quarta-feira, 9 de abril de 2014

Noé no cinema







Fui ao lançamento do filme Noé. Fiquei chocado com as incongruências do filme; que vão dos erros que poderíamos chamar de licenças poéticas até os mais fundamentais, que ferem abertamente os princípios preciosos da Bíblia. Por isso, resolvi enumerá-los para ajudá-los a refletir. O filme de Darren Aronosfky foi criticado por muitos cristãos por conta das diferenças frente à narrativa bíblica e também despertou a ira de líderes cristãos. Tais críticas ao filme abrangem questões diretas, como diferenças entre a história constante na Bíblia, e questões indiretas, como a impressão que o filme deixa sobre os personagens por conta da forma como a história é narrada. O próprio diretor do filme reconheceu que o longa-metragem é “o filme bíblico menos bíblico de todos os tempos”, e o estúdio que o produziu se viu obrigado a emitir alertas de que o filme continha diversas diferenças em relação à Bíblia.
Não recomendaria o filme a qualquer um, porque ele fundamenta-se em lendas, ficções e interpretações equivocadas de quem foi Noé, e, dentro desse ponto de vista, a história de Noé narrada pelas Escrituras se contrapõe em muito ao filme hollywoodiano. É uma fantasia!
O uso laxo e indevido de certas licenças poéticas faz com que o diretor do filme transgrida a cultura e a história envolta no relato. Por exemplo, Noé não obteve ajuda de criaturas gigantes de pedra quando construiu a arca; Darren Aronofsky pegou emprestado esse conceito estranho de antigos místicos judeus que sugeriram que os anjos de Deus, expulsos do céu após a criação, caíram e foram aprisionados em rochas, caminhando pela Terra em busca de oportunidades para ajudar os seres humanos. Mas a Bíblia os apresenta, segundo teólogos, como gigantes, ou como os principais líderes do(s) clã(s) etc. Assim, filhos de Deus seriam os descendentes de Sete e filhos dos homens seriam os descendentes de Caim. Isso explica a deturpação da raça humana, pois nem os que tinham a aliança (descendentes de Sete) se mantiveram separados (santos). Mas é lógico que um roteirista polêmico e ousado não iria fazer essa opção. Pessoalmente não gostei nem da opção de anjos caídos e nem dos “monstros” de pedras como forma de representar os gigantes, isso gerou problemas teológicos desnecessários (como a redenção dos anjos), mas, por outro lado, mostrou claramente que a opção do roteirista foi por uma fantasia, mostrando ao público o descompromisso da estória. Além de errar na forma, o filme os coloca como anjos caídos que se arrependem, e ajudam Noé na construção da arca, alcançando no final a sua redenção. Na verdade, a Bíblia revela que eles eram protagonistas na contaminação da raça humana, e jamais encontraram redenção.
No filme, Noé (Russel Crowe) entra com sua esposa, seus 3 filhos, e com uma jovem estéril (Emma Watson), a namorada de Sem, que terá duas filhas – o que nos possibilita supor que poderão vir a se tornar esposas dos dois outros filhos de Noé. Cão e Jafé entram sem esposas, razão que justificou a rebelião de Cão para com seu pai, que o proibira de trazer uma mulher para si. A Bíblia é clara ao dizer que 8 pessoas entraram na Arca (Noé, sua esposa, seus 3 filhos e 3 noras), e os mesmos já eram adultos. Portanto, não há nenhum intruso na arca, pois a mesma representa a salvação de Deus num tempo de juízo, e somente entraram aqueles os quais ele permitiu entrar (ver Gn 6:18).
No filme, Noé recebe a revelação de que Deus vai julgar o mundo através do dilúvio. Ele recebe a orientação de construir a Arca e obedece. Acontece que, assim que a chuva começa, Noé impede seu filho Cão de trazer uma jovem do vilarejo ao lado, sob o argumento de que Deus havia decidido acabar com a humanidade, e a razão de ter construído a Arca era para proteger os animais, e não a preservação da raça humana. Num ato de completa insanidade, ele, ainda, decide que vai matar o filho de Sem que está no ventre da sua mulher (que havia sido curada por uma bênção de ”Matusalém”, seu bisavô, e agora podia conceber). Ele afirma que deveria cumprir o propósito de Deus, o de exterminar toda a humanidade, e por isso, se o bebê fosse uma menina, ele a mataria com as próprias mãos. Noé, então, é retratado como um louco; um homem que não tem o mínimo conhecimento do propósito de Deus para a humanidade e, por corolário, Deus é um tirano injusto e mal.
Deus é retratado como alguém que se importa mais com os animais do que com a humanidade. Além disso, ele não é capaz de revelar o porquê de todas as coisas para o homem a quem Ele constituiu como instrumento da sua vontade. Ademais, na Bíblia, os descendentes de Noé não tratam a pele da serpente do Éden como uma “relíquia de família”; o diretor do filme baseou-se em escritos gnósticos de séculos atrás, quando judeus ensinaram que o Deus do Gênesis era realmente um perdedor e que Satanás era um deus melhor. A implicação sutil possível é que Noé precisava de ajuda de Satanás, não de Deus. Seria a pele da serpente uma espécie de “S.O.S.” para as horas mais difíceis, um amuleto ou coisa que o valha. Outra interpretação possível é a seguinte. A pele da serpente é um símbolo que o roteirista usa para designar poder; quem está no comando do clã; como um símbolo da promessa de que, um dia, um homem iria dominar (pisar) aquele que tirou o homem do Éden. Quando o pecado já tinha passado dos limites, este símbolo foi arrancado do líder dos descendentes de Sete e colocado no líder do descendentes de Caim. A dúvida era, se mesmo com a arca, essa liderança sobre o mundo iria ficar com Cam, que representa a continuação de Caim, ou com Moisés e Sem. Por isso, provavelmente, o roteirista, põe a cena de Noé colocando a escama no braço, no final do filme. Uma mensagem clara de qual descendência venceu essa batalha.
Ao conceber, a mulher de Sem tem duas meninas, e Noé vai com tudo para degolar suas duas netas. Ao chegar diante da mãe, que segura os dois bebês no colo, ele desiste de cumprir o sua difícil tarefa, e desobedece. Nesse momento, sua nora, e mãe das suas netas, pondera que Deus deu a ele o livre arbítrio, e ele escolhe acreditar na humanidade. Isto, em última análise, pode sugerir uma queda na fidelidade noádica, isto é, de Noé, a Deus e a sua vontade, já que prefere ou, ao menos, sucumbe ao apelo passional que se lhe apresenta.
A Bíblia diz que Noé era um homem justo e íntegro no meio da sua geração, e afirma que Noé andou com Deus. Como pode um homem que anda com Deus não conhecer a sua vontade? O Noé da Bíblia é um homem irrepreensível, e não o louco e desprezível que o filme retrata.
Na Bíblia, Deus é justo e não pode conviver com a dimensão que o pecado toma em toda a Terra. Por isso, decide julgar o mundo através do Dilúvio. No entanto, sua graça e misericórdia são estendidas a Noé e sua família, que são salvos pela arca, e tem a oportunidade de começar de novo. Deus, ainda, faz uma aliança com Noé, e promete que nunca mais o mundo seria destruído pelo dilúvio, e mostra o sinal da Aliança através do arco-íris.
O filme tem um formato de roteiro mais baseado no estilo das tragédias gregas do que no estilo literário hebraico bíblico. Isso dificulta muito a apreciação dos que dominam o texto bíblico e não são familiarizados com os contos gregos.
O autor decidiu ter como base a história bíblica de Noé, mas não desprezou as dezenas de correlatos do dilúvio que existem em outras culturas como a do Alcorão, o babilônico e o sumério, que é até mais antigo que o texto bíblico. Isso dificulta muito para o público, que geralmente só conhece a versão bíblica e muito mal. Digo isto porque poucos lêem o relato escriturístico pensando em Jesus.
Para muitos, a arca de Noé é um dos tipos mais admiráveis do Senhor Jesus. Assim é para os hermeneutas da Escola Típica. Eu, porém, vejo, nisto, um exagero, pois, aqui, não há antítipo; contudo, ao modo da hermenêutica da Escola Didático-Moral, vejo a arca de Noé uma estória/história que dirige nossos olhos para o Cristo; serve, portanto, como uma parábola. Mas, enquanto os da Escola Típica, na sua interpretação, na arca, só havia uma porta de entrada, só entraram nela os que creram, e por fim, todos os que dela saíram começaram uma nova vida. Assim, Jesus, a exemplo da arca, é o único caminho para a salvação e todos quantos crêem na sua salvação são protegidos e salvos do juízo vindouro. Sem dúvida, mutatis mutandis, é uma estória/história que aponta para o Messias, mas que, contada e encenada conforme no filme Noé, mascara e modaliza esta essência soteriológica.
Outrossim, ocorre com a cena em que Noé dialoga com Ila. O fato de Noé não matar suas netas foi a grande mensagem desse filme, pois além do roteirista garantir a descendência dos 3 filhos, Cam, Sem e Jafé, ele mostra o porquê Deus escolheu Noé. No diálogo final, sua nora pergunta por que ele achava que Deus o tinha escolhido; ele responde: porque Deus sabia que ele faria o que fosse preciso para cumprir o seu mandato. Aí ela pergunta por que ele não matou as suas netas. Ele fala que, quando ele olhou para elas, o coração dele só tinha amor. Daí ela diz: por isso que Deus te escolheu! Mesmo você vendo a corrupção humana e sendo chamado para trazer juízo, ainda tem amor ao olhar a raça humana. Aqui, novamente, uma estória/história que aponta para Cristo; porém, em vez da arca, seria Noé o tipo e Cristo o antítipo. Jesus, na cruz, recebeu toda a culpa da raça humana, mas ainda teve amor para dizer: “Pai, perdoa-os, eles não sabem o que fazem! Semelhante amor teve, no filme, o, até então, rude e insano Noé. Estas colocações do filme, quando comparadas com o texto bíblico podem trazer estranheza; o espectador/crítico é tentado a achar que o cineasta responsável por Noé é um insano, irresponsável e instrumento do Diabo para perverter o entendimento dos ignaros. Tudo isto pode ser até verdade, mas, não obstante, há um mérito no jogo simbólico que o enredo traz. Um pequeno mérito, porém, apenas um pequeno mérito, não mais!
Darren Aronofsky é sempre ousado em suas interpretações e costuma passar a sua mensagem andando no limite entre fazer o público aplaudir ou odiar. Essa sua característica fez os produtores investirem no filme, pois tinham a certeza de que ele não iria fazer apenas uma história bíblica, mas iria ousar.
O trailer, em minha opinião, é uma “sacanagem”, pois esconde os elementos fantasiosos do filme, dando a entender que o filme seria igual aos filmes bíblicos que vimos antes. Com esse trailer, ele atraiu muito mais público, os conservadores. Ganhando mais dinheiro com a bilheteria, mas também conseguiu um buzz horrível entre a comunidade religiosa. Sendo até proibido de passar em alguns países.
O roteirista força um pouco colocando um Noé ecológico, onde considera os animais sagrados, onde todos viraram carnívoros e sua família a única que se manteve vegetariana. Acho desnecessário isso no roteiro, até porque Deus vai liberar o comer de animais em Gn 9:3. Poderia ser escrito sem isso enfatizando mais a deturpação humana, do que a “pureza” da natureza. Mas como hoje o apelo ecológico está em alta o roteirista decidiu ganhar uns pontinhos com a sociedade moderna.
Um ponto alto do filme foi o seu klímax. Um filme tem que manter o seu arco dramático do começo ao fim; assim, o diretor não optou por fazer, como de costume fazem os cristãos, o ápice do drama circunscrever-se à espera ou à dúvida se ia chover ou não, ou se o povo iria se arrepender ou não, pois, se assim fosse, o filme acabaria no fechar da arca ou no começo da chuva, mas decidiu colocar outro drama: se Noé tinha entendido toda a mensagem de Deus, e não era para sobrar ninguém na face da terra, ou se Deus ainda tinha um plano para a raça humana. Isso fez o filme ficar interessante do começo ao fim, além de tirar o público da nossa zona de conforto por este ter-se acostumado a encontrar o clímax da história muito antes.
Poderia falar muito mais sobre as incongruências do filme. Mas, por hora isso basta. O meu pronunciamento não tem o propósito de advertir os cristãos. Estes, por si só poderão compreender os absurdos desse filme. Minha preocupação está nas consequências que virão para os incautos: 1- Os sinceros ficarão chocados com a crueldade de um homem que a Bíblia chama de Santo; 2- Os oportunistas ridicularizarão o filme, e afirmarão que a Bíblia não passa de um livro de ficção ultrapassada; 3- Os ignorantes, como sempre, serão levados a concluírem sem averiguar a verdadeira história.
            Sem sombra de dúvida, o maior desserviço prestado pelo filme é induzir o espectador ao erro, a acreditar no que a Bíblia não ensina. Ao ver o filme, senti-me como que vivendo no final dos tempos, quando os homens zombarão, e blasfemarão contra Deus, e desprezarão a oferta graciosa de Jesus, a nossa “Arca” que nos protegerá do juízo eterno. Mas, indubitavelmente, não é a primeira e nem será a última vez que um filme deturpa o conteúdo bíblico. Outrora, por exemplo, já o fizera o diretor Martin Escorsese em A última tentação de Cristo, de 1988.




Fontes audiovisuais & virtuais


Noé, de Darren Aronofsky. Paramount Pictures / Protozoa Pictures. 2014.




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