Mapeando
a Rota do Espírito: A Vida Carismática
In:
Na dinâmica do Espírito
RELATÓRIO
DE LEITURA
O autor afirma (p. 165) ser necessário estudar o
movimento carismático porque ele tem sido o principal canal de atuação do
Espírito Santo na Igreja, sendo, por isso, uma “nova força espiritual”. À p.
166, Packer afirma que os carismáticos são aqueles que mais avidamente anseiam
e esperam que alguma manifestação avivalista ocorra no seio da Igreja. Isto por
si só já basta para acreditarmos ser de grande valia o movimento em estudo. Ademais,
é dito, logo depois, que muitos líderes do movimento (se é que ele os possui,
nestes termos) pleiteiam, para o mesmo, o mérito de reunir crentes de várias
denominações dessemelhantes, despontando como o escol do ecumenismo
internacional e transdenominacional. Isto, porém, desperta-me controvérsias, já
que, no Brasil, ocorre justamente o contrário: as igrejas não-carismáticas são
as que mais se apropinquam das demais, inclusive a católica.[1]
Na mesma página, citando Lesslie Newbigin, J. I. Packer
explicita a visão deste teólogo de que o movimento carismático veio, até mesmo,
renovar o conceito de Igreja. Afirma Newbigin que o conceito protestante reformado
de Igreja como “congregação dos fiéis” e o católico de Igreja como “o corpo de
Cristo” precisam ser ressignificados à luz do movimento pentecostal dos últimos
tempos, que concebe, diz ele, a Igreja como “a comunidade do Espírito Santo”.
“Isto”, ele diz, “é, agora, necessário para fertilizar e irrigar as outras duas
opiniões”, completa Packer na l. 34. Na minha opinião, realmente, a Igreja não
é apenas a congregação dos fiéis ou o
corpo de Cristo. Pelo menos, eu creio, estes não são os melhores termos para
designá-la de maneira rápida, porém completa. A expressão “corpo místico de
Cristo”, derivada da expressão latina Corpus
Mysticum, parece-me mais adequada por enfatizar esta nuance espiritual. Mas
é uma questão mais estilística do que teológica... Tal expressão pode-se notar
em escritos paulinos, como 1 Coríntios 12:12-14,
principalmente, e também em Romanos 12:5,
Efésios 3:6; 5:23 e Colossenses 1:18; 1:24. Esta concepção
de Igreja foi retrabalhada, posteriormente, na encíclica Mystici Corporis Christi (1943), de Pio XII, porém com a afirmação
papal de que a Igreja de Cristo está ou subsiste única e exclusivamente na
Igreja Católica Apóstólica Romana, o que, obviamente, não é aceito pelos
protestantes. Eu, particular e honestissimamente, vejo que a Igreja de Cristo
não é a ICAR necessária e exclusivamente, mas confesso, como estudioso da
teologia – inclusive a católica -, ter dificuldades de rebater todas as
formulações elaboradas para defender tal posição.
Depois, Packer apresenta as diferenças e semelhanças
presentes nos dois principais grupos de renovação carismática e que desenlaçam
alguns pontos de tensão internos ao movimento em geral. A princípio, o
catolicismo romano, por ser mais homogêneo e melhor estruturado, soube receber
o movimento e conformá-lo em moldes mais ou menos pré-estabelecidos, sem
grandes descalabros. O protestantismo, porém, essencialmente polissêmico e
descentralizador, até hoje, tropeça em questões atinentes, como se uma pessoa
deve ser contra ou a favor dos carismáticos. Enfim, a igreja protestante não
costuma resolver os problemas eclesiológicos que possui, apenas joga-se a “poeira
para baixo do tapete”. Se há um problema, quer generalizado, quer localizado,
dá-se sempre um jeito de se escamotear o mal, seja mudando-se de igreja, seja
mudando-se radicalmente a igreja, seja criando-se uma nova igreja, seja
manipulando-se o fiel etc. Enquanto, na Igreja Católica, necessariamente, sob
pena de ruir, os bispos “estapeiam-se” para encontrar uma solução para tais
problemas; assim, na ICAR, ou se resolve, ou se resolve! Na IP, porém, se não
se resolve, escamoteia-se... e pronto!
O movimento carismático enfatiza a experiência
sobrenatural; o movimento evangélico, isto é, aquele que é bíblico, enfatiza,
porém, a metanóia (gr. metάnoia). O movimento carismático rarefaz a verdade inconcussa
evangélica quando tolera as variegadas manifestações espirituais – muitas vezes
contraditórias e excludentes. Estas são algumas dessemelhanças existentes entre
os movimentos evangélico e carismático.
Contudo, ambos os movimentos guardam algumas semelhanças.
A fé, o arrependimento, o amor a Jesus, a prática de transformação de vidas
pelo poder do Espírito Santo, o aprendizado acerca de Deus e através da Bíblia,
uma oração eficaz, livre e fervorosa, o ministério de leigos em pequenos grupos
e o apetite por músicas, cantos e louvores ritmados e excêntricos são as
principais características que os movimentos conservam comumente. (Ver p. 168.)
Percebeu-se que o movimento carismático, em comparação
com o movimento original evangélico, é menos racional e mais espiritual;
teologicamente menos sólido; sociologicamente mais inclusivo. É teologicamente
menos sólido, pois nada põe de novo quanto à dogmática: “Eles sabem que não é
este”, a reflexão teológica, “o objetivo do seu movimento”, afirma J. I.
Packer, na p. 170.
Mas, como identificar um movimento carismático? Como
saber se tal fenômeno ocorre em determinada comunidade eclesial? Como
quantificar isto? É preciso um cânon, isto é, um padrão, algo que sirva de
gabarito para mensurar o quão se aproxima um igreja do fenômeno carismático
pentecostal. Packer, assim, oferece-nos 5 principais características, resolutamente
inerentes a todo e qualquer movimento carismático:
a)
um importante enriquecimento da experiência
cristã pessoal, posterior à conversão;
b)
“falar em línguas”;
c)
dons carismáticos;
d)
adoração “no espírito” e
e)
estratégia de renovação usada por Deus
(presente especialmente no Movimento G-12).
Salta-se
à leitura, na p. 174, §2º, o que Packer fala sobre a hinologia carismática:
“(...)
o estilo repetitivo, de progresso lento,
algumas vezes incoerente, dos hinos e corinhos carismáticos contrasta
marcantemente com as palavras mais
teológica e poeticamente escolhidas, e com as músicas mais animadas de décadas
passadas.” – grifo meu.
Perceba como o movimento carismático é de difícil
contenção e mensuração. O que o autor disse é universal? Não. Ao menos, não se aplica
universalmente à igreja brasileira; mais especificamente a carioca, na qual
estou imiscuído. São opostos dois tipos de hinos – ou louvores, ou músicas
gospel -: o antigo (de décadas passadas)
e o hodierno (carismático). Sobre o
antigo, o autor diz que possuem palavras
mais teológica e poeticamente escolhidas – o que é verdade na hinologia
protestante brasileira – e é mais “animado”. Opa! Aqui, não! No Brasil,
evidentemente, os louvores antigos não são mais “animados” que os atuais. E
sobre o louvor carismático atual, Packer diz que são repetitivos – é verdade,
no Brasil! -, de progresso lento – é mentira, no Brasil! – e, algumas vezes,
incoerente – quase sempre, no Brasil, neste ou naquele ponto teológico. Assim,
inversamente ao que o autor afirma, vemos que, no Brasil, o hino carismático é
mais “animado” que o hino antigo. Talvez, seja exceção, o hinário das igrejas
que cultivam a chamada “adoração espontânea”, aquela que se caracteriza pela
presença da “ministração” e da “adoração espontânea”. Ademais, na p. 182, uma
semelhante discrepância ressoa quando o autor afirma que “Sociologicamente, o movimento carismático é, em sua maior parte,
formado de pessoas da classe média.”. Este é mais um ponto de divergência
entre as realidades dos movimentos pentecostais do Brasil e dos Estados Unidos.
No Brasil, patentemente, o movimento carismático não é composto
majoritariamente por pessoas da classe média econômica e isto se deve,
principalmente, às diferentes particularidades que as diferentes realidades
conservam.
A partir da p. 180, após expor as principais características
da vida carismática, J. I. Packer traz os aspectos positivos do movimento:
a)
centralização de Cristo,
b)
a vida no poder do Espírito,
c)
emoção que encontra expressão,
d)
oração,
e)
alegria,
f)
envolvimento de todos os corações na adoração
a Deus,
g)
o ministério de todos os membros no corpo de
Cristo,
h)
o zelo missionário,
i)
o ministério de pequenos grupos.
E,
na p. 186, ele se põe a mostrar os aspectos negativos do movimento:
a)
elitismo,
b)
sectarismo,
c)
emocionalismo,
d)
anti-intelectualismo,
e)
iluminismo,
f)
“carismania”,
g)
“super-sobrenaturalismo”
h)
eudemonismo,
i)
obsessão por demônios e
j)
conformismo.
Assim
termino meu relatório de leitura do capítulo 5 de Na dinâmica do Espírito. Em suma, o autor encerra o texto apontando
que não são tão grandes as diferenças entre carismáticos e não-carismáticos e
que quase tudo o que os carismáticos fazem em congregação os não-carismáticos
também o fazem ao seu modo e numa intensidade diferente.
Despeço-me,
porém, com um pedido de cautela expresso num comunicado do Bem-Aventurado João
Paulo II:
“A
Renovação Carismática Católica ajudou muitos cristãos a redescobrir a presença
e a força do Espírito Santo na sua vida, na vida da Igreja e no mundo. Esta
redescoberta despertou neles uma fé em Cristo repleta de alegria, um grande
amor pela Igreja e uma generosa dedicação à sua missão evangelizadora. (...)
(...)
Pertenceis a um movimento eclesial e a palavra «eclesial» obriga a uma preciosa
tarefa de formação cristã, que requer uma profunda convergência entre fé e vida.
A fé entusiasta que reaviva as vossas comunidades deve ser acompanhada por uma
formação cristã adequada e fiel ao ensinamento eclesial. Com efeito, de uma
sólida formação derivar à uma espiritualidade profundamente radicada nas fontes
da vida cristã e capaz de responder aos interrogativos cruciais apresentados
pela cultura de hoje.
Na
minha recente Carta Encíclica Fides
et ratio, adverti contra um fideísmo que
não reconhece a importância da obra da razão, não só para uma compreensão da
fé, mas também para o próprio acto de fé.” [2]
Que
Deus abençoe a todos nós!
FONTES
BIBLIOGRÁFICAS E VIRTUAIS[3]
1. PACKER, J. I. Mapeando a rota do Espírito: a vida carismática. In: Na
dinâmica do Espírito. 1ª edição, Vida Nova. São Paulo, 1991. Título
original em inglês: Keep in Step with the
Spirit. 1ª edição, Fleming H. Revell Company. Tarrytown, New
York, 1984.
2.
Carta encíclica Mystici Corporis do sumo pontífice Papa Pio XII. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_29061943_mystici-corporis-christi.html
3. Discurso
do Papa João Paulo II aos responsáveis do movimento carismático católico - 30 de outubro de 1998. Disponível
em: http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1998/october/documents/hf_jp-ii_spe_19981030_carismatici.html.
Consultado em 15/05/2015.
[1] Vide,
p. e., a relação que a Assembleia de Deus tem com a ICAR e a que a Igreja
Luterana tem com a mesma ICAR. Ou melhor, enquanto há uma pequena, mas
crescente, harmonia entre a comunidade luterana mundial e os católicos,
simplesmente não há rigorosamente nenhuma relação entre os assembleianos e os
católicos; mesmo entre os carismáticos de ambas as comunidades! Isto posto,
contrariando J. I. Packer, concluo que o movimento carismático acentua o
separativismo religioso. Só há um caminho para o ecumenismo, que é as igrejas
encontrarem um ponto comum. Este ponto é cada vez mais comum quanto mais
regressarmos no tempo, o que nos fará ver que é nos primeiros séculos de
teologia e história cristãs que repousa a base comum a todas as comunidades ou
denominações eclesiais. Isto aponta para a urgente necessidade – caso queiramos
o ecumenismo – de nós cristãos estudarmos a teologia e a Tradição da Igreja,
mormente nos primeiros séculos, até a principal separação ocorrida na revolução
protestante.
[2] Discurso
do Papa João Paulo II aos responsáveis do movimento carismático católico - 30
de outubro de 1998.
[3] NOTA: repare esta bibliografia: isto é
ecumenismo! Uma obra de autor protestante e dois documentos do Vaticano. Assim,
abertos ao outro, estamos mais perto da verdade. Parafraseando Aristóteles, na
contradição está parte da sabedoria!