OS ANJOS:
PARTE DO MUNDO CRIADO EM CRISTO JESUS
Pe. Henrique Soares da Costa
A angelologia[1] é, atualmente, um tema de difícil apresentação na teologia e isto por três motivos básicos: primeiramente porque o homem de hoje recusa, com seu empirismo utilitarista, admitir tudo quanto ultrapasse sua experiência do mundo sensível; em segundo lugar, mesmo entre os que crêem, não parece claro como relacionar de modo adequado os anjos e seu ministério com a história da salvação: nossa piedade um tanto racionalista enfrenta dificuldades em enquadrar os anjos numa perspectiva histórico-salvífica: qual seria aí seu lugar e utilidade? Certamente contribuiu para tal situação uma angelologia desarticulada da cristologia e da Trindade. Finalmente, há, do ponto de vista da história das religiões, a alegação que a doutrina sobre os anjos apareceu relativamente tarde como uma importação de crenças de outras religiões, principalmente as cananéias, as mesopotâmicas e persas.
Diante de uma tal situação mental é imprescindível, antes de tratar da angelologia, delinear alguns critérios fundamentais para um reto e aceitável discurso sobre este tema.
i. Deve-se evitar todo antropomorfismo a respeito dos anjos, com base na nossa realidade espácio-temporal. Também é imprescindível na parte positiva da angelologia - vale dizer, na angelologia bíblica - levar em conta os gêneros literários e o rico simbolismo que envolve tantas vezes a figura dos anjos nas Escrituras.
ii. Os anjos devem ser considerados sempre como espíritos criados, finitos, pessoais e autoconscientes, pertencentes a este mundo criado por Deus, dele fazendo e sendo parte.
iii. Os anjos não são autônomos, mas somente podem ser compreendidos biblicamente se referidos a Deus: estão sempre a seu serviço e só aparecem na Escritura em função do plano salvífico de Deus para a humanidade e toda a criação.
iv. Como criaturas, os anjos existem através de Cristo e para Cristo e somente nele encontram o sentido de sua existência e de sua missão. Cristo é Cabeça dos anjos e a graça angélica é gratia Christi. Por extensão, é necessário afirmar que eles são e vivem somente no Espírito do Cristo ressuscitado e somente nele podem encontrar sua plenitude criatural, que consiste na comunhão com Deus e com toda a criação!
v. Assim sendo, o lugar privilegiado para uma reta angelologia é a antropologia, já que por sua essência os anjos pertencem ao cosmo e compartilham com o homem a única história da salvação em Cristo Jesus. A angelologia mostra que o homem se encontra numa comunidade de salvação e de perdição mais ampla que a própria humanidade. Se o homem é o cume do mundo visível, nem por isso pode pretender-se o centro da criação ou seu ponto mais alto[2].
Por tudo quanto foi dito, aqui somente serão tratados os anjos enquanto ligados à história da salvação. Os problemas ontológicos relativos ao mundo angélico somente serão abordados na medida em que o exija o interesse histórico-salvífico. Tenhamos em mente que a Escritura fala dos anjos não para completar nossos conhecimentos sobre a criação, mas unicamente devido à sua relação com o homem enquanto peregrino e interlocutor de Deus no caminho salvífico. Por isso mesmo a angelologia bíblica é muito circunspecta e deve servir de parâmetro para toda angelologia. Efetivamente, uma angelologia desligada da cristologia e da antropologia não é contemplada pela Escritura; tal não seria uma angelologia no sentido bíblico, mas uma demonologia no sentido grego. Com efeito, dáimones para o pensamento helenístico são forças pessoais intermediárias, ativas e determinantes da ordem cósmica. Segundo Platão, seriam providências intermediárias entre deus e os mortais ou, na concepção estóica, potências aglutinadoras da ordem cósmica. A demonologia helenista tratava desses seres sobre-humanos não do ponto de vista funcional da história da salvação (idéia completamente estranha ao pensamento grego!), mas sim do seu significado essencial (natural) no universo, na harmonia cósmica. Para Aristóteles, que influenciou Tomás de Aquino e K. Rahner, se os fenômenos naturais se realizam de modo sempre constante, é necessário dar uma razão a esta constância: um primeiro motor imóvel nas diversas esferas cósmicas deveria ser o princípio inteligente que guiaria as partes dos cosmos para um fim harmônico. Assim, subordinadas ao primeiro Motor imóvel e necessário, puro ato, encontrar-se-iam inteligência separadas que movem as esferas celestes e regem a ordem do cosmo e os destinos das pessoas e nações[3]. Ora, uma tal abordagem é completamente desconhecida das Escrituras Sagradas e de modo nenhum interessante para a fé cristã!
Os anjos na Sagrada Escritura
As Escrituras não afirmam explicitamente a criação dos anjos: estes aparecem simplesmente na história da salvação como criaturas de Deus, de modo particular como seus mensageiros e realizadores de sua vontade, como o próprio termo hebraico mal’ak e o grego aggeloV já o indicam. O termo, portanto, não indica uma natureza, mas uma função antropologicamente condicionada:
são espíritos destinados a servir , enviados em missão para o bem daqueles que devem herdar a salvação (Hb 1,14).
Tal observação é importantíssima porque determina em que perspectiva a angelologia tem lugar numa teologia que queira ser realmente inspirada na Palavra de Deus e não em meras especulações mais ou menos gratuitas. Efetivamente, distintos dos numerosos espíritos acreditados no mundo pagão, os anjos não têm um campo autônomo de ação fora das ordens de Deus. Como todas as criaturas eles foram criados para Cristo, de modo que ele é seu Cabeça e Senhor (cf. Cl 1,16): Cristo está acima de todos os anjos (cf. Hb 1,5).
No Antigo Testamento IHWH é apresentado muitas vezes como um soberano oriental com sua corte. Neste contexto os anjos aparecem como servos (cf. Jó 4,18), santos (cf. Jó 5,1; 15,15; Sl 89,6; Dn 4,10) ou filhos de Deus (cf. Sl 29,1; 89,7). São chamados, segundo a sua missão, mensageiros (cf. Gn 19,1; 28,12; 32,2; Sl 103, 20), por sua figura, homens (cf. Gn 18,2.16; 19,12.16), por sua relação com IHWH, príncipes dos exércitos celestiais (cf. Js 5,14) ou senhores do céu (cf. 1Rs 22,19). Há também referências aos querubins - nome talvez derivado de karibu, divindade ou gênio acádio, metade homem metade animal (cf. Sl 80,2; 99,1; Ez 10,1s; Sl 18,11; Gn 3,24) e aos serafins – cujo nome significa “ardentes” – que cantam a glória de IHWH (cf. Is 6,7). Os querubins e serafins não são anjos no sentido originário da palavra; por isso no início não recebiam o nome de “anjos”. Somente no judaísmo tardio foram incluídos no grupo de seres designados por anjos. Ao lado desses enigmáticos mensageiros, os relatos bíblicos mais antigos falam no “Anjo de IHWH” (cf. Gn 16,7; 22,11; Ex 3,2; Jz 2,1) que não é diverso do próprio IHWH manifestado na terra de modo visível (cf. Gn 16,13; Ex 3,2). O provável é que a figurado “Anjo de IHWH” seja o modo como uma teologia ainda arcaica procurava afirmar a proximidade providente de IHWH e, ao mesmo tempo, salvar sua transcendência divina mesmo quando IHWH se comunica com o homem. À medida, porém, que a revelação progride, o seu papel vai sendo sempre mais atribuído aos anjos, mensageiros ordinários de IHWH.
No período pós-exílico, tanto a literatira bíblica quanto os apócrifos deram aos anjos o título de filhos de Deus (cf. Jó 1,6; 2,1; 38,7; Sb 5,5). Nos escritos desta época foram incorporados vários elementos das crenças populares. Os anjos são descritos, então, como seres incorpóreos (cf. Tb 12,19; Gn 18,9; Sl 78,25; Sb 16,20), por isso não poderiam ser percebidos pelos sentidos. Além de mensageiros de Deus junto aos homens (cf. 1Cr 21,18; Jó 33,23; Tb 3,17; Dn 14,33) e seu protetores (cf. Dn 3,49; 6,23), acreditava-se que os anjos falassem a Deus em favor dos homens (cf. Jó 33,23s; Tb 12,15).
Em resumo, o Antigo Testamento afirma claramente a existência dos anjos, mas não apresenta nenhuma reflexão especulativa sobre eles. Seu número é muito grande e eles constituem uma espécie de séquito de IHWH, sujeitos ao seu domínio universal. Executam os serviços que Deus lhes confia tanto em cada homem quanto na totalidade do povo (cf. 1Cr 21,18; Tb 3,17; Dn 14,22). Mencionam-se somente os nomes de Miguel, Gabriel e Rafael.
No Novo Testamento há uma desmitologização dos textos do Antigo Testamento sobre os anjos. Seus testemunhos são mais discretos e menos abundantes. Contudo, também o aí se fala dos anjos como mensageiros celestes, cristologicamente condicionados: toda a obra dos anjos aparece, então relacionada a Cristo e a realização da salvação por ele trazida. Eles transmitem aos homens as incumbências divinas; quando aparecem, apresentam-se normalmente como jovens com brilhantes vestes brancas (cf. Mc 16,5; Mt 28,3; Lc 24,4; Jo 20,12; At 1,10). Grande é seu número (cf. Mt 28,53; Hb 12,22; At 5,11; Mt 22,30; 26,53; Lc 12,8s; 1Tm 5,21; Hb 12,22; 1Pd 3,22; Hb 12,22ss). Acompanham especialmente os acontecimentos da vida de Cristo desde o seu início até sua consumação: o anjo do Senhor, que em Lucas se chama Gabriel, predisse o nascimento e a missão de João Batista (cf. Lc 1,11-12); o mesmo anjo transmite a Maria a mensagem de que há de ser Mãe de Deus (cf. Lc 1,26ss); o Anjo do Senhor tranqüiliza José a respeito do que o Espírito Santo produziu em Maria (cf. Mt 1,20-25); também foi um anjo que anunciou aos pastores o nascimento de Jesus e uma multidão de anjos louva a Deus por sua benevolência, às portas de Belém (cf. Lc 2,9-15). É ainda o Anjo do Senhor quem aconselha a José a fuga para o Egito com Maria e o menino e, passado o perigo, transmite-lhe a nova ordem de voltar (cf. Mt 2,13.19s). Anjos servem a Jesus quando este, levado pelo Espírito ao deserto, permanece ali quarenta dias em jejum (cf. Mc 1,13; Mt 4,11). O Pai podia enviar a Cristo mais de doze legiões de anjos, se o Filho lhe pedisse, para livrá-lo do sofrimento que sobre ele caiu no Jardim das Oliveiras. Mas como se cumpriria então a Escritura? (cf. Mt 26,53). Um anjo aparece a Cristo em sua angústia mortal e o conforta (cf. Lc 22,43). Quando as mulheres, na manhã da Páscoa, encontram o sepulcro vazio e ficam confusas, homens com vestes brilhantes aparecem diante delas e lhes anunciam a ressurreição do Senhor (cf. Mc 14,5s; Lc 24,1-7). A estes Mateus e João dão o nome de anjos (cf. Mt 28,2; Jo 20,12). Todos os anjos acompanharão o Senhor quando vier para o julgamento do mundo (cf. Mc 8,38; Mt 25,31; 26,27). O Filho do Homem enviará seus anjos com estrépito de trombetas, e eles ajuntarão os eleitos dos quatro ventos, de extremo a extremo do céu (cf. Mt 13,31.39ss.49; 24,31; Mc 13,27).
Segundo o testemunho de Cristo, as crianças têm os seus anjos no céu (cf. Mt 18,10). O próprio Cristo, como Filho de Deus, está acima de todos os seres angélicos, tanto antes da encarnação como depois de sua exaltação à direita de Deus (cf. Mc 13,27; Ef 1,20s; CI 1,16; 12.10; Hb 1,5-14; 2,1-9; 1Pd 3,22). Segundo o desígnio divino, a Igreja criada por Cristo notificará aos anjos a salvação dos homens (cf. Ef 3,10; 1Tm 3,16). Os anjos alegram-se de que os homens se convertam a Deus (cf. 1Pd 1,12). O Apocalipse de João expõe o grande papel que os anjos desempenham na história da salvação.
Apesar de todos estes testemunhos é necessário cautela, pois, procedendo a uma análise exegética mais cuidadosa ver-se-á que alguns dos textos citados não falam com segurança de anjos e outros utilizam simplesmente um gênero literário; é o caso, por exemplo, do Anjo de IHWH em Mateus e dos anjos do Apocalipse – tão comuns neste gênero literário. Quanto à ação de Gabriel na anunciação, é de se perguntar se Lucas não enquadra toda a narrativa no gênero de anunciação, que comporta sempre a aparição de um anjo e se não escolheu Gabriel exatamente por ser ligado ao tempo do fim e à vinda do Filho Homem na profecia de Daniel (cf. Dn 8,16; 9,21-27;) e por significar o poder fecundo de Deus – Gabriel era considerado no judaísmo tardio como o responsável pela fecundidade do solo, dos animais e dos homens. Uma coisa, no entanto, é certa: tais textos deixam claro que o Novo Testamento recebeu do Antigo a convicção da existência dos anjos e, ao que parece, o próprio Jesus compartilhou de tal convicção, que aliás, não era unânime na sua época (cf. At 23,8).
Aparecem também outros grupos de seres celestes: virtudes (cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21), potestades (cf. 1Cor 15,24; Ef 1,21, Cl 1,16), principados (cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; Cl 1,16), dominações (cf. Ef 1,21; Cl 1,16) e tronos (cf. Cl 1,16). Não se estabelece a diferença entre eles; parece que Paulo simplesmente aceita a crença corrente no mundo helênico e julga tais seres a partir de Cristo: se existem, foram criados através de Cristo e para Cristo; se são adorados e cultuados, Paulo os trata como demônios e os reduz a nada (cf. 1Cor 15,24; Ef 6,12; Cl 2,15). O importante é a primazia absoluta de Cristo. Por isso mesmo, neste contexto, o culto dos anjos é reprovado (cf. Cl 2,18).
Concluindo o que diz respeito aos dados bíblicos, poderíamos afirmar o seguinte:
· O discurso bíblico sobre os anjos tem sempre uma perspectiva antropológica: a Escritura fala de Deus não primeiramente para revelar quem ele é, mas o que faz em nosso favor: o quanto ele é para nós. Ora, o envio dos anjos é apenas um momento deste voltar-se de Deus para o homem e o nosso mundo: eles estão a serviço da salvação (cf. Hb 1,14).
· Servindo ao plano de Deus, a Escritura mostra-nos sempre os anjos em relação à glória da Deus: o Anjo de IHWH evoca a presença amável do Deus de Israel na história, despertando adoração, louvor, ação de graças. Os querubins exprimem a grandeza e onipresença de IHWH; os anjos na liturgia celeste são constante convite ao louvor e à adoração. Assim a angelologia está em função da teologia: só a Deus o louvor e a glória!
· Os nomes dos anjos, mais que exprimirem uma individualidade comunicam uma qualidade de Deus: sua força (Gabriel), sua unicidade (Miguel) e seu cuidado compassivo (Rafael). O vulto dos anjos é análogo ao vulto dos mártires da Igreja: resplandecem da glória que contemplam... que não é outra que a glória de Cristo!
· Todo discurso neotestamentário sobre os anjos deve ser visto num estreito vínculo com o evento Cristo, em relação à sua encarnação, sua presença operante na Igreja e sua vinda na glória.
· O serviço dos anjos a Cristo continua no serviço à Igreja e na Igreja (cf. At 5,20; 12,11; 8,26-29; 10,3; 1Cor 4,9). A sua colaboração no caminho histórico da humanidade continuará até que venha a Parusia do Senhor.
Desenvolvimento da angelologia cristã na teologia e no magistério
Os Padres, combatendo os gnósticos e suas hierarquias celestes, ressaltaram a criaturalidade dos anjos, sua total dependência em relação a Jesus Cristo e seu serviço à Igreja no contexto da economia salvífica. Importante era a percepção que as atividade dos anjos no Antigo Testamento destinava-se a preparar a vinda de Cristo; no Novo Testamento eles servem ao Reino de Deus e aos eleitos. É verdade também que na angelologia patrística foram introduzidos elementos do imaginário judaico extra-bíblico e, mais tarde, da demonologia helenista, sobretudo de fundo neoplatônico. Não se pode afirmar que tais elementos façam parte da fé comum da Igreja.
A doutrina da Escritura e da Tradição eclesial foi acolhida de modo normativo pelo IV Concílio de Latrão, em 1215. Aí se afirma dogmaticamente a existência dos anjos:
(O Deus uno e trino é) único princípio do universo, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, espirituais e materiais, que com a sua força onipotente desde o princípio do tempo criou do nada uma e outra ordem de criaturas: as espirituais e as materiais, isto é, os anjos e o mundo terrestre, e depois o homem, como participante de um e de outro, composto de alma e corpo[4].
O contexto da afirmação conciliar é de polêmica contra o dualismo cátaro. Deus é a única origem dos anjos: eles são criaturas!O documento conciliar, apesar da opinião contrária de alguns teólogos atuais, transforma a existência dos anjos em conteúdo de fé – esta é a opinião da grande maioria dos teólogos. O concílio Vaticano I reafirmou a doutrina do Lateranense, citando-o textualmente[5]. Outro texto significativo, apesar de não ser normativo dogmaticamente, é o Credo do Povo de Deus, professado pelo Papa Paulo VI em 1972:
Cremos em um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, Criador das coisas visíveis, como este mundo, onde se desenrola a nossa vida passageira; Criador das coisas invisíveis, como os puros espíritos, que também denominamos Anjos...
O texto cita o Vaticano I que, como já vimos, remete ao Lateranense IV. É interessante a linguagem do documento: “puros espíritos, que também denominamos Anjos”... a marca da teologia escolástica é patente. A Escritura não fala primeiramente em puros espíritos, mas simplesmente em anjos (= mensageiros de Deus)! Seria, então, mais de acordo com a perspectiva da Escritura ter afirmado: “coisas invisíveis como os anjos, que acreditamos serem puros espíritos”. O documento é interessante à nossa análise por ser um pronunciamento atual sobre o tema. Uma coisa é certa: o magistério eclesial confirma e afirma a existência dos anjos.
Quanto à essência angélica, a doutrina mais antiga afirmava uma corporeidade sutil; depois Gregório de Nissa defendeu a não-corporeidade e pura espiritualidade angélica. Na Idade Média havia ainda disputa em torno do tema: Tomás de Aquino defendia a pura espiritualidade, enquanto a escola franciscana inclinava-se por afirmar uma corporeidade sutil. Hoje, a sentença mais comum entre os teólogos é a favor da pura espiritualidade angélica, apesar de haver teólogos como K. RAHNER que sustentam a opinião em favor de uma corporeidade sutil. O magistério eclesial não tem nenhum pronunciamento dogmático sobre este tema particular.
Quanto à personalidade, pelo que se pode apreender do dado revelado, os anjos possuem uma subjetividade, autodomínio e auto-transcendência. A tradição eclesial refuta reduzi-los a simples forças ou qualquer coisa do gênero. Como nome de anjos devem ser usados somente os três que ocorrem na Escritura. A consciência eclesial também rejeita o primitivo ensinamento sobre os anjos da natureza, encarregados particularmente pelos fenômenos do mundo natural. Que todo homem tenha um anjo da guarda não é até agora definido, mas esta é opinião comum na consciência eclesial desde os tempos antigos. Supondo uma pura espiritualidade angélica, constituirá sempre um mistério como isto é possível numa criatura, já que empiricamente só nos é acessível o ser vinculado à matéria. Os anjos seriam, por um lado, puros espíritos e, por outros, naturezas limitadas. Talvez uma indicação deste mistério esteja no fato de os anjos pertencerem ao Corpo de Cristo; deste modo sua natureza espiritual está inserida no corpo do Senhor e, por ele e nele, no cosmo, de modo análogo ao ser humano no estado intermédio entre a morte e a Parusia do Senhor. Podemos, neste caso, conjeturar que a finitude angélica expressa-se no fato de eles somente poderem refletir sobre si mesmos e dominar-se a si mesmos mediante o encontro com outras criaturas iguais. Cada anjo, ao comparar-se à pessoa do outro e dirigir-se a ele para depois voltar a si mesmo, realizaria sua própria existência. Esta espiritualidade pura não significaria falta de relação com a matéria: criados através de Cristo e para Cristo, inseridos no corpo de Cristo, eles estão ordenados à história da salvação e plenamente inseridos no plano salvífico de Deus. Assim, os anjos se auto-transcendem não somente em relação aos outros, mas também a Deus e ao mundo a ser salvo – mundo do qual eles próprios fazem parte! No que concerne à questão se os anjos estão agrupados em ordens distintas, não há nenhum pronunciamento normativos da Igreja sobre o tema. Quanto ao conhecimento angélico, sem querer entrar na especulação de escolas, podemos, seguindo a Escritura, afirmar uma força de penetração superior à nossa por parte dos anjos. A Escritura exprime tal convicção ao descrevê-los cobertos de inumeráveis olhos, como que afirmando que toda a sua essência é ver. Entretanto, os anjos são limitados e, como tais, não penetram nem as profundezas de Deus (cf. 1Cor 2,10) nem as profundezas do homem: este tem uma esfera íntima escondida aos próprios anjos. Sendo finitos, podemos conjeturar que os anjos podem crescer na sua ciência em relação à história salvífica. Em consonância com este saber superior está também sua vontade: por ser muito mais penetrante que a nossa e por sua força intelectiva, intuindo a transcendência de cada acontecimento, tomam suas decisões de modo simples e total, de modo que são irrevogáveis nas suas opções. A tradição bíblica e eclesial vê-los também numa intensa união com Deus, chamados que são ao diálogo e à comunhão com o Deus uno e trino: chamados pelo Pai através do Filho na potência do Espírito. É a resposta à autocomunicação de Deus em Cristo que os introduz ou não na plena comunhão com o Deus Trino, aquela comunhão denominada pela teologia clássica como “visão beatífica” (cf. Is 6,2; Dn 7,10; Mt 18,10).
Quanto às aparições angélicas, trata-se de um fenômeno de difícil, senão de impossível explicação. Certamente a teologia não deve se aventurar neste campo, sobretudo atualmente, quando sabemos o quanto o inconsciente humano é rico e complexo e temos consciência mais clara que a ação de Deus não é exterior, mas interior à própria estrutura natural! Poderíamos, como meras hipóteses conjeturar duas explicações: (1) o anjo produziria na psiché humana o conhecimento e o amor de acordo com o plano divino de salvação ou (2) o próprio Deus opera no homem, através dos anjos, determinados movimentos espirituais em conformidade com seu eterno plano salvífico. O homem, assim alcançado pela atividade divina, interpreta tematicamente a operação divina ao sabor de imagens da própria fantasia, certamente condicionada pela cultura e estrutura individual daquele sobre quem se deu a ação. Assim, a aparição do anjo – como qualquer fenômeno de “revelação” – não é puramente objetivo, mas constitui sempre uma objetivação do homem, sendo, portanto, a síntese de um suceder objetivo e de uma ativa experiência subjetiva, de modo que, como as revelações particulares dos místicos, requer sempre uma hermenêutica e uma purificação[6].
Concluindo, não poderíamos deixar de salientar mais uma vez que a angelologia cristã haverá de ser sempre fundamentada e limitada pela Escritura Sagrada, sem se perder em elucubrações que a fariam descambar para a demonologia grega. Chave hermenêutica de toda angelologia são a cristologia e a antropologia. São Tomás de Aquino afirmava que os anjos também pertencem ao corpo cuja cabeça é Cristo. No seu parecer, a própria santidade angélica está configurada por Cristo. Se formos atentos ao contexto do Lateranense IV, que situa a afirmação sobre a criação dos anjos na obra do Deus uno e trino, podemos afirmar, aprofundando a intuição do Aquinate, que a santidade angélica é cristo-pneumatológica: os anjos, como toda a criação, são chamados à plena comunhão com o Pai pelo Filho na potência do Espírito. Nesta mesma linha, São João da Cruz afirmava que o Filho de Deus se fez homem para congregar num só Espírito a humanidade resgatada juntamente com os anjos e Nicolau de Cusa considerava que Deus constituiu a Igreja una na base dos anjos e dos homens, unidos com ele através de Cristo no Espírito. Uma angelologia que ultrapasse tais limites, sem dúvida não seria de modo algum boa teologia! O cristão atual manterá a fé na existência dos anjos no sentido da Escritura e da Igreja, tendo presente que as afirmações bíblicas devem ser interpretadas segundo a exegese atual. É necessária também certa reserva em relação a algumas opiniões excessivas dos Padres e de alguns teólogos (inclusive atuais). Um cristão que deseje ter uma fé crível não mais pode chamar em causa os anjos onde ele sabe que operam forças impessoais, o que não significa negar-lhes a ação neste mundo. Como quer que seja, as ciências nunca poderão provar a existência dos anjos e nós saberemos da sua existência somente pela fé.
Se é verdade que a doutrina sobre os anjos não faz parte das doutrinas centrais da fé e não deve ser demasiadamente enfatizada na pregação, é também verdade que tem seu sentido próprio, pois ilustra a vontade de Deus de se comunicar aos homens em Jesus Cristo já a partir da criação. A fé na existência e ação dos anjos leva-nos também a confessar o quanto é limitada a realidade vista por nós e que o Reino de Deus é mais amplo que a realidade que conhecemos.
O diabo e seus anjos: a possibilidade do “não” ao Deus de Jesus Cristo
Se não é fácil articular equilibradamente um discurso teológico sobre os anjos, bem mais complexo é apresentar nos dias atuais o que a consciência eclesial afirma sobre o diabo e os demônios. Metodologicamente é importante, desde já, afirmar que se a fé cristã afirma a existência dos anjos como liberdades criadas, é plenamente compreensível a possibilidade que alguns deles tenham dito “não” ao chamado de Deus à comunhão. Esta decisão negativa certamente dá-se em relação a Cristo Jesus, através de quem e para quem tudo foi criado no céu e na terra. Assim, deve-se afastar de uma “demonologia” cristã qualquer sombra de dualismo, como se o diabo fosse um concorrente à altura de Deus e lhe ameaçasse a onipotência. Mais ainda: somente tem sentido uma demonologia cristã se esta tem como objetivo desmascarar o fascínio que o mal possa ter (cf. Jo 12,31). É vetado ao cristão pensar o demoníaco como um poder contrário a Deus, do mesmo nível que ele e com faculdades de entrar em luta ou em dialogo com ele: somente à criatura investida pela graça é dado uma tal relação dialógica!
Na Escritura Sagrada aparece seja a figura do diabo como a dos demônios:
a) No Antigo Testamento os termo hebraicos Satã ou Satanás ou o grego diabo (= aquele que confunde, perturba, desconcerta, desorienta) indicam um ser espiritual malvado, muitas vezes rodeado por muitos demônios que dele dependem e agem sob seu comando. Aí são também chamados de satã figuras terrenas hostis no campo político, jurídico e militar (cf. 1Rs 5,18; 11,24s; Sl 109,6; 1Sm 29,4); até mesmo Deus é assim chamado quando parece adversário do que sofre (cf. Jó 16,9; 30,21). Completamente subalterno a Deus, Satã já é apresentado no livro de Jó como uma vontade hostil senão ao próprio Deus, pelo menos ao homem: ele não acredita no amor desinteressado (cf. Jó 1-3). Em Zc 3,1-5 ele aparece como verdadeiro adversário dos desígnios do amor de Deus para com Israel. Em 2Cr 21,1, a peste, que na concepção mais antiga era tida como obra de IHWH, é atribuída a esse agente da catástrofe e da destruição que já possui um nome próprio: Satã. Sb 2,24, que atribui a entrada da morte no mundo à inveja do Diabo revela a influência dos escritos apócrifos do tardio judaísmo.
No judaísmo tardio Satã é apresentado como inimigo e sedutor do homem e sua derrota era esperada para o final dos tempos. Ele é visto como alguém que age mal e tem ódio pelos homens. Satã é considerado o príncipe dos espíritos maus (os demônios), de modo que o homem deve saber distinguir entre os anjos de IHWH e os de Satã. No apócrifo sobre a vida de Adão e Eva, Satã é o tentador que fala através da serpente. Quando Adão pergunta o motivo de seu ódio pelos homens, ele responde que Miguel o expulsou do céu porque se recusara a adorar o homem, imagem de Deus. No livro de Enoc usa-se o plural “satãs”, como tentadores dos anjos e dos homens.
O Novo Testamento serve-se freqüentemente das idéias do judaísmo de sabor mitológico para chamar atenção com urgência escatológica sobre o poder do mal moral no mundo. Neste sentido, os textos que falam sobre Satã e os demônios jamais podem ser considerados da mesma importância que os textos que anunciam a salvação: eles são simplesmente o contraponto que alerta para a responsabilidade humana e a possibilidade concreta de um “não” a Deus. Nos sinóticos o diabo é chamado “o inimigo” (cf. Mt 13,36; Lc 10,19) e “o maligno” (cf. Mt 13,19; 38) e, nos escritos joaninos, ainda mais intensamente, “o príncipe deste mundo” (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11; 17,15; 1Jo 2,13s; 5,18) e, portanto, adversário da obra da redenção do Filho encarnado (cf. 1Jo 3,8; 3,10). A própria vida e missão de Jesus são apresentadas como uma luta contra Satanás: seu objetivo é a vitória do homem sobre o diabo, reduzindo-o à impotência. É este o contexto no qual devem ser compreendidas as palavras de Jesus sobre o diabo, bem como sua prática de exorcismos. A luta contra Satanás perpassa o combate de Jesus contra os judeus incrédulos, chamados “filhos do diabo” (cf. Jo 8,44), e chega ao seu paroxismo na paixão, que será, no entanto, o triunfo de Cristo. As dêutero-paulinas atribuem à vitória de Cristo uma dimensão cósmica (cf. Ef 2,2; 6,10-20; Cl 2,9.15) e o Apocalipse anuncia a derrota total de Satanás (cf. 12,7ss). No entanto, neste meio-tempo ele pode seduzir os fiéis (cf. 1Cor 7,5; 2Cor 2,11; At 5,3) e perseguir a Igreja (cf. At 13,10; 1Pd 5,8s; Ap 12,13-17). É ele o inimigo que semeia o joio no campo do pai de família (cf. Mt 13,39) ou arranca do coração do homem a semente da Palavra (cf. Mc 4,15). Paulo, ao falar do Pecado, parece supor a ação de Satanás, pai do pecado (cf. Rm 5,12//Sb 2,24; Rm 7,7//Gn 3,13). Assim, o cristão deve escolher entre Deus e Satanás, entre Cristo e Belial (cf. 2Cor 6,14), entre “o Maligno” e “o Verdadeiro” (cf. 1Jo 5,18s).
b) Quanto aos demônios, era comum a crença neles nas culturas do antigo Oriente, que dava uma feição pessoal à inúmeras forças obscuras que se pensava presentes por trás dos males que assaltam o homem. Praticava-se, então, ritos mágicos, como parte da medicina, para livrar as pessoas e controlar tais demônios: toda doença era atribuída a um tipo de demônio.
No Antigo Testamento fala-se em demônio do deserto (cf. Lv 16,8-26), da noite (cf. Is 34,14),do meio-dia (cf. Sl 91,6) e outros tantos demônios nocivos (cf. 2Cr 11,15; Is 2,6; Sl 106,6), exprimindo-se, assim, uma clara relação com a natureza. No entanto, a severa proibição da magia na Lei hebraica tende a excluir a doutrina e a prática demonológicas em Israel. A crença nos demônios, portanto, não se reflete de modo importante no Antigo Testamento, salvo em algumas alusões presentes na linguagem popular e em algumas referências à superstição entre os hebreus (cf. Dt 32,17; Sl 106,37; Is 13,21; 34,14). Os profetas protestaram energicamente contra uma visão pagã de tais demônios, na qual eles eram tidos até mesmo como deuses; no Antigo Testamento afirma-se sempre que são subordinados a IHWH. Nesta linha o judaísmo os vê como espíritos maus, identificados com os ídolos estrangeiros, capazes de seduzir o homem.
A literatura extra-bíblica do judaísmo tardio demonstra uma crença arraigada nos demônios e os vê como anjos decaídos. Em muitos aspectos tais crenças são influenciadas pela mitologia mesopotâmica e grega. Os demônios são também identificados com os filhos de Deus que casaram com as filhas dos homens (cf. Gn 6,1-4), de cuja união teriam nascido os gigantes folclóricos da mitologia. Tal interpretação corresponde efetivamente à perícope de Gênesis, que é um fragmento mitológico de origem desconhecida! Acreditava-se que tais demônios são responsáveis pelas doenças e pelas desgraças. Eles estariam organizados em um reino, sob um chefe chamado Mastema, Belial ou Satanás!
No Novo Testamento Jesus adota a linguagem do judaísmo, mas purifica-a, adaptando-a à cristologia: os demônios são espíritos impuros que se opõem ao advento do Reino de Deus instaurado por Jesus (cf. Mc 3,22-30); por isso ele os expulsa como sinal do Reino que começa a se fazer presente (cf. Lc 11,20). A tradição neo-testamentária interpretou a sua Páscoa como vitória que destruiu tais potências demoníacas (cf. 1Cor 15,23-28; Cl 2,15). Em outros textos neotestamentários, as vítimas dos sacrifícios pagãos são imoladas aos demônios (cf. 1Cor 10,20s) e os demônios são apresentados como espíritos sedutores, responsáveis por falsas doutrinas (cf. 1Tm 4,1); eles chegam mesmo a fazer maravilhas (cf. Ap 16,14), são chamados “anjos de Satanás” (cf. Mt 25,41) e lhes está reservado o fogo eterno. Quanto aos principados, tronos, autoridades, soberanias, dominações e autoridades (cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; 3,10; 6,12; 1,16; Cl 2,10) são de difícil compreensão. O importante é que o Novo Testamento afirma diante deles o absoluto primado de Cristo: se são perversos, foram subjugados por Cristo; se são bons, têm a Cristo como cabeça e estão a seu serviço!
Uma última observação quanto à demonologia bíblica: pode-se perguntar até que ponto o Novo Testamento, ao falar em Satanás e em demônios, utiliza a linguagem e o simbolismo da mitologia para personificar o mal. Certamente uma tal linguagem não implica em afirmações dogmáticas e filosóficas sobre eventuais forças do mal, pessoais e cósmicas. A questão não é de fácil solução. Mais adiante, trataremos dela.
Nos Padres da Igreja o Diabo é chamado sobretudo Satanás, o Maligno, Lúcifer (o portador da luz; isto com base numa exegese impertinente de Is 14,12 e Jó 41,10). Metódio chama-o “faraó”, Basílio o denomina “misantropo” e muitos outros identificam-no com a serpente de Gn 3 e 2Cor 11,3 (tal opinião foi completamente abandonada pela exegese moderna). No que diz respeito aos demônios, são anjos decaídos, vítimas do desejo de possuir as filhas dos homens. Quanto ao Magistério eclesial, impelido pelos erros dualistas dos priscilianos, o Papa Leão I, ensinou em 447, que o diabo não é uma substância originária saída de modo autônomo do caos: ele é criatura de Deus, essencialmente boa, que fez mau uso de sua liberdade[7]. Assim, ensinava Inocêncio III, o seu pecado é estruturalmente igual ao dos homens: um ato de livre vontade:
O Sínodo de Braga, em 561 já ensinava igual doutrina e rejeitou a opinião segundo a qual o diabo seria o responsável pelos trovões, raios e temporais ou, ainda, pela formação do corpo humano no seio materno[9]! Declaração infalível da Igreja sobre o assunto é a do IV Lateranense em 1215:
O Diabo e os outros demônios foram criados por Deus naturalmente bons e tornaram-se maus por sua própria culpa. E o homem pecou por sugestão do Diabo[10].
A intenção do concílio era condenar o dualismo dos cátaros e albigenses: estes afirmavam que a matéria não é obra de Deus e que o diabo e os demônios também não são criaturas de Deus: eram perversos e incriados ou chamados à existência por um princípio do mal anti-divino, independente de Deus. O ensinamento primário do concílio é muito sóbrio: há um só princípio, um só criador de tudo quanto existe: Deus, criador de todo o bem; o mal não vem de Deus, mas do mau uso da liberdade por parte da criatura. Assim, afirma-se a qualidade positiva da criação. O concílio não diz nada sobre o número dos demônios, sobre sua culpa ou a extensão de seu poder. Em outras ocasiões o Magistério pronunciou-se sobre o diabo, mas somente em proposições subordinadas e secundárias: ele é o soberano do império da morte[11] e de todo o mal moral presente no mundo[12]; ele é sujeito a uma pena perpétua[13].
Quanto ao modo de ação do diabo e seus anjos no mundo, a teologia clássica e o Magistério ordinário afirmam três modos diversos: (1) a tentação, que se faz à maneira de sugestão, que desperta normalmente uma inclinação para o mal. Mas só há pecado quando provém do livre consentimento; (2) a obsessão, ação diabólica apenas exterior, na qual a vítima é atormentada fisicamente, sem que perca o domínio sobre os atos do seu corpo; quando a ação demoníaca incide sobre lugares e ambientes chama-se infestação e (3) a possessão, na qual o demônio se serve do corpo da pessoa, como esta mesma o faria: move-o, fala, atua, sem que o possesso consiga resistir a isso, embora sua vontade permaneça inatingida. Convém ressaltar que não há nenhuma declaração solene da Igreja sobre temas como a possessão e a obsessão, no entanto, a Escritura e a constante Tradição eclesial apontam para uma real possibilidade destas realidades, de modo que nega-las simplesmente é temerário.
Após este breve percurso pela Escritura, o Magistério e a tradição teológica da Igreja, convém uma breve apresentação do status quaestionis.
Alguns teólogos e exegetas mostram-se hoje propensos a negar a existência individual do diabo, que seria apenas uma manifestação concreta do mal moral no mundo, expressa numa cultura pré-científica pelos escritos do Novo Testamento. Em 1969, HEBERT HAAG, docente de Antigo Testamento em Tubinga, chegou a negar a existência do diabo: ele seria apenas a objetivação mitológica do mal presente no mundo, que ultrapassa a simples soma dos males individuais. Na atual sociedade científica uma tal concepção seria insustentável e desnecessária! A obra de HAAG influenciou muitos teólogos. No entanto, há teólogos mais moderados que afirmam que ainda que o diabo não exista como indivíduo, é absolutamente necessário continuar falando nele, como objetivação simbólica do mal que transcende na história a mera soma das opções negativas das liberdades individuais: o mal desencadeado pelo mal uso da liberdade humana teria uma tal força e dinamismo que já não está mais sob o controle do homem, mas se constitui uma realidade como que autônoma[14].
Que pensar de tais tentativas de compreensão? Se é verdade que a existência dos anjos é, segundo a grande maioria dos teólogos, verdade de fé definida pela Igreja, torna-se muito difícil negar a existência individual de Satã e seus anjos sem ferir a fé da eclesial: como já foi dito anteriormente, se existem liberdades criadas que não o homem, é necessário afirmar que tais liberdades são capazes de um não a Deus e é plenamente lícito supor que algumas de tais liberdades tenham, efetivamente, respondido negativamente a Deus. É esta a constante tradição bíblico-eclesial! Assim, deve-se manter como sendo parte da fé católica a afirmação da existência do diabo e seus demônios. No entanto, a posição de HAAG e outros teólogos tem o importante papel de convidar a teologia a uma maior moderação e mais acurado senso crítico nas suas afirmações sobre a demonologia. Neste sentido se movem importantes teólogos e exegetas atuais, como K.RAHNER, W.KASPER, K.LEHMANN, J.RATZINGER, CH. DUQUOC, entre outros, que fazem interessantes aprofundamentos[15].
Uma primeira observação é que não se pode com cândido desembaraço afirmar que Jesus, no que diz respeito ao diabo, simplesmente conformou-se à mentalidade do seu tempo. Nem todos na cultura judaica aceitavam a existência de Satã: é o caso dos saduceus (cf. At 23,8). Ademais, para uma reta avaliação da demonologia do Novo Testamento, RATZINGER propõe quatro pontos norteadores, de cunho hermenêutico:
i. Comparando a demonologia do Novo Testamento com a do Antigo, constata-se uma expansão do Novo em relação ao Antigo, com um peso impressionante na vida de Jesus. Tal processo de intensificação tem um forte significado: na história inicial da fé vétero-testamentária a afirmação de potências demoníacas deveria permanecer em segundo plano para deixar firme a fé no Deus único. Ora, a fé cristã proclama tal unicidade e somente a partir de Deus contempla e avalia o mundo. Quanto mais o homem está próximo a Deus, tanto mais torna-se realista e com mais clareza distingue e experimenta o que é santo e, em contrapartida, consegue desmascarar o engano do diabo. É precisamente esta a realidade trazida por Cristo.
ii. Para avaliar a importância de algum elemento da fé, é necessário sempre perguntar que relação ele tem com a realização interior da fé e com a fé concreta e existencial do crente. Uma asserção que tenha um influxo mais direto no desenvolver-se da existência cristã deve ser considerada como parte daquilo que é essencialmente cristão. Ora, a luta de Jesus com as potências demoníacas pertence ao específico caminho religioso do próprio Jesus: os exegetas atuais reconhecem que o Jesus se considerava vindo ao mundo para destruir o reino de Satanás, instaurando o Reino de Deus na força do Espírito (cf. Mc 3,20-30). Não deixa de surpreender que ele, que não aceitava ser um messias “milagreiro”, considerasse a luta contra o diabo como parte central de sua missão (cf. Mc 1,35-39) e dos poderes que ele concede aos discípulos (cf. Mc 3,14s). É de tal modo importante o modo como Jesus se refere a tais forças demoníacas que seu caminho espiritual muda profundamente se se exclui esta luta contra o Reino de Satanás.
iii. Para uma exegese realmente eclesial é necessário observar de que modo determinadas realidades da Escritura foram acolhidas na fé da Igreja. No entanto, tal fé não é uma realidade unívoca e facilmente determinável, de modo que é necessário observar com exatidão em que medida uma realidade faz parte do núcleo da fé eclesial, a ponto de ser base da oração e da própria vida do povo de Deus, para além de qualquer contingenciamento cultural. Ora, o Batismo, experiência central do ser cristão, sempre foi celebrado na Igreja num contexto de exorcismo (menor) e renúncia a Satanás, introduzindo o homem no modelo de existência de Cristo, na sua luta e na sua liberdade. A partir do Batismo o cristão deverá apropriar-se do caminho do próprio Senhor, vencendo Satanás como Jesus venceu. Negar a potência demoníaca implicaria numa radical mudança do modo de conceber o Batismo e sua realização na vida cristã. Neste sentido, é importante que a teologia esteja atenta à experiência dos santos: sua experiência é a de Jesus: quanto maior é a presença da santidade, menos o diabólico pode esconder-se. É sintomático que o escondimento do demoníaco no mundo atual intensifica-se na mesma proporção do desaparecimento do que é santo!
iv. Um sério problema atual é a questão de conciliar a fé com determinada visão do mundo. Aquela deve ser continuamente crítica àquilo que vez por outra aparece como certeza simplesmente porque moderno e novo. Se é verdade que a fé não pode contradizer um conhecimento científico garantido, não é menos verdadeiro que ela não se move ao sabor dos gostos e modas mentais de cada época.
Estes pontos norteadores, de valor variável, apontam para a responsabilidade das afirmações concernentes à demonologia. Biblicamente é inegável a convicção da existência de forças demoníacas, ainda que denominadas de modo muito variável na Escritura, de tal maneira que o problema de sua existência não pode ser resolvido com um simples sopro de demitização! Exegetas sérios afirmam que não se trata simplesmente de demitizar tais forças para vencê-las: somente a fé em Deus e na sua promessa salvífica nos liberta realmente. Do ponto de vista exegético, devem ser superadas simplesmente algumas representações ligadas à cosmovisão da época, como responsabilizar os demônios pelas doenças, falar em “potências dos ares” (cf. Ef 2,2) e até mesmo a admissão do fenômeno da possessão.
Uma questão bem mais séria é aquela de determinar até que ponto se pode falar no diabo como um “ser pessoal”. A resposta a tal problema é complexa, pois o próprio termo “pessoa” é analógico se aplicado a Deus, ao homem ou aos puros espíritos. Já São Tomás de Aquino hesitava em empregar tal conceito para os seres que são puras inteligências. Se nos ativermos à definição de Boécio (persona est naturae rationalis individua substantia), então pode-se aplicar o termo pessoa a um ser que é puro espírito. Ora, a Escritura vai além deste simples conceito, ao supor que Satanás (Acusador, Tentador, Adversário, Corruptor) é dotado de inteligência e vontade, apontando assim para uma subjetividade que ultrapassa o conceito clássico de pessoa! É aqui que o conceito mostra-se problemático[16]: atualmente “pessoa” e “personalidade” envolvem uma profunda dimensão relacional eu-tu, no diálogo, na comunicação e na responsabilidade construtiva. “Pessoal” implica algo de exigência de amor, não sendo uma realidade neutra, mas pressupondo um verdadeiro encontro. Como, então falar do diabo como pessoa? Levando em consideração a riqueza que o termo atualmente comporta, faremos as seguintes esclarecimentos, inspirados em K.LEHMANN, J.RATINZGER e W.KASPER:
1. Satanás é um ser dotado de capacidade de conhecimento e vontade que, porém, não lhe serve para conhecer a verdade e desejar o bem, de modo que o seu agir é profundamente condicionado pela vontade de destruição. Na sua essência puramente espiritual aparece o quanto o mal não é somente privação do bem, mas também um agir positivo contra o bem: o diabo não é somente uma coisa má; ele é malvado, “Maligno”, no dizer de Jesus! Portanto, bem e o mal, do ponto de vista teológico, não podem ser definidos simplesmente em termos ontológicos como privação do bem, mas somente em relação a Deus, isto é como uma falta diante de Deus ou perversão da relação com ele. Malvada é aquela criatura dotada de liberdade que não reconhece o sentido do seu ser-criada e quer ser ela mesma seu deus. Ora, o sentido do ser contra Deus somente pode ser encontrado no ser ninguém: Satanás é ninguém, mas não é nada! Assim, o mal de Satanás e seus anjos constitui-se na livre negação de Deus e do seu plano salvífico em Jesus Cristo. O mal, portanto, não é privação do bem, mas privação de Deus até à perversão de si mesmo, do seu ser criatural: o diabo é dobrado sobre se mesmo, fechado, endurecido, não pelo seu próprio ser criado, mas por livre decisão sua, de modo que ele subverte seu próprio ser e anula sua própria liberdade como capacidade de bem, de resposta positiva ao Criador, de tal sorte que não é possível encontrar nenhuma analogia a tal situação na esfera criada. Dramaticamente, sua essência é o não estar jamais contente na sua obra de destruir, desejando destruir sempre mais! Por tudo isso, o Maligno é contraditório, perverso, esquizofrênico, totalmente alienante, absurdo, desorganizado, destrutivo e caótico.
2. O poder das trevas se manifesta, mas jamais se revela: o diabo subtrai-se a qualquer identificação e aqui reside a fonte da incompreensibilidade do Maligno: único na sua essência, múltiplo no seu aparecer, nada e ao mesmo tempo extremamente destrutivo, pessoal e ao mesmo tempo irreconhecível, transfigurado em anjo de luz! Por isso mesmo ele é a negação de pessoa e da personalidade: ele age de um modo que dissolve a pessoa, deformando o homem em pura e amorfa massa e eximindo-o de toda a responsabilidade pessoal. Com acuidade Ratzinger elege a categoria de “relação” para analisar a personalidade do diabólico: ele observa que somente as categorias “eu” e “tu” não são suficientes para abarcar a realidade; é necessário incluir a relação que une o “eu” e o “tu” e torna-se uma característica autônoma em relação aos dois pólos. Assim, a relação é uma força decisiva do destino, do qual o nosso eu não pode dispor à vontade. É precisamente nesta relação que se manifesta privilegiadamente o demoníaco, enquanto com ela o homem é constantemente confrontado numa realidade que lhe é exterior e atenta contra a retidão da relação entre o “eu” e o “tu”, colocando em xeque a própria liberdade humana! É aqui que se colhe a especificidade do demoníaco: a sua ausência de fisionomia, o seu ser anônimo, impessoal: ele é não-pessoa, a desagregação, a dissolução do ser pessoa, o sem-face, de modo que sua irreconhecibilibade é sua verdadeira força. Assim, ele é uma potência real, ou melhor, um concentrado de potências e não uma simples soma de “eu” humanos. Daqui é possível compreender como a força anti-demoníaca por excelência seja o Santo Espírito do Ressuscitado: ele é o intermediário no qual Pai e Filho se constituem numa só coisa; nele o cristão encontra a unidade com o Deus em Cristo e, em Cristo, com os irmãos. Por isso mesmo o cristianismo terá sempre uma missão de exorcismo: desmascarar e expulsar o demoníaco que se esconde no anonimato das modas e ideologias de cada época[17].
3. Estas reflexões mostram que o ser pessoal do diabo revela aspectos coletivos, a tendência de mascaramento, a intenção de enganar e o caráter de anonimato. Ratzinger tem razão de afirmar que o diabo é não-pessoa, manifestando-se em estruturas tipicamente a-pessoais, diluídas na massa. É exatamente aqui que os cristãos receberam de Cristo a missão de exorcizar Satanás e seus demônios: é dever dos discípulos de Cristo desmascarar e denunciar o mal, exorcizando-o em nome do Ressuscitado. Este exorcismo não se constitui simplesmente numa renúncia “humanamente correta”, mas numa invocação do poder daquele que recebeu toda autoridade no céu e na terra: somente na sua graça e com sua força o homem poderá vencer e expulsar o Maligno do seu coração e do coração do mundo!
4. Aparece, então, claramente o ser contraditório do diabo: o mal é o ninguém e ninguém busca o ninguém pelo fato de ser ninguém – busca-se-lo pensado ser um bem. Daí o diabo ter que travestir-se em anjo de luz, sendo o fingido, o mascarado, aquele que é ambíguo. Curiosamente, aqui reencontramos o antigo conceito de pessoa (prósopon) na sua acepção de máscara!
Por todos estes motivos acima elencados, é difícil, sem mais, atribuir um ser pessoal ao diabo. Por outro lado, convém recordar que ele continua um ser criado e amado por Deus, sua criatura, radicalmente boa, de modo que aqui se radica algo de personalidade, apesar da subversão operada pela sua vontade criatural desvirtuada. Este elemento pessoal é importante quando se reflete sobre a origem do mal, pois barra a entrada de qualquer interpretação naturalística do mal ou uma sua inadequada acentuação. O mal tem sua origem na liberdade do ser criatural.
Concluindo esta apresentação sobre anjos de demônios, podemos fazer o seguinte raciocínio. Toda a criação procede do Pai, pelo Filho, no Espírito e é chamada radicalmente à comunhão plena com o Pai através do Filho morto e ressuscitado na potência do Santo Espírito, Senhor e Vivificador de tudo quanto existe. A uma tal comunhão toda a criação é conjuntamente chamada, sendo parte de uma única historia salutis. Somente nesta perspectiva tem sentido uma reflexão teológica cristã sobre os anjos e demônios. Como os homens, também estes seres que a Escritura nos revela como pertencentes ao mundo invisível, igualmente criado por Deus, foram e são chamados à comunhão com Deus em Cristo e, assim, à comunhão com todo o criado. Do sim ou não ao chamado através de Cristo depende a realização plena ou a frustração profunda do seu ser criatural: nos anjos e demônios ocorre de uma só vez aquela situação de plenitude ou frustração que os seres humanos vivenciarão somente na Parusia do Senhor. É exatamente nesta real possibilidade de não a Cristo que tem sentido falar sobre o diabo e seus anjos: sua frustração, seu mascaramento, sua incapacidade de comunhão, sua desagregação como pessoa, seu desamor encontram sua última razão de ser no fechamento àquele que é Cabeça do corpo que, ao fim de tudo, será todo o mundo criado. Esta Cabeça é o Cristo Ressuscitado que, no seu Espírito que dá vida a toda a criatura, nos introduz na comunhão com o Pai
Uma última e insistente observação: afirmar a existência dos anjos e demônios não autoriza os cristãos a um concepção mítica da realidade nem a uma exegese ingênua e grosseira dos textos evangélicos!
[1] Na preparação deste capítulo valemo-nos das seguintes obras: B.Marconcini & alt., Angeli e demoni, Bologna, 1992; C.F.Gomes, Riquezas da mensagem cristã, Rio de Janeiro, 19812, pp.228-238; J.Auer, El mundo, creación de Dios, Barcelona, 1985, pp. 448-499; J.E.Martins Terra, A angelologia de Karl Rahner à luz dos seus princípios hemenêuticos, Aparecida, 1996; J.L.Mackenzie, Dicionário Bíblico, S. Paulo, 1984, pp. 225-227; 852-854; J.Michil, Anjo in H.Fries, Dicionário de Teologia, vol. 1, S. Paulo, 1983, pp. 106-120; K.Rahner, Ángel, in Sacramentum Mundi, vol. 1, Barcelona, 1982, cols. 153-162; Angelologia, ibidem, cols. 162-171; M.Schmaus, A fé da Igreja. Vol. II – Cristologia, Petrópolis, 1982; pp. 141-154; P.Grelot & P.M.Galopin, Anjos, in X.Leon-Defour,Vocabulário de teologia bíblica, Petrópolis, 1987, cols. 59-62; W.Kasper & K.Lehmann,(edd), Diavolo, demoni, possessione, Brescia, 1983.
[6] Para uma apresentação mais clássica e sistematizada da angelologia, cf. C.F.Gomes, op. cit. A impostação é fortemente tomista. Aí aparecem afirmações como: “Discutem os teólogos se se deva dizer que a graça angélica, no que tem de essencial, seja devido a Cristo, ou se apenas receba seus influxos” (p. 236, nota 294)... como se existisse outra graça que não fosse gratia Christi!
[15] Além das obras já citadas no tocante à angelologia, cf. ; A.Ganoczy, Diavolo, in W.Beinert, Lessico di Teologia Sistematica, Brescia, 1990, pp. 176-178; Ibidem, Demoni, pp. 168s; Congregação para a Doutrina da fé, Foi chrétienne et démonologie, in Enchiridion Vaticanum, 5, Bologna, pp. 830-879; J.Navone, Diabo/Exorcismo, in S.de Fiores & T.Goffi, Dicinário de Espiritualidade, S. Paulo, 1989, pp. 267-278; J.Ratzinger, Dogma e predicazione, Brescia, 1974, pp. 189-197; W.Kasper & K.Lehmann (org), Diavolo, demoni, possessione, Brescia, 1983.
Nenhum comentário:
Postar um comentário