Por A. F. Lemos
CRISTÃO SEM PRECONCEITOS: A LÓGICA
DE C. S. LEWIS
É muito comum encontrar cristãos que, por ignorância ou
desonestidade, não compreendem ou interpretam mal tudo aquilo que vem ou que é
o outro. Este é um grande empecilho na longa e utópica estrada ecumênica que a
Igreja precisa percorrer?
Como teólogo e professor cristão, sou um crítico mordaz das
teologias vivenciadas nas igrejas. Observo, nelas, um diversificado
caleidoscópio de doutrinas as mais variadas possíveis sobre diversos pontos da
fé cristã-judaica.
Mas
chamo a atenção para o que considero uma desonestidade intelectual enorme: o argumentum ad hominem. Ele vem sendo
usado, consciente ou inconscientemente, na Igreja. Vejamos, primeiro, do que se
trata e, depois, sua manifestação eclesial.
Um argumentum ad hominem (latim, argumento contra a pessoa) é uma falácia
identificada quando alguém procura negar uma proposição com uma crítica ao seu
autor e não ao seu conteúdo. Um argumentum
ad hominem é uma forte arma retórica, apesar de não possuir bases lógicas. A
falácia ocorre, pois conclui sobre o valor da proposição sem examinar seu
conteúdo, o que é absurdo.
O argumento
contra a pessoa é uma das falácias caracterizadas pelo elemento da
irrelevância, por concluir sobre o valor de uma proposição através da
introdução, dentro do contexto da discussão, de um elemento que não tem relevância
para isso, que neste caso é um juízo sobre o autor da proposição.
Pode ser
agrupado também entre as falácias que usam o estratagema do desvio de atenção,
ao levar o foco da discussão para um elemento externo a ela, que são as
considerações pessoais sobre o autor da proposição.
Sua estrutura
lógica é a seguinte:
• O autor X afirma a proposição P;
• Há alguma característica considerada negativa em X;
• Logo, a proposição P é falsa.
Pode-se distinguir tipos
de argumento contra a pessoa, que lançam mão de estratégias ligeiramente
diferentes:
• Argumento ad hominem abusivo:
é o ataque direto à pessoa, colocando seu caráter em dúvida e, portanto, a
validade de sua argumentação.
Exemplo:
“As afirmações de Richard Nixon a respeito da política de relações
externas em relação à China não são confiáveis pois ele foi forçado a abdicar
durante o escândalo de Watergate.”
Também pode ser chamado
de ad personam, ou simplesmente de ataque
pessoal.
• Argumento ad hominem circunstancial (ad hominem circustantiae): coloca em foco a imparcialidade do
adversário, sugerindo que o último tem algo a ganhar com a defesa daquele ponto
de vista.
Exemplo:
A: Fumar não causa nenhum tipo de mal.
B: És dono de uma grande empresa de cigarros, é claro que dirá isso.
• Tu quoque (falácia do
apelo à hipocrisia): o adversário é acusado de praticar algo muito semelhante
ao que ele critica. Tu quoque
significa, em latim, "você também". É um argumento muito comum e
eficaz, pois tende a colocar o oponente na defensiva.
Exemplo:
A: As pessoas devem aprender a viver com o que ganham.
B: Mas você está completamente endividado e não faz qualquer esforço para
mudar isso.
• Falácia de associação (culpa por associação): Neste caso, a crítica
não é dirigida diretamente ao autor da proposição, mas a uma terceira pessoa,
que tem uma imagem negativa, à qual a tese que o autor original está defendendo
é associada.
Um exemplo comum dessa
falácia é a associação à figura de Hitler, apelidada de Reductio ad Hitlerum.
Quanto
ao argumentum ad hominem circunstanciae,
C. S. Lewis modula o seu significado com o conceito de bulverismo. Bulverismo é o termo cunhado por C. S. Lewis para
descrever uma falácia lógica na qual, em lugar de refutar um determinado
argumento, uma pessoa assume que o mesmo esteja errado, passando, em seguida, a
explicar o porquê de seu oponente estar fazendo uso de tal argumento. Trata-se
essencialmente de uma falácia ad hominem
circunstancial, similar à mudança
sujeito-motivo apresentada por Antony Flew. O Bulverismo é falacioso porque
os motivos de uma pessoa em nada interferem na veracidade ou falsidade de um
argumento usado por essa pessoa. Lewis escreveu sobre o tema em um ensaio de
mesmo nome em 1941, disponível em seu livro "God in the Dock" (Deus
no Tribunal). Ele explica a origem do termo da seguinte maneira:
Você deve mostrar que uma pessoa está
errada antes de começar a mostrar por que ela está errada. O método moderno é
assumir sem discussão que ela está errada e então desviar sua atenção disso (a
única questão realmente relevante) através de um ativo esforço em explicar como
ela se tornou tão estúpida. Ao longo dos últimos quinze anos eu percebi esse
vício tão freqüentemente que tive que cunhar um nome para isso. Eu o chamo de
"Bulverismo". Algum dia irei escrever uma biografia sobre seu
inventor imaginário, Ezekiel Bulver, cujo destino foi determinado aos cinco
anos, quando ouviu sua mãe dizer a seu pai — que insistia em manter que dois
lados de um triângulo juntos são maiores do que o terceiro — "Você diz
isso porque é homem". Naquele momento, Bulver narra, "iluminou minha
mente a luz da grande verdade dizendo que a refutação não é necessariamente
parte de um argumento". Assuma que seu oponente está errado e o mundo
cairá aos seus pés. Tente provar que ele está errado ou (ainda pior) tente
descobrir se ele está errado ou certo e o dinamismo nacional de nosso tempo irá
lançar você contra a parede". Assim Bulver tornou-se um dos criadores do
século vinte. — C. S. Lewis
Exemplo:
Suponha que eu pense, após fazer meus
apontamentos, que eu tenha uma grande soma no banco. E suponha que você queira
descobrir se essa minha convicção seja apenas sugerida. Você jamais chegará a
uma conclusão examinando minhas condições psicológicas. Sua única chance de descobrir
será sentando e fazendo o cálculo você mesmo. Ao verificar meus números então,
e apenas então, você irá saber se eu tenho a soma ou não. Se você considerar
meus cálculos corretos, então qualquer consideração sobre minhas condições
psicológicas será apenas perda de tempo. Se você considerar meus cálculos
errados, então pode ser relevante explicar psicologicamente como eu pude errar
tanto na minha aritmética e a doutrina do desejo inacessível se tornará
relevante — mas apenas depois de você mesmo ter feito a soma e descoberto o meu
erro em aspectos puramente matemáticos.
O mesmo se dá com todas as ideias em
todos os sistemas de pensamento. Se você tentar descobrir o que é errado
especulando sobre os desejos das pessoas, você está simplesmente iludindo você
mesmo. É preciso primeiro encontrar em bases essencialmente lógicas as falhas
do argumento. Depois disso, se quiser, vá e procure as causas psicológicas do
erro. — C. S. Lewis
Vimos
que, em alguns casos, o argumentum ad
hominem é usado por ignorância e, em outros, por desonestidade intelectual
(geralmente um bulverismo). Vemos, agora, como isto ocorre no dia-a-dia das
comunidades cristãs.
Exemplo 1:
A: O pastor
João pregou sobre dízimos e ofertas.
B: O pastor
João foi acusado de desvio de dinheiro na igreja.
B: Logo, a
pregação do pastor João tem fins escusos.
Comentário:
Sabemos que o dízimo bíblico foi instituído por Deus, como Lei, ao povo de
Israel, para somente os israelitas praticarem, para somente aos levitas ser
entregue etc. Portanto a pregação atual é malfadada. Discrepa da mensagem
escriturística. Infringe o Sitz im Lebem,
o bom senso e as regras da Exegese. Mas continua a ser pregado como se fosse a
continuidade daquele dízimo veterotestamentário. O pastor João pode não ter se
dado conta disto (por ignorância) e replica este erro na sua pregação; ou pode
ser um canalha, que conhece bem de Teologia e Exegese e está, apenas, a se
aproveitar da ignorância dos fiéis.
Exemplo 2:
A: Pedrinho me
disse que os louvores do Pe. Marcelo Rossi são bons.
B: O Pe.
Marcelo Rossi é idólatra.
C: Logo, seus
louvores não são bons.
Comentário: É
também uma falácia que louvores católicos sejam necessariamente ruins aos olhos
protestantes porque quem os entoam são católicos na mesma medida que é mentira
que os louvores protestantes sejam necessariamente ruins aos olhos católicos
porque quem os entoam são protestantes. O mesmo vale para livros: quando alguém
me traz um livro de Kardec, por exemplo, serei desonesto se disser que é um
livro mentiroso porque quem o escreveu é espírita. Se o conteúdo do livro é uma
mentira ou não isto não depende da crença do autor, mas da sua mensagem.
Portanto, será preciso que eu leia sua mensagem ou a conheça de fonte segura
para que afirme que o livro é ou contém uma mentira.
Este
tipo de argumento é muito comum entre católicos e protestantes e na concepção,
muitas vezes preconcebida, que uns fazem dos outros. Se os católicos são
idólatras ou não, se são ignorantes ou não, isto não consiste premissa lógica
para se rechaçar aprioristicamente tudo o que vem deles, tudo o que eles falam
e ensinam. Da mesma forma, se os protestantes são hereges ou não, se são
ignorantes ou não, isto não consiste premissa lógica para se rechaçar
aprioristicamente tudo o que vem deles, tudo o que eles falam e ensinam. Há
muito mais história, muito mais teologia, muito mais eclesiologia em comum
entre católicos e protestantes do que discrepâncias. E as que existem são quase
todas não fundamentais para a salvação do ser humano.
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