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O
ano de 1917, data do triunfo da revolução bolchevista, assinala o
início de um período novo, não somente para a história da Rússia, mas
também para a história do cristianismo. Os dirigentes comunistas tomaram
imediatamente posição a respeito da religião e das confissões
religiosas, e perseguiram o seu desígnio com todos os meios que lhes
proporcionava a ditadura que acabavam de impor.
Essa
ação anti-religiosa do regime soviético devia, com o correr do tempo,
exercer grande influência em outros países, primeiro pelas diretrizes do
Kominform ao comunismo internacional, e depois graças ao prestígio
político da URSS após a segunda guerra mundial.
Na
sua luta contra a religião em geral e contra o cristianismo em
particular, o comunismo bolchevista procederá por etapas. Enquanto a
guerra civil (1917-1921) correr o risco de pôr em causa a revolução, as
medidas serão desiguais e ocasionais. Mais tarde a ação perseguidora
assumirá caráter sistemático, alternando-se os períodos de cruel
perseguição com outros de calma relativa. Em compensação, a propaganda
será sempre extremamente ativa.
De
acordo com a doutrina comunista, os fatores que contribuem para a
sobrevivência da religião são: a proteção do Estado, a influência que
ela exerce sobre a educação da juventude, o ascendente de que goza no
seio da família e entre o povo, do qual ela é o “ópio”. Foi por isto que
os dirigentes bolchevistas logo se esforçaram por isolar as confissões
religiosas dos diversos aspectos da vida pública.
Uma das primeiras leis1
do Soviete Supremo decretará a separação entre a Igreja e o Estado.
Privará a Igreja das suas propriedades fundiárias e de todos os seus
outros rendimentos, pondo-a assim à mercê do Estado. A religião foi
decretada negócio privado do cidadão.
Em
julho de 1918, o país foi dotado de uma Constituição provisória. Dizia o
seu artigo 13: “A propaganda religiosa e anti-religiosa é permitida a
todo cidadão”.
Novas
leis e novos decretos atenuaram a força dos laços familiares e
arruinaram a autoridade dos pais sobre os filhos. A escola foi
igualmente subtraída à Igreja, e todo ensino religioso proibido por toda
a duração da “formação” da juventude. Até à maioridade, a palavra nesse
domínio ficava ao ateísmo.
Todavia, ao nível dos adultos é que a luta contra a religião atingirá o seu paroxismo2.
O Estado bolchevista empregará nela todos os meios ao seu dispor. Desde
o início, organizaram-se conferências sobre o tema “religião e
comunismo”, e fizeram-se imprimir e difundir entre o povo as melhores
dentre elas. Freqüentes artigos apareciam na imprensa contra a religião,
e mesmo começou-se a ver circularem folhas volantes sobre esse assunto.
A
poesia e a música foram mobilizadas nesse combate contra Deus. O
teatro, artístico ou popular, bem como o cinema, vulgarizaram a luta
anti-religiosa. As paredes cobriram-se de cartazes caricaturais3.
Criou-se para a juventude soviética (Komsomol) um seminário e uma
faculdade de ateísmo. A partir do Natal de 1922 (quando os bolchevistas
tiveram bem o poder em mãos), os Komsomol tomaram parte ativa nos
cortejos carnavalescos anti-religiosos que, nas datas das grandes festas
cristãs, percorriam as ruas de Moscou, de Leningrado e de todas as
grandes cidades russas. O Bezboznik (Sem Deus), revista mensal
ilustrada, cheia de infâmias contra a religião, apareceu pela primeira
vez no Natal de 1922, e foi largamente distribuído por toda parte. Movia
a luta em nome da “ciência”.
Enquanto
se procedia à liquidação do cristianismo, os bolchevistas confiavam ao
Partido o cuidado de substituir a fé religiosa. Os “meetings” deviam
assumir verdadeira função social, aquela mesma que tinham anteriormente
os ofícios religiosos na vida coletiva do povo. O teatro, em particular,
foi consideravelmente desenvolvido, para se fazer dele uma espécie de
“templo” da vida nova. Enquanto em 1914 só se contavam 210 teatros na
Rússia, desde 1920 o número deles atingira perto de 6000, e nos anos que
se seguiram ainda aumentou consideravelmente. Sucedeu freqüentemente
serem as próprias igrejas transformadas em teatros. Ali, sob forma de
“bailados russos”, ou com o auxílio de outros espetáculos mais ou menos
requintados, fazia-se propaganda para o sensualismo e para a nova
política. Mas os dirigentes soviéticos trabalhavam sobretudo em inculcar
às massas o culto de Engels, de Marx e de Lenine, organizando junto ao
túmulo deste último verdadeiras “adorações noturnas”.
A
tática dos dirigentes comunistas visou a ferir, em primeiro lugar, a
Igreja ortodoxa russa, considerada como a aliada por excelência do
tzarismo. Mas, não sendo nosso intuito tratar esta questão,
cingir-nos-emos a falar aqui da perseguição contra a Igreja Católica.
A Fome.
Pelo fim da guerra civil, terrível fome lavrou no Sul da Rússia.
Desde
o início de 1921, notícias alarmantes chegaram à Europa ocidental. O
centro da catástrofe era o vale do Volga. Todavia, a fome estendeu-se um
pouco por toda parte na Rússia meridional, chegando até às portas de
Moscou e de Petrogrado. O povo, faminto, não mais achando com que se
alimentar nas aldeias, emigrava em massa para as cidades, de onde era
expulso pelos destacamentos de polícia, a fim de evitar maior desastre. O
espetáculo mais impressionante era formado por aqueles grupos de
crianças que vagavam de uma aldeia a outra em busca de um pedaço de pão.
Centenas de milhares de pessoas morreram de fome.
Bento XV ficou grandemente impressionado com a notícia desses sofrimentos4.
O Papa quis participar dos socorros; no correr do verão de 1921, pôs um milhão de liras à disposição da Obra de socorro às crianças, sediada em Genebra, sem contar as subvenções a outras organizações européias de caridade que iam em auxílio da população russa5.
Mas Bento XV desejava poder enviar ao local uma Comissão Pontifícia de socorros, a
fim de dar maior eficácia à ação da Santa Sé. Para além da ajuda
material, a preocupação do Santo Padre ia ao povo russo, para que lhe
fossem concedidas condições de vida e de governo mais humanas. O Papa
promoveu as diligências necessárias para que uma Missão de socorros
fosse admitida na URSS. Após a morte dele, Pio XI prosseguiu-lhe os
esforços; no correr do verão de 1922, dirigiu mesmo um memorando aos
Estados representados junto à Santa Sé, rogando-lhes agirem em favor de
uma normalização da situação na Rússia, sem se esquecer de, antes de
admitir a URSS no círculo dos povos livres, solicitar do Governo
Soviético a segurança da “plena liberdade de consciência para todos”, da
liberdade do exercício privado e público da religião e do culto, ao
mesmo tempo que do direito de propriedade, que semelhante liberdade
implica.
O
Governo comunista concedeu o envio de uma Missão pontifícia em março de
1922, e a 24 de julho do mesmo ano um grupo de 12 religiosos (9 padres e
3 leigos) deixava Roma rumo à Criméia. Os Soviéticos insistiam para que
a Missão tivesse caráter diplomático, na esperança de assim se
proporcionarem um trunfo magnífico para obterem o reconhecimento do
Governo revolucionário pelos outros Estados. Mas o Santo Padre fez
questão de que a Missão guardasse o caráter de simples assistência;
aceitava que ela não fizesse obra de apostolado religioso, mas pedia
para ela seguranças de inviolabilidade semelhantes às de que gozava a
Missão americana.
A
Missão pontifícia começou a sua atividade na URSS a 29 de setembro de
1922. O seu primeiro cuidado foi distribuir víveres à população, e, em
primeiro lugar, às crianças6.
Como
já se viu, o Governo soviético proibira à Missão toda manifestação de
fé cristã na execução da sua tarefa, e todo apostolado. Os membros da
Missão respeitaram essas condições, e os padres que dela faziam parte só
celebravam Missa a portas fechadas. Todavia, os dirigentes comunistas
não se contentaram com essas prescrições, e quiseram impor novas à
Missão. O que eles procuravam era chegar a negociar com a Santa Sé a
transformação da Missão em Representação diplomática. Os seus pedidos
não puderam ser atendidos, e, em seguida a restrições impostas pelos
dirigentes soviéticos, um primeiro contingente de membros da Missão teve
de deixar a URSS em outubro de 1923; os últimos membros partiram em
setembro de 1924.
Assim
teve fim, e não por culpa da Santa Sé, uma atividade nascida do desejo
de aliviar os sofrimentos, morais mas também físicos, de um grande povo.
Se
à Santa Sé não foi possível socorrer o povo russo no curso da nova fome
de 1925, não cessou ela, todavia, de se interessar por ele. De ora por
diante a Santa Sé concentrará todas as suas atenções nos emigrados
russos, esses membros padecentes do mesmo povo7.
A Igreja Católica na Rússia.
A
partida da Missão pontifícia não significava o desaparecimento da
Igreja Católica do território da União soviética. Ela ficava presente
pelos seus fiéis, aos quais não foram poupados os mais atrozes
sofrimentos.
Os
católicos, na Rússia, durante o período que precedeu a Revolução
comunista, não haviam gozado dos privilégios concedidos à Igreja
ortodoxa. Representavam apenas 9% da população, e viviam dispersos e, no
terreno legal, pouco protegidos.
Durante
o último período do Império dos tzares, sob a influência do
liberalismo, as condições feitas à Igreja Católica havia melhorado um
pouco. As relações entre o Império russo e a religião católica eram
reguladas pelo “Código dos Negócios Eclesiásticos para as confissões estrangeiras” 8.
Conforme o artigo 66 da Constituição e o artigo 1º. desse Código, a Igreja Católica, como as outras confissões, gozava, no plano jurídico, da liberdade.
“A
religião principal e dominante no Estado russo, dizia a lei, é a
Ortodoxia Cristã Católica Oriental. Entretanto, todos os súditos do
Estado e os estrangeiros que não pertencem a essa Igreja e vivem no
estado russo gozam, em toda parte, do livre exercício da sua fé e do
culto segundo o seu rito”.
Todavia,
a despeito dessas solenes proclamações, muitas vezes a liberdade
religiosa era restringida ou suprimida por disposições particulares, o
que, em definitivo, a tornava inteiramente relativa. O artigo 13 do Código dos Negócios Eclesiásticos dizia,
com efeito: “No quadro geral da administração do Estado, as questões
religiosas dos cristãos de confissões estrangeiras e dos que professam
outras confissões estão sujeitas à competência do Ministério do
Interior”. O alcance desse artigo foi precisado pelo Decreto no. 1198,
de 7 de fevereiro de 1912, o qual dava ao Ministro do Interior “o
direito de ser, plenamente e em toda parte, informado de todas as
manifestações da vida religiosa das confissões religiosas heterodoxas”.
Ademais, o artigo 17 do Código, artigo
que tratava explicitamente da correspondência dos católicos com a Santa
Sé, limitava seriamente a liberdade destes, especificando: “Todos os
cristãos de confissão católica romana, súditos do Estado, quer
eclesiásticos, quer leigos, não podem corresponder-se com a Cúria
Romana, para as questões relativas à sua confissão, a não ser, por
intermédio do Ministério do Interior. Nenhuma bula, carta ou instrução
pode ser publicada no Império e no Grão-Ducado da Finlândia sem a
permissão de Sua Majestade o Imperador, e sem que o Ministério do
Interior se haja previamente certificado de que esses atos não contêm
nada contrário às decisões, direitos sagrados e privilégios da suprema
autoridade autocrática”.
Apesar
dessas restrições, a Igreja Católica pôde dar, na Rússia, prova de
certa atividade. Assim, nas escolas, o ensino religioso podia ser
ministrado aos católicos; foi possível criar e manter seminários
diocesanos e uma Academia eclesiástica em Petrogrado; pôde-se, mesmo,
desenvolver certa atividade social. A assistência aos pobres, aos
doentes, aos órfãos, aos velhos, era exercida pelas irmandades, pelas
conferências de S. Vicente de Paulo, pelas Congregações religiosas.
Podia-se, de fato, fundar tais associações, sendo todavia o bispo, nos
termos de uma circular de 1910 (no. 1016) do Ministério do Interior,
obrigado a obter para isso autorização prévia do poder civil. Podia a
Igreja igualmente possuir, mas eram numerosas, nesse domínio, as
intromissões do poder civil. Assim, era possível receber donativos e
legados, e mesmo possuir dinheiro; em compensação, era proibido, sem
autorização especial, enviar dinheiro para o estrangeiro. A
administração dos bens eclesiásticos era sujeita, além de aos conselhos
episcopais, às Repartições legais.
As
condições da Igreja Católica na Rússia tinham, pois, um caráter
singular: não se podia dizer que o Estado lhe fosse francamente hostil,
e, no entanto, a situação que lhe era feita em nada era conforme aos
seus direitos inalienáveis.
Com
a queda do Império, essa situação transformou-se radicalmente. Sem
falar da Igreja Ortodoxa, a Igreja Católica na Rússia alimentou grandes
esperanças durante o período do Governo Provisório (fevereiro a outubro
de 1917). A Hierarquia católica esperava melhorar as condições jurídicas
da Igreja e, em 1917, enumerava num Pró-memória certas
injustiças a fazer cessar: proibição feita aos bispos e fiéis de se
corresponderem diretamente com o Santo Padre e vice-versa; submissão das
“Acta Apostolicae Sedis” à censura do Ministro do Interior;
coação interposta na formação do clero, na existência das Ordens
Religiosas, no desenvolvimento das associações católicas, no ensino
católico fora das igrejas e das escolas, na construção de igrejas e
capelas, etc.
As
esperanças cederam imediatamente o lugar às mais amargas desilusões.
Com efeito, desde que a fração bolchevista se apossou do poder em
seguida à Revolução de outubro (7 de novembro de 1917), a Igreja, como
se viu, foi logo “separada” do Estado. O Decreto de 23 de janeiro de
1918 feria primeiramente a Igreja da maioria do povo, porém a Igreja
Católica e todas as outras confissões religiosas foram igualmente
atingidas. Em virtude desse Decreto, a Igreja Católica já não era mais
considerada senão como simples “associação” religiosa, não tendo sequer
os direitos das organizações profissionais e culturais. Ao mesmo tempo,
era esbulhada dos seus bens e privada do direito de possuir no futuro;
os edifícios do culto tornavam-se “patrimônio do povo”. Sem dúvida, a
“comunidade dos fiéis” podia concluir um acordo com o poder civil e ser
autorizada a utilizar o edifício do culto, mas com a condição de pagar
as taxas e os reparos. Ora, essas taxas eram, de propósito, tão pesadas
que, as mais das vezes, o óbolo dos fiéis (único recurso utilizado) não
chegava para as cobrir; então o fechamento da igreja era inevitável. A
religião foi banida das escolas. A propaganda anti-religiosa
desenvolveu-se de todas as maneiras, enquanto que a Igreja não tinha
mais ao seu dispor nem a imprensa, nem filmes, nem bibliotecas...
Adotadas
essas primeiras medidas, que causavam dano considerável à Igreja, os
comunistas, ocupados então em cevar-se contra os ortodoxos, poupara um
pouco os católicos. Aliás, em razão do seu pequeno número, estes últimos
não representavam no país força capaz de fazer temer da parte deles uma
atividade “contra-revolucionária”. O restabelecimento da soberania
polonesa e da dos Países Bálticos desligara da Rússia numerosos
territórios e reduzira o número dos católicos. Enquanto, nos anos de
1917-1918 – quando as fronteiras ocidentais da Rússia ainda não estavam
fixadas e o êxodo dos poloneses estava sempre em curso – a Rússia
contava cerca de 6.000.000 de católicos, já depois do Tratado de Riga
(18 de março de 1921), que delimitava as fronteiras entre a Rússia e a
Polônia, não restavam mais senão cerca de 1.600.000 sobre o conjunto do
território soviético.
Ademais, do ponto de vista da nacionalidade de origem, os católicos formavam grupos heterogêneos9.
Foi esta igualmente uma razão para os poupar, em consideração dos laços
religiosos e nacionais que eles tinham com os católicos do Ocidente
europeu. No após-guerra imediato, a Alemanha não parecia orientar-se
para um regime comunista? Pelo Tratado de Riga, e para manterem a paz no
interior, os Sovietes não haviam prometido à Polônia melhorar as
condições da Igreja Católica na URSS? Era, pois, mais prudente adiar
para mais tarde os ataques contra a Igreja Católica. Ver-se-á então o
que valiam as garantias comunistas.
Nessa
mesma época a Igreja Católica procurou fazer frente às ameaças do
ateísmo melhorando a sua organização. Havia ali, em 1917, 5 bispados
católicos de rito latino (Mohilev, Kamienec, Minsk, Zytomir e Tiraspol)
contando 896 padres, 614 igrejas e 581 capelas; em 1921-1923, a Igreja
contava as 9 circunscrições eclesiásticas seguintes:
1º. A Arquidiocese de Mohilev, com 74 padres, 115 igrejas e 250.000 fiéis;
2º. A Diocese de Kamienec, com 48 padres, 100 igrejas e 3000.000 fiéis;
3º. A Diocese de Minsk, com 14 padres, 46 igrejas e 150.000 fiéis;
4º. A Diocese de Zytomir, com 66 padres, 107 igrejas e 350.000 fiéis;
5º. A Diocese de Tiraspol, com 100 padres, 90 igrejas e 3000.000 fiéis;
6º. A Diocese de Vladivostok ( de 2 de fevereiro de 1923 ), com 6 padres, 6 igrejas e 20.000 fiéis;
7º. O Vicariato apostólico Cáucaso-Criméia, com 30 padres, 30 igrejas e 70.000 fiéis;
8º. O Vicariato apostólico da Sibéria ( 1º. de dezembro de 1921 ), com 12 padres, 35 igrejas e 75.000 fiéis;
9º. A Administração apostólica para os fiéis de rito armênio, com 47 padres, 45 igrejas, 15 capelas e 66.618 fiéis.
Contava-se,
além disso, uma dezena de padres ucranianos e russos, de rito
bizantino-eslavo, para alguns milhares de fiéis de mesmo rito. À testa
deles estava colocado, desde 1921, um Exarca.
Em
março de 1923, comentando a situação política do Ocidente e os esforços
do Papa Pio XI em favor da união entre os cristãos, o Bezboznik afirmava
que a união das Igrejas parecia iminente, pois o Papa trabalhava numa
Confederação de todas as “Internacionais negras”. E acrescentava: “Se
derem resultado as conversações que Roma está tendo com os Americanos,
os Ingleses, os Gregos e os Russos, a “Internacional vermelha” correrá
grande perigo” 10.
Em
outros artigos, esse mesmo jornal sustentava que Mussolini fora levado
ao poder pelo Vaticano, cuja causa ele devia sustentar, e pedia aos
Tribunais soviéticos condenarem, mesmo à pena capital, os padres
católicos que estavam sob a sua jurisdição, porquanto, explicava ele
longamente, a fé daqueles padres era o inimigo principal do comunismo
ateu.
Os artigos do Bezboznik tinham
por fim preparar a opinião pública para todas as próximas medidas de
repressão. De feito, sete dias após a publicação dos artigos supra, uma
condenação severa fulminava S. Excia. Mons. João Cieplak, Arcebispo de Mohilev; S. Excia. Mons. Leônidas Feodoroff, Exarca dos católicos russos de rito bizantino; S. Excia. Mons. Constantino Butkiewicz, bem como 12 padres e um leigo. Eis aqui em que condições:
Todos
eles haviam sido detidos a cinco de dezembro de 1922, sob inculpação de
resistência às ordens do Governo soviético. Este, com efeito, para ir
em auxílio às vítimas da fome, ordenara a entrega de todos os objetos
preciosos do culto (cálices, patenas, cibórios, ostensórios, relicários,
etc.), que, aliás, desde 1918 haviam sido declarados patrimônio
nacional. Posta ao corrente dessa ordem de requisição, cuja execução
empobreceria ainda mais a comunidade religiosa, já muito miserável, e
comprometeria gravemente o culto sagrado, a Santa Sé declarou-se pronta a
pagar uma soma compensadora, até mesmo em favor dos ortodoxos. Mas esta
proposta não foi tomada em consideração pelo Governo soviético11.
Por seu lado, as autoridades eclesiásticas, tanto católicas como
ortodoxas, declararam-se dispostas a entregar os vasos sagrados, com a
condição de que o montante da venda fosse aplicado diretamente aos
famintos pelos organismos eclesiásticos, e não por intermédio dos
funcionários governamentais. O Governo de Moscou qualificou esse pedido
de ato de resistência, e procedeu à prisão dos responsáveis12.
Os
inculpados eram acusados de “haverem constituído em Petrogrado, de fins
de 1918 a dezembro de 1920, uma organização anti-revolucionária que
tinha por fim opor-se às leis e aos decretos do Governo dos soviéticos
no tocante às relações entre a Igreja e o Estado, e especialmente ao
decreto da Assembléia Nacional dos Comissários, de 23 de janeiro de
1918, concernente à separação entre a Igreja e o Estado. Pelo seu
procedimento, procuraram eles abalar o povo, incitando-o, em 1922, em
Petrogrado, a se opor unanimemente à nacionalização e à utilização dos
bens eclesiásticos, ao fechamento das igrejas e à requisição dos objetos
de valor, e ainda testemunhando oposição categórica aos legítimos
pedidos do Governo...Essa oposição enquadra-se nos artigos 63 e 119 do
Código Penal” 13.
“Ademais”, continua a ata do processo, “acusações particulares são formuladas contra cada inculpado”: 14
a) Cieplak é
acusado de haver ajudado a sobredita organização por uma Carta Pastoral
ao seu clero, na qual protestava contra a requisição dos objetos
preciosos do culto católico sem a autorização das autoridades da Igreja.
À pergunta do padre Rutkowski, de Jaroslav, concernente ao inventário
dos bens da Igreja pedido pelo Comissariado local, respondeu ele por um
telegrama, a 12 de março de 1922: “Pedido ilegítimo. Não dê o
inventário”. Foi por isso que o padre Rutkowski recusou dar o
inventário, delito que se enquadra no Código Penal, cap. I, art. 77.
b) Hodniewicz é
acusado de, a 24 de junho, haver-se oposto à requisição dos objetos de
valor da igreja de Santa Catarina, em Petrogrado. Quando os comissários
Kolesnikov e Ivanov quiseram examinar um pequeno móvel sobre o altar (o
tabernáculo), ele declarou que eles só poderiam fazê-lo passando sobre o
seu cadáver. Depois disse aos fiéis presentes: “Rezemos, e não
permitamos que eles toquem no tabernáculo senão passando sobre os nossos
cadáveres”. Em razão disso, o tabernáculo não pôde ser visitado. Esse
delito é punido pelo artigo 119 do Código Penal.
c)
Juniewicz é acusado de, a 25 de junho de 1922, ter oposto resistência
na igreja de Santo Estanislau, em Petrogrado, quando os comissários
Kolesnikov e Ivanov faziam a separação dos objetos de valor, e de haver
gritado: “Saiam”. Esse delito é punido pelo artigo 62 do Código Penal.
d) Rutkowski e Pronskietis são
acusados de resistência quando a igreja da Assunção da SS. Virgem foi
fechada a 5 de dezembro, por ordem do Governo. Apesar da ordem formal do
cidadão Smirnoff, chefe da divisão administrativa de Moscou-Narva, e do
representante da polícia, os quais intimavam todas as pessoas presentes
a saírem da igreja, os dois acima nomeados, em vez de obedecerem,
incitaram a multidão que enchia a igreja a resistir ao Governo, pondo-se
eles mesmos de joelhos, em gesto teatral, para rezar, e concitaram a
multidão dos paroquianos a se unir a eles. Assim, explorando os
preconceitos religiosos da multidão presente na igreja, excitaram-na a
oferecer resistência passiva à ação legal do Governo. O artigo 119 do
Código Penal pune essa atitude.
e) Ciarnas. No
mesmo lugar e nas mesmas circunstâncias acima descritas, achando-se no
meio da multidão quando a polícia, por ordem de Smirnoff, começou a
expulsar os manifestantes, Ciarnas, bem como outros que não
puderam ser identificados, opôs-se à ação do Governo e insultou
publicamente os representantes deste. Isso se enquadra no artigo 77 do
Código Penal...”
As condenações pronunciadas no término do processo foram extremamente severas. S. Excia. Mons. Cieplak e S. Excia. Mons. Butkiewcz foram condenados à morte e ao confisco dos bens pessoais16; S. Excia. Mons. Feodoroff e 4 padres, a 10 anos de prisão, ao confisco dos bens e à perda dos direitos civis; Mons. Malecki e 7 padres, a 3 anos de reclusão e à perda dos direitos civis.
As sentenças não foram integralmente executadas. Enquanto Mons. Butkiewcz era
fuzilado na Sexta-Feira Santa, 30 de março de 1923, o Arcebispo de
Mohilev foi simplesmente expulso da Rússia, depois de ver a sua pena
comutada em 10 anos de prisão. Essa diferença de tratamento poderia
explicar-se pelo fato de que, executando Mons. Butkiewcz, o
regime dava prova, no interior, da sua vontade implacável de reprimir
qualquer ato “contra-revolucionário”, ao passo que, enviando S. Excia.
Mons. Cieplak para o Ocidente, pretendia demonstrar ao estrangeiro a sua mansidão e a inexistência de uma verdadeira perseguição religiosa.
A
propaganda comunista, por ocasião desse processo que tinha a sua origem
na grande fome daqueles anos, atacou não só os inculpados, mas também a
própria pessoa do Santo Padre17.
Ora, no mesmo momento, como nos lembramos, o Santo Padre fazia o
impossível para aliviar os sofrimentos da população soviética.
Evidentemente os comunistas queriam solapar o efeito moral da Missão
Pontifica, combatendo os católicos no próprio terreno da fome, a fim de
os acusar de hipocrisia18.
As
medidas contra a Hierarquia católica na União Soviética rapidamente
atingiram todos os bispos. Em Minsk, o Bispo, S, Excia. Mons. Zygmunt Lozinski, foi preso em junho de 1923 e exilado em 1925. O Bispo de Kamienec, S. Excia. Mons. Pedro Mankowski, após ter sido encarcerado em Moscou, era exilado em 1923. S. Excia. Mons. Adriano Smets, Administrador
da diocese de Tiraspol, foi igualmente detido antes de poder obter a
liberdade no Ocidente. Quanto à S. Excia. Mons. Carlos Sliwowski, recém-eleito
Bispo de Vladivostok em 1923, foi forçado a refugiar-se em Shangai. Por
seu lado, o Vigário Apostólico da Sibéria teve de procurar refúgio em
Harbin.
Como
se vê, a tática dos dirigentes bolchevistas consistia em exilar os
chefes das circunscrições eclesiásticas, após uma permanência, de
duração mais ou menos longa, na prisão. Alguns, todavia, como Mons. Leônidas Feodoroff, Exarca para os católicos russos de rito bizantino (morto em 1935), passarão de prisão em prisão, até à sua morte.
Mudança de Tática.
No fim de 1923, todas as sés episcopais estavam vacantes. Os comunistas russos operaram então uma mudança de tática.
Os
anos de 1924-1928 foram, com efeito, um período de calma relativa. Nem
por isso se renunciava à luta contra a religião, e contra a Igreja
Católica em particular; somente, recorria-se doravante a armas menos
violentas. A ordem, mormente para os sindicatos, era respeitar o
sentimento religioso dos fiéis e dos operários, e não fazer deles nem
mártires nem heróis. Mas, ao mesmo tempo, dava-se apoio total à propaganda anti-religiosa, cuja
missão era minar, “insensivelmente, brandamente, porém de maneira
persuasiva”, os fundamentos da prática e do sentimento religioso.
O
resultado dessa propaganda foi uma real diminuição do número de fiéis
entre os ortodoxos e igualmente, ai!, entre os católicos. Os que
resistiram ficaram, com isso, ainda mais apegados à sua Igreja. A sua
prática cristã certamente era dificultada pelo clima anti-religioso, e
também em razão das exigências governamentais concernentes ao pagamento
do aluguel pelos locais do culto – confiscados pelo Estado – e à
manutenção do clero com seus próprios recursos. Sem embargo, a despeito
dos sacrifícios que lhes eram pedidos, os fiéis sustentaram o clero, as
igrejas e o culto.
Durante
o mesmo período, o número dos padres diminuiu igualmente muito. Não
mais podendo ser ministrado o ensino religioso, as vocações vieram a
faltar. Uma quantidade de padres que se achavam na Rússia no início da
Revolução haviam emigrado para o Ocidente. Cerca de 75 estavam detidos
em prisão ou haviam sido deportados para a Sibéria. E, apesar disso, a
diocese de Tiraspol, por exemplo, ainda contava, em 1928, 71 igrejas
abertas, das quais apenas 23 estavam sem padre. A G. P. U., escusa
dizê-lo, vigiava severamente os padres ainda e liberdade.
Após
as tempestades que acabavam de devastar a Igreja na Rússia, a Santa Sé
tentou dar-lhe uma organização mais bem adaptada às suas necessidades
novas. As antigas divisões por dioceses já não estavam mais no caso de
fazer face à nova situação. Foi por isto que, em 1926, novas
Administrações Apostólicas foram criadas para a União Soviética. À
frente delas foram colocados: S. Excia. Mons. Pio Eugênio Neveu, em Moscou; S. Excia. Mons. Antônio Malecki, em Leningrado; S. Excia. Mons. Boleslav Slokans, em Mohilev e Minsk; S. Excia. Mons. Alexandre Frizon, em Odessa; S. Excia. Mons. Vicente Jlyin, em Kharkov; S. Excia. Mons. Miguel Juodokas, em Kazan, Samara e Simbirsk; S. Excia. Mons. Agostinho Baumtroz, para a Administração Apostólica do Volga; e S. Excia. Mons. João Roth, para a do Cáucaso. Virão juntar-se à lista: S. Excia. Mons. Carapet Dirlughian, Administrador Apostólico para os Armênios católicos de toda a Rússia, e o Revdo. Estevão Demurof, Vigário interino da Administração Apostólica de Tiflis e de Geórgia.
A
nova organização, entretanto, não pôde produzir os seus frutos. Três
dos novos Administradores Apostólicos em breve eram detidos: S. Excia.
Mons. Jlyin, desde dezembro de 1926; Ss. Excias. Mons. Sloskans e Mons.
Neveu, em setembro de 192719. Quanto aos outros, careciam todos da liberdade necessária ao exercício de uma atividade útil.
Sem
embargo, a Igreja Católica na URSS não tardou a encontrar novas
dificuldades, que, sob certos aspectos, atingiram o paroxismo entre 1929
e 1932.
Durante esse período, a propaganda anti-religiosa assumiu extensão até então desconhecida20.
Era ela obra sobretudo da Associação dos Ateus Militantes, que em
momento algum contou tantos membros nem deu prova de uma atividade tão
coordenada e tão febril, beirando mesmo a violência21.
Essa organização dispunha de um verdadeiro arsenal de meios de
propaganda: imprensa, rádio, filmes, teatros, escolas, órgãos
administrativos, etc. A guerra ideológica era movida em base
“científica”, em nome do materialismo dialético: sendo a Fé religiosa
considerada “a priori” como de nível inferior à “ciência”.
O
plano dos “Sem-Deus” previa que em 1937 já não haveria uma só igreja
aberta, e que os padres ou os representantes dos cultos teriam sido
todos liquidados, deportados ou exilados.
O Governo soviético deu o seu apoio oficial a essa ofensiva, pela publicação do Decreto de 8 de abril de 1929 sobre
as Associações Religiosas. Precisava este, nos seus 68 artigos, as
condições ulteriores de funcionamento dessas Associações. O artigo 13 da
Constituição de 1918, tornado depois o artigo 4 da Constituição de
1924, era modificado. Em vez de falar, como precedentemente, de
liberdade de “propaganda religiosa e anti-religiosa”, o Decreto estipulava: “A profissão religiosa
e a propaganda anti-religiosa são permitidas a todos os cidadãos”. A
propaganda da fé e a propaganda religiosa de ora em diante são
proibidas. A religião não passa de um “sentimento”, não é uma “verdade”,
e não pode ultrapassar o domínio do culto. Por esse Decreto, os
comunistas pretendiam tirar à religião as últimas possibilidades de
defesa que teoricamente ela ainda possuía em face da propaganda atéia.
As
mudanças sobrevindas na política econômico-social tiveram igualmente
graves incidências sobre a vida da Igreja. Ao regime da N.E.P. (Nova
Política Econômica) os dirigentes comunistas substituíram o sistema
comunista coletivista dos Kolkoz e dos Sovkoz. Este novo sistema, que se
aplicava a todas as propriedades, privou numerosas igrejas e paróquias,
particularmente nas aldeias, dos seus últimos meios de existência. Os
padres deviam entrar nos Kolkoz, onde a Igreja não tinha lugar, do
contrário se arriscavam à deportação para a Sibéria. Para que as igrejas
ficassem abertas, era preciso, no entanto, continuarem a pagar os
impostos. Estes, no início, não eram sempre e em toda parte os mesmos,
tanto para os edifícios como para os ministros do culto. Mas em 1931 o
Comissariado Popular para as Finanças unificou-os para toda a União
Soviética, e levou-os a uma taxa tão elevada, que o fechamento
progressivo das igrejas em todo o território da URSS já não foi mais
senão questão de tempo.
O
aparelho administrativo do Estado soviético pesou, por sua vez,
gravemente na luta contra a religião. Aqui o ponto de partida foi a
aplicação da lei que previa a separação entre a Igreja e o estado.
Desejando agir sem publicidade, aplicavam-se as medidas não por via
judiciária, mas por via administrativa. Por meio dos Comissários do Povo
para o Interior, ajudados pela Polícia. Procedia-se, assim, a detenções
súbitas e arbitrárias, bem como a deportações; mandava-se para os
trabalhos forçados, condenava-se sem processo ou a portas fechadas,
conforme um veredicto fixado de antemão. Foi então que os
Administradores Apostólicos ainda em liberdade foram detidos: S. Excia.
Mons. Frizon foi encarcerado em 1929-1930, depois novamente em 1935, em 1936 e em 1937, e finalmente foi fuzilado; S. Excia. Mons. Juodokas, em abril de 1929; S. Excia. Mons. Baumtroz e S. Excia. Mons. Roth, em agosto de 1930; S. Excia. Mons. Malecki, em
novembro de 1930. Este foi deportado para a Sibéria até 1934, e depois
exilado; morreu na Polônia em 1935. O Administrador Apostólico para os
Armênios Mons. Tiago Bagaratian, sucessor de Mons. Dirlughian após a detenção deste, foi igualmente preso em 1930. Não se tinham notícias dos Administradores Apostólicos Demurof e Dirlughian. Citemos, enfim, o caso de S. Excia. Mons. Teófilo Skalski, que em maio de 1926 sucedera, na qualidade de Administrador Apostólico de Zytomir, ao Bispo exilado Mons. Dubowski. Encarcerado
a 20 de junho do mesmo ano, ao cabo de dezoito meses de detenção foi
levado a julgamento, a 27 de janeiro de 1928, sob a inculpação de haver
favorecido atos contra-revolucionários e de espionagem, e, após debates a
portas fechadas, foi condenado a dez anos de reclusão e à perda dos
direitos civis por cinco anos. Por sua vez, será ele exilado em setembro
de 1932. Monsenhor Skalski só era “culpado” de se haver assinalado pelo
seu zelo e pela sua caridade22.
A
Hierarquia católica na União Soviética foi, assim, totalmente liquidada
no correr daqueles anos. A perseguição estendeu-se também aos padres.
Na diocese de Zytomir, por exemplo, dos 66 padres presentes em 1918 já
não restava, em 1931, senão um só, enfermo. A lista dos padres aprisionados ou exilados para a Sibéria abrangia, naquela época, 114 nomes. Quase não restavam em liberdade senão 30 a 50 padres, apenas.
A
despeito das precauções de que o Governo soviético cercava as suas
medidas perseguidoras, estas últimas acabaram por ser conhecidas no
Ocidente. A 2 de fevereiro de 1930, Pio XI convidava o mundo católico a
cerimônias expiatórias23.
A Igreja Anglicana igualmente estigmatizava a perseguição. Pela boca do
Metropolita ortodoxo Sérgio, o Governo soviético apressou-se a
responder que “na União Soviética existia inteira liberdade de
consciência, que não havia ali nenhuma perseguição, que as condenações
só se aplicavam aos contra-revolucionários, e que os atos religiosos não
eram punidos, nem as convicções religiosas reprimidas. As informações
do estrangeiro concernentes à perseguição religiosa eram, pois, puras
invenções caluniosas; nada podia ter justificado as intervenções de Roma
ou de Canterbury” 24.
Tal foi a resposta “oficial”. Mas, por via confidencial, numa carta de
20 de fevereiro de 1930 à Santa Sé, a suprema Autoridade eclesiástica
russa fazia saber que as entrevistas eram realmente autênticas, mas
tinham sido extorquidas pelas autoridades soviéticas. Assim se achava
confirmada a existência da perseguição religiosa25.
O
ano de 1933 trouxe um novo período de calma relativa. Naturalmente a
propaganda anti-religiosa não se moderava, mas podia-se considerar que
ela atingira o seu máximo. Na mente dos dirigentes soviéticos, outra
preocupação – a do patriotismo – surgia, com a perspectiva de um
conflito que ameaçava o país. A própria ideologia comunista começou a
perder o seu caráter internacional, colorindo-se de dados nacionalistas.
Tratava-se de criar, quanto antes, um clima interior homogêneo;
convinha, pois, evitar as medidas suscetíveis de exasperar ainda mais os
espíritos. Ainda por cima, a própria situação dos fiéis não parecia
reclamar outros abalos violentos: quase por toda parte privados de
pastores, a propaganda atéia, metodicamente prosseguia, devia bastar
para gradual e definitivamente os afastar da religião.
Os
“Sem-Deus” beneficiaram-se, nessa data, de um novo apoio da legislação.
Com efeito, em 1936 foi proclamada na União Soviética a nova
Constituição, dita de Stalin, cujo artigo 124 reduzia ainda mais a
liberdade religiosa. No texto de 1929 era dito, como estamos lembrados:
“A profissão religiosa e a propaganda anti-religiosa são permitidas a
todos os cidadãos”. Na Constituição de 1936, já não se fala de
“profissão religiosa”, mas se lê simplesmente: “A liberdade do exercício
do culto e da propaganda anti-religiosa é reconhecida a todos os
cidadãos”. Portanto, só o exercício do culto era, de ora em diante, permitido. A Igreja não terá mais nada que dizer publicamente26.
O número dos crentes começou a diminuir, sem todavia atingir as proporções previstas pelos comunistas27.
Foi uma surpresa para as autoridades comunistas o verificarem, por
ocasião do recenseamento de 1937, que nas cidades 30% da população ainda
se declarava crente, ao passo que, nos campos, a proporção atingia 60%.
Durante
esse período evitou-se também fazer abertamente mártires. Todavia, foi
então que o Administrador Apostólico de Odessa, S. Excia. Mons. Alexandre Frizon, que
já sofrera detenções repetidas, foi fuzilado na prisão de Simferopol, a
2 de agosto de 1937, em seguida a um processo de 9 dias.
O Transbordamento do Poderio Soviético e a Perseguição Religiosa nos Territórios Ocupados.
O
acordo secreto concluído em 1939 entre o Governo nazista e o Governo
Soviético dividiu a Europa Central em duas zonas de influência: a URSS
queria os Países Bálticos, a parte oriental da Polônia, cortada em duas
pela linha Ribbentrop-Molotov, e as duas províncias rumenas:
Bessarábia e Bucovina. A Alemanha, que já impusera o seu jugo à
Tchecoslováquia, pretendia a Polônia ocidental. A deflagração da guerra
polono-alemã em 1939 tendia a realizar esse plano.
A
URSS sairá da segunda guerra mundial não só aureolada de enorme
prestígio militar, mas ainda rica de uma porção de territórios tanto na
Europa como na Ásia, e, a mais, com uma zona de influência (a China) de
alcance quiçá histórico para o destino do mundo.
As
conseqüências do domínio soviético nos países anexados ou ocupados da
Europa Central não se limitaram somente aos terrenos econômico e
político. A União Soviética quis controlar também a vida religiosa28.
Foi essa a origem das perseguições que ainda prosseguem. As primeiras
vítimas dessas medidas anti-religiosas, aplicadas segundo o sistema que
dera suas provas na Rússia, foram os territórios anexados em seguida aos
Acordos Ribbentrop-Molotov de 1939. Após a segunda guerra mundial, será
a vez dos países “satélites”.
As
medidas que os dirigentes comunistas adotaram contra a Igreja nos
países ocupados pela URSS nem sempre foram iguais em intensidade nem em
amplitude. Variaram segundo o grau de “ligação” desses países com a
União Soviética, segundo o número mais ou menos importante dos
católicos, e segundo o rito por eles professado.
(Albert Galter, O Livro Vermelho da Igreja Perseguida, ed. Vozes, 1958)
- 1. Decreto de 23 de janeiro de 1918. Cf Boukharine-Preobrajensky, A.B.C. do Comunismo, 1920.
- 2. Boukharine dirá em 1919: “A separação entre a Igreja e o Estado, entre a escola e a Igreja, foi, para o poder proletário, tarefa relativamente fácil, quase cômoda. Porém negócio incomparavelmente mais difícil é lutar contra os preconceitos religiosos que já lançaram raízes profundas na consciência das massas e que são nela extremamente vivos! Esta luta será longa; à paciência cumpre juntar a maior firmeza de execução”. Citado conforme d’Herbigny, L’âme religieuse des Russes, em Orientalia Christiana, III, I (1924), p.8.
- 3. Cf. Boukharine-Preobrajensky, o.c., pp. 215-216: “Contra os preconceitos religiosos, a luta mais séria deve ser travada ao máximo, neste momento e que a Igreja se revela como organização contra-revolucionária e se esforça por utilizar toda a sua influência religiosa sobre as massas para as lançar na luta política contra a ditadura do proletariado. A fé ortodoxa, sustentada pelos popes, tende a se aliar com a monarquia. Em conseqüência, deve o poder soviético desde já desenvolver a mais ardente propaganda anti-religiosa. Isto obter-se-á quer por conferências especiais, discussões públicas ou edição de toda uma literatura adaptada, quer por uma difusão geral dos conhecimentos científicos, que, insensivelmente, suave mas seguramente, minarão toda a autoridade da religião. Arma excelente na luta contra a Igreja foi recentemente utilizada em muitos países da República: a abertura das relíquias “incorruptíveis”, a qual revelou, em presença de multidões numerosas e das mais crentes, esse baixo charlatanismo em que assenta toda religião em geral e a ortodoxia russa em particular”. Tratava-se, provavelmente, de algum falso relicário da Igreja “ortodoxa”. Surpresa muito diversa tiveram os comunistas quando quiseram fazer a experiência com as relíquias de Santo André Bobola. Cf. d’Herbigny, o.c., p. 9.
- 4. A 5 de agosto de 1921, o Papa escrevia ao Secretário de Estado, Cardeal Gasparri: “Achamo-nos em presença de uma das mais espantosas catástrofes que a história tem conhecido. Número incalculável de criaturas humanas, atingidas pela fome, presa do tifo e do cólera, vagueiam, desesperadas, por uma terra seca. Afluem para os centros mais populosos, esperando achar ali pão, e a força armada dali as repele. Da bacia do Volga, milhões de seres humanos, votados à morte mais cruel, clamam pelo socorro da humanidade”. Cf. AAS, XIII, 1921, pp. 428-429.
- 5. Cf. d’Herbigny, L’aide pontificale aux enfants de Russie, em Orientalia Christiana, IV, I (1925), passim.
- 6. Num só dia, no distrito de Eutrópia (Criméia), foram instaladas 92 cozinhas, em 92 aldeias. O fato repetiu-se igualmente em outras regiões da Rússia meridional, e a atividade da Missão Pontifícia estendeu-se em seguida até Moscou e Petrogrado. Aumentando os socorros, chegou-se a dar uma ração diária de víveres a 160.000 pessoas, repartidas por 400 localidades. Os membros da Missão Pontifícia foram ajudados na sua tarefa pelos Russos, cujo número se elevou até 2500. A distribuição dos socorros era baseada na necessidade, e não na fé política ou na confissão religiosa. Essa obra de assistência atingiu o seu pleno desenvolvimento de março a setembro de 1923. Além dos víveres diariamente distribuídos, pacotes de víveres de 54,5 quilos cada um foram enviados, por ocasião das grandes festas (Natal de 1922, Páscoa de 1923, etc.), a famílias necessitadas, em diferentes regiões da Rússia. Entre os donativos, havia igualmente roupas e calçados; à sua custa a Missão abriu oficinas de confecção, bem como fábricas de calçado, o que permitiu distribuir dezenas de milhares de roupas e de calçado. Em todos os postos onde a Missão trabalhava, velava-se mui particularmente por que os doentes recebessem víveres e medicamentos. Foram concedidas subvenções a vários sanatórios para crianças tuberculosas, do mesmo modo que a hospícios e a hospitais.
- 7. Cf. d’Herbigny, o.c., pp.25 a 73.
- 8. Cf. Svod Zakonov, vol. XI, 1, com suplemento até 1916.
- 9. Nas regiões setentrional e ocidental da União Soviética, bem como nas principais cidades, as colônias de católicos eram formadas de Poloneses, Bielo-russos, Lituanos, Letões e Alemães. Nas regiões meridional e central da Rússia européia, as comunidades católicas compreendiam 80% de Alemães ( colonos da região do Volga ), Armênios de rito armênio, Poloneses de rito latino, Ucranianos de rito eslavo e Geórgios de rito bizantino-geórgio. Na Rússia asiática, os católicos encontravam-se ao longo das linhas ferroviárias, e eram de proveniência polonesa, alemã e lituana.
- 10. Cf. o Bezboznik de 18 de março de 1923.
- 11. Cf. L’Osservatore Romano de 18 de junho de 1922, que publicou a Nota do Substituto da Secretaria de Estado, Mons. Pizzardo, ao Comissário dos Negócios Estrangeiros, Cicerin, e a resposta deste. O NCWC News Service de 21 de maio de 1923 publica igualmente um pedido de resposta do Cardeal Gasparri, Secretário de Estado, ao Presidente Lenine, em data de 7 de junho de 1922.
- 12. Toda esta exposição é tirada de testemunhos autênticos e de cópias de documentos originais, graças, em particular, às informações colhidas pelo correspondente do NCWC News Service, que foi presente ao processo. Cf. a Nota do NCWC News Service de 21 de maio de 1923 e o artigo do correspondente do The New York Herald, também presente ao processo, em data de 6 de abril de 1923.
- 13. Esses dois artigos do Código Penal são os seguintes: Art. 63: “Todo aquele que fizer parte de uma organização que, com fins contra-revolucionários, se opõe à atividade normal das instituições e iniciativas soviéticas, ou que se serve delas para fins igualmente anti-revolucionários, é punido com as penas previstas no artigo 58, par. 1 e 2”. Art. 119: “Todo aquele que se aproveitar das superstições religiosas das massas para atentar contra o Governo dos operários e camponeses, ou para incitar à resistência às suas leis e decretos, é punido com as penas previstas no artigo 69 do Código Penal”. (Este artigo faz parte do capítulo III do Código, concernente às “transgressões dos regulamentos sobre a separação entre a Igreja e o Estado”.)
- 14. Cf. o texto integral do ato de acusação, a lista detalhada dos acusados, e os diversos capítulos de acusação, em La Civiltà Cattolica, 1923, III, pp. 153-159.
- 15. Cf. La Civiltà Cattolica, 1923, III, pp. 152-163; Mac Cullagh, The bolshevik persecution of Christianity, London, 1924, pp. 329-339.
- 16. “Acima de tudo, esses acusados do clero católico confessaram que, se as ordens do Papa se achassem em conflito direto com os decretos dos Soviéticos, eles se consideravam obrigados a obedecer às ordens do Papa: e isso não só em matéria de fé e de moral, mas também em matéria de propriedades eclesiásticas, confiscadas e nacionalizadas. Confessaram igualmente esses padres que, de encontro ao artigo 121 do Código Criminal, haviam ensinado às crianças a pretensa Lei de Deus, e que tinham a intenção de continuar o mesmo ensino, sem quererem reconhecer nem observar o dito artigo do Código Criminal que proíbe esse ensino”. Os “considerandos” são referidos por d’Herbigny em L’Aide pontificale, p. 57.
- 17. Várias seções da Terceira Internacional comunista pediram então uma sentença de morte contra o Papa. O Pravda de 31 de março de 1923, no dia seguinte à execução de Mons. Butkiewicz, escrevia: “Por que não mover um processo contra o Papa de Roma? O processo de Cieplak demonstrou que a pessoa mais responsável pela resistência organizada pelos padres contra-revolucionários contra o confisco dos bens da Igreja, é o Papa de Roma. Ele deveria ser julgado pelo tribunal revolucionário. O processo e a sentença recentemente pronunciada...provaram...que o clero católico é o inimigo feroz dos pobres e do Governo dos camponeses e operários”. E o jornal prosseguia acusando os católicos de terem recusado os socorros às vítimas da fome.
- 18. Pio XI declarará ao Consistório de maio de 1923: “Tudo o que aconteceu não deterá a Obra de misericórdia e beneficência que empreendemos e continuamos há tantos meses para o alívio de tamanhas misérias. Continuá-la-emos enquanto virmos a necessidade dela e tivermos a possibilidade disso, consoante a palavra do Apóstolo: Noli Vinci a malo, mas Vince in bono malum”. (AAS, XV, 1923, p. 252).
- 19. Mons. Sloskans foi expulso da Rússia em 1923, depois de passar por 17 prisões, das ilhas Solovki à Sibéria. Cf. Dzimtenes Balsas, n.5, 1951: Boleslav Sloskans, The life of an enforced labourer in a concentration camp in Rússia. Cf. também The Catholic Church of Latvia under the Bolshevik torture, Stockholm, 1950.
- 20. Cf. Krasnoia Gazeta, 20 de novembro de 1929; Pravda de 1º. de dezembro de 1929. Achar-se-á igualmente uma documentação sobre esse período em La Civiltà Cattolica, 1930, I, pp. 280-283.
- 21. Cf. a documentação coligida nas duas publicações seguintes: Le front antireligieux em Russie Soviétique, e La guerre antireligieuse em Russie Soviétique, Paris, 1930.
- 22. Cf. La Civiltà Cattolica, 1928, I, p. 377.
- 23. Quirógrafo ao Cardeal Pompilij (AAS, XXII, 1930, pp.89 ss.).
- 24. Entrevistas dadas à Agência Tass a 15 de fevereiro de 1930 e aos jornalistas estrangeiros presentes em Moscou a 17 de fevereiro de 1930.
- 25. Cf. La Documentation Catholique, 23 (1930), col. 845-872.
- 26. Cf. G. M. Schweigl, L’article 124 de la Constitution soviétique sur la liberté du culte. Coletânea das Leis, Roma 1948. Edit. La Civiltà Cattolica.
- 27. Cf. o artigo publicado no Pravda de 20 de agosto de 1939: “Por uma propaganda anti-religiosa sistemática”. Sabe-se o valor de tal artigo nesse jornal.
- 28. O Conselho Central da Liga dos Ateus militantes lançava, pouco depois do deflagrar da segunda guerra mundial, um apelo no qual se pôde ler isto: “Soada é a duodécima hora da luta contra a religião na Europa sul-oriental. As nossas tropas avançam sob a bandeira do ateísmo. A luta contra a fé entra numa fase decisiva. Sustentados pelas baionetas do exército vermelho, os ateus militantes estão na iminência de conhecer uma hora de grande sucesso na Europa sul-oriental. A marcha para o Ocidente não se deterá, porque o Estado nacional-socialista só fraca resistência pode opor ao movimento ateísta”. La Civiltà Cattolica, que cita esse Apelo (1949, IV, p. 373), comenta-o nestes termos: “A luta religiosa serve aos Soviéticos de meio de penetração política”.
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