
[3] Mais passagens que tratam da verdade: Gálatas 2:5; 3:1; 5:7; Efésios 1:13; 4:21; Colossenses 1:5; 2Tessalonicensses 2:10,12,13; 1Timóteo 2:4; 4:3; 2Timóteo 2:18; Tito 1:4
[4] O termo dĭlīgo aparece na Vulgata, em 2Jo, flexionado também na primeira pessoa do plural: dĭlīgimus. Ou seja, o autor, primeiramente, coloca-se como modelo (atitude típica de um líder ancião) quando usa dĭlīgo, para requisitar a mesma atitude de amor racional e justo (agapáō) de seus interlocutores.