Bento XVI recebe monsenhor Ladaria Ferrer em Castel Gandolfo, dia 10 de setembro de 2008 [© Osservatore Romano]
Monsenhor Ladaria Ferrer [© Osservatore Romano]
Vejamos, antes de
adentrarmos a visão antropológica-teológica de Luis Ladária, uma célere
introdução, à guisa de exposição didática, aos principais conceitos da
Antroplogia mediante o estudo, outrora, feito por nós, alunos de Antropologia
Cultural e Teológica por ocasião da leitura do livro de Luiz Gonzaga de Mello[1]
O componente verbal
pode ser analisado em três dimensões:
a) do ponto de vista objetivo; b) do ponto de vista subjetivo e c) do ponto de vista da utilidade. Na
teoria, há duas partes distintas a
considerar:
Classe I: material experimental;
I a: nexo lógico;
I b: nexo não lógico.
Classe II: material não experimental;
I a: nexo lógico;
I b: nexo não lógico.
Podemos ter, do ponto de vista objetivo, a teoria em
si, sem levar em consideração quem a produziu ou quem as escolhe, se são úteis
ou não.
Em ciências humanas,
não são objetos de estudo apenas as ações concretas, mas também as
verbalizações e as intenções do sujeito do estudo.
Para Pareto, a ciência deve
criar teorias lógico-experimentais. Segundo ele, também, a utilização de
verbalização como forma de defesa dos próprios interesses ou dos interesses de
classe é uma forma de derivação. Acredita que o homem age do concreto para o
abstrato e não o inverso.
Um fato comprovado é o
suficiente para destruir uma teoria, pois eles não estão sujeitos às leis e às
teorias científicas; ao contrário, estas devem estar baseadas nos fatos.
Nossa exposição levará
em conta os três níveis de análises consideradas por Pareto: o objetivo, o subjetivo e o de utilidade.
Considere-se as
contribuições greco-romanas para a formação da antropologia. De certo, ela foi
gigantesca e nunca convenientemente avaliada. Além desses povos, os assírios,
sumérios, babilônicos, egípcios, fenícios e hindus deram contribuição. Dos greco-romanos,
Heródoto, Sócrates, Platão, Aristóteles, Hipócrates, Lucrécio, César, Tácito,
Galeno e Marco Aurélio são nomes eminentes. Da Idade Média, os grandes nomes
são Santo Agostinho, Avicena e Averróis. Da Idade Moderna, o grande nome foi
Bacon. A verdade é que todas as épocas dão uma contribuição significativa à
antropologia contemporânea. Ademais, como veremos mais a frente, a maior
contribuição não poderia vir de outra ciência senão da Teologia, a rainha das
ciências, que submete até mesmo a Filosofia.
Para a antropologia, os
fatos mais significativos foram: grande desenvolvimento da antropologia
cultural; sistematização da antropologia física e o surgimento da arqueologia e
da pré-história. As variadas formulações sobre a sociedade e a cultura surgidas
na Europa, nos séculos XVIII e XIX, convergem para três objetivos comuns, quais
sejam: origens, idade e mudança.
O desenvolvimento da
antropologia cultural deveu-se principalmente às grandes descobertas marítimas.
Durante o século XVI a Europa foi invadida por escritos e crônicas a respeito
dos povos, até então, desconhecidos (os chamados povos exóticos). No século
XVIII, todos se lançaram à tarefa de conhecer tudo a respeito do homem, pondo
em prática aquela crença de que ao homem competia traçar seus próprios
caminhos. O termo antropologia em sua
acepção mais ampla é claramente empregado desde o final do século XVIII. O
termo etnografia é empregado no início do século XIX.
Mercier divide a
Antropologia. O Período de Convergência e
o Período de Construção estão dentro
de um só por ele considerado “ambições”.
As variadas formulações
sobre a sociedade e a cultura surgidas na Europa, nos séculos XVIII e XIX,
convergem para três objetivos comuns, quais sejam: origens, idade e mudança. Outro fato importante desse
período foi o surgimento de várias revistas e numerosas associações
científicas.
O terceiro período foi
o de Construção que é uma simples
continuação do segundo. Os fenômenos assumem apenas uma intensidade mais
efetiva. O número de associações que são criadas, então, cresce
vertiginosamente. O que diferencia este período do anterior foi o aparecimento
da obra clássica de Charles Darwin – A origem
das Espécies, em 1859. Nasce então, a moderna antropologia.
Por fim, o Período de Crítica, que teve início em
1900 e se dá até hoje e que é o período mais fecundo da antropologia. Cânones
foram criticados e novas abordagens propostas. Houve um avanço em ciências
paralelas. Os meios de comunicação progrediram muito, permitindo assim, uma
divulgação e comunicação de ideias mais eficientes. A educação foi mais
democratizada. O movimento universitário cresceu. A própria antropologia passou
a ser disciplina obrigatória em muitas universidades. Em suma, esse período se
apresenta em ebulição. Muito se espera dos estudos nos países do Terceiro
Mundo.
Os estudos
antropológicos são deveras salutares para o aprendizado e a condução acadêmica
na área teológica, pois dispõem para nós um ferramentário teórico e
epistemológico muito rico que devem ser postos em prática no labor teológico.
Uma
vez que já recapitulamos um pouco do que aprendemos com Gonzaga de Mello e
também com o professor da disciplina pertinente, a saber, Luis Guatura,
passemos uma rápida biografia de Ladária, o autor do livro que estamos
resenhando.
Luis Francisco Ladaria
Ferrer nasceu em Manacor em 19 de abril de 1944. É um teólogo jesuíta espanhol,
professor da Universidade Gregoriana de Roma e nomeado pelo papa Bento XVI
secretário da Congregação para a Doutrina da Fé (a herdeira direta do Tribunal
do Santo Ofício da Inquisição). Foi sagrado arcebispo em 26 de julho de 2008. É
uma das maiores referências teológicas da Cúria Romana. Cursou Direito pela
Universidade Complutense de Madri, graduando-se em 1966. Neste mesmo ano
ingressou na Companhia de Jesus. Fez seus estudos de Filosofia e Teologia na Universidade
Pontifícia Comillas (Madri) e na escola de Filosofia e Teologia São Jorge, em
Main, Alemanha. Emitiu os votos religiosos em 1968. Foi ordenado sacerdote no
dia 25 de julho de 1973. Doutorou-se em Teologia no ano de 1975 pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma, especializando-se em Antropologia Teológica. Ainda
em 1975, tornou-se professor de teologia dogmática na Universidade Pontifícia
Comillas. Em 1984 passou a lecionar na Universidade Gregoriana, onde foi
vice-reitor (1986-1994). Entre 1992 a 1997 atuou como membro da Comissão
Teológica Internacional. Desde março de 2004 é o secretário desta Comissão. Em
1995, foi nomeado consultor da Congregação para a Doutrina da Fé. Em julho de
2008 foi nomeado secretário da Congregação para Doutrina da Fé e elevado à
condição de Arcebispo Titular de Tibica.
Seus livros principais,
em português:
Introdução
à Antropologia Teológica, Edições Loyola, São Paulo, 1998.
História dos dogmas 2 - O homem e sua
salvação, em
co-autoria, Edições Loyola, 2003.
O
Deus Vivo e Verdadeiro: o Mistério da Trindade, Edições Loyola, São Paulo,
2005.
Isto posto, resta-nos
começar a nossa resenha. E o faremos com a preocupação de que o leitor nos
entenda e possa, se isto for possível, ter ao alcance uma exposição da
antropologia de Ladária que lhe permita conhecer o cerne da sua mensagem sem
precisar sequer abrir seus livros.
Pois bem. Iniciemos
pelas áreas de estudo do homem em seus diversificados aspectos. As áreas para
se tratar do homem são várias: filosofia, psicologia, medicina, sociologia etc.
A antropologia é uma delas. O termo “Antropologia” torna-se, em muitos casos,
um termo equívoco. É evidente que a palavra nos remete ao homem, nos mostra que
ele é o objeto material para se estudar Antropologia. Mas é importante
enfatizar do que o homem é em sua relação com o Deus Uno e Trino revelado em
Cristo. Ao mesmo tempo, indica-nos pelo menos em linhas gerais, o método que
precisamos seguir para alcançar o objetivo: o estudo da revelação cristã.
Perceba que Ladária
caminha de modo didático, pedagógico, mas, simultaneamente, profundo, pois, de
pronto, afirma a relação homem-Deus como sendo o pilar de sustentação de toda a
Antropologia. Todavia, esta abordagem, temos que ser honestos, não recebe
acolhimento nas esferas acadêmicas seculares.
Mas voltemos à
revelação cristã.
Jesus Cristo é, com
efeito, o revelador do Pai. Quando, na teologia cristã, se fala de revelação, é
Deus que se dá a conhecer. Aliás, é sempre Ele que dá o primeiro passo no
relacionamento com o homem. A própria revelação cristã, que nos fala de Jesus
Cristo como Filho encarnado e de nosso encontro com Ele na fé, pressupõe um
conhecimento e uma experiência o que significa ser o homem um sujeito livre e
responsável por si mesmo. A salvação vem pela Graça a todos, mas cabe também ao
homem sua participação, seu passo em direção a Deus: a fé comprovada pelas
obras.
A revelação de Deus, personificada
em Jesus Cristo e que Paulo chamará de mistérion,
apresenta-se a nós de formas articuladas, não simplesmente de um modo global e
superficial em que não se dá a possibilidade de distinguir aspectos e pontos de
vista. Pelo contrário, para ter uma
visão completa do homem do ponto de vista da fé cristã, é preciso distinguir
entre os aspectos fundamentais de nossa referência a Deus. Ou seja,
aprioristicamente, o ser humano se define pela sua relação com Deus: todos são
criaturas; se alguns se convertem a Jesus Cristo, estes mesmos passam a ser
também filhos de Deus; assim, também se tornam irmãos em relação àqueles que
também se tornaram filhos.
O estudo do homem do
ponto de vista da revelação divina, articulado do modo que expusemos
brevemente, constitui o objeto fundamental da Antropologia Teológica.
Também a Escatologia se
relaciona com a Antropologia Teológica. É o estado de plenitude da humanidade
agraciada por Deus. É preciso, outrossim, evidenciar os laços que ela tem com a
Cristologia e a Eclesiologia.
A Antropologia
Teológica, pelo menos em suas noções fundamentais, foi abordada na sistemática
medieval em relação com a criação.
O Concílio Vaticano II,
como se sabe, não dedicou nenhum documento expressamente ao homem. Mas também é
claro que a Constituição Pastoral Gaudium
et Spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo nos oferece, sobretudo no
início, uma válida síntese antropológica; com efeito, já em GS 3 somos informados de que o ponto
central da exposição será “o homem considerado em sua unidade e totalidade,
corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade”. Ou seja, é uma
celebração ao homem, mas não da mesma forma que fizeram os renascentistas
humanistas da Europa pós-medieval. Estes enalteceram a liberdade humana de tal
maneira que um resultado disto foi a secularização social humana, o
agnosticismo e o ateísmo pós-moderno. Ao contrário, a Gaudium et Spes enaltece o homem como um hólos dependente de Deus, livre, sim, mas nas mãos do Eterno.
Contudo, o mais
importante não é o tratamento da matéria antropológica restrita; pelo
contrário, a própria abundância de questões a estudar pode alertar contra
sínteses apressadas demais; trata-se, antes de tudo da consciência de que é
possível agregar em torno do homem, como objeto fundamental, uma série de
conteúdos e disciplinas teológicas ou não, até agora, dispersas. Não obstante,
também, mesmo partindo dessa convicção, estudos parciais podem e devem ser
realizados. Parece que, pelo menos, alguns planos de estudo de faculdades
teológicas procuram unir as matérias antropológicas segundo uma certa unidade,
ao lado de outros núcleos fundamentais da dogmática, núcleo cristológico-trinitário
e núcleo eclesiológico-sacramental. A FAECAD, por exemplo, o faz atrelando a
Antropologia Cultural à Antropologia Teológica.
Querendo fazer um breve
balanço da situação concreta da antropologia como disciplina teológica hoje,
partindo do programa traçado, pode-se verificar que a integração da
“antropologia teológica” não é nem uniforme nem universal.
O mundo que nos
circunda é também criatura de Deus, e o homem acha-se inserido neste mundo, é
parte do cosmos, não está nele como um hóspede em casa estranha. O homem é uma
criatura entre as criaturas, mesmo se neste mundo criado ele tenha uma evidente
centralidade. É uma criatura particular, sem dúvida, mas a particularidade,
embora a determine, de modo algum limita a condição de criatura. A reflexão sobre a criação, que diz
respeito às noções de Deus e de homem, ajuda-nos a compreender o que somos e a
contemplar uma dimensão fundamental e nossa existência, de nosso ser no mundo.
Embora o Novo Testamento (NT), à primeira vista,
não mencione diretamente a noção mesma ou o fato da criação (certamente, o NT
considera estabelecido que tudo foi criado por Deus), esta tem importância decisiva
para se compreender o significado universal de Jesus. A mensagem dos escritores
do NT a cerca do tema que nos interessa não é tanto que Deus criou tudo quanto
que esse Deus criador é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que tudo fez
mediante seu filho.
Os primeiros padres
escritores eclesiásticos, sobretudo os apologistas e os alexandrinos, viram a
função cósmica de Cristo num sentido semelhante. Em diálogo com a mentalidade filosófica
de seu tempo, esses padres consideraram o mundo algo harmônico, um cosmos, presidido pelo Lógos, a razão;
por isso, o mundo não é algo caótico, mas ordenado. Por isso os cristãos são aqueles que conhecem
e seguem o Logos. A fé abre-nos, portanto, o caminho para a reta razão; na fé,
descobrimos o verdadeiro sentido do mundo e das coisas.
Se Jesus Cristo nos
reconciliou com Deus e somos criação Sua, Jesus Cristo é personagem sine qua non poderíamos dizer um “a”
sobre antropologia. A mediação de Cristo foi afirmada no NT. Também a intervenção
do Espírito logo foi realçada. Assim, por exemplo, diz Atenágoras: “afirmamos a
Deus mediante cujo Verbo tudo foi feito e por cujo Espírito tudo é mantido”.
Também, nos antigos concílios ecumênicos, foi ressaltada a distinção das funções.
Nicéia, Constantinopla etc. A teologia dos últimos anos insistiu
particularmente no nexo intrínseco entre a Trindade e a criação. Não à toa é
que Ladaria também se especializou em Trinitariologia ou Teologia Trinitária.
Aliás, os interesses
acadêmicos de Ladaria concentram-se em três áreas principais. Em primeiro
lugar, a teologia patrística, com a sua tese doutoral El Espíritu Santo en San Hilario de Poitiers (1977), e outra obra
entitulada El Espíritu en Clemente
Alejandrino: estudio teológico-antropológico (1980). Em segundo lugar, a
antropologia teológica, com as obras Antropología
Teológica (1987), Introducción a la
Antropología Teológica (1993) e Teología
del pecado original y de la gracia (1993). Em terceiro lugar, a teologia
trinitaria, com as publicações El Dios
vivo y verdadero: el misterio de la Trinidad (1998) e La Trinidad, misterio de comunión (2002). Tem tratado de diversos
outros temas em livros, artigos e conferências.[2]
Voltemos agora nossa
atenção para o objeto central da antropologia teológica. “Quem é o homem, para que nele penses, e o ser humano, para que dele te
ocupes?” (Sl 8,5). Já o salmista se interroga sobre a grandeza humana em
sua fragilidade, o mistério e o paradoxo que impressionaram os pensadores de
todos os tempos; basta mencionar Santo Agostinho e Pascal. O Concílio Vaticano
II diz que a origem e a natureza do homem é uma questão não-resolvida, da qual
ninguém pode escapar principalmente nos momentos mais importantes da vida
(GS21). E essa questão sobre o homem não é apenas um problema ou um enigma, mas
constitui também, em termos estritos, um mistério, reflexo do mistério de Deus
(GS22; 1Co 15:51; Ef 3:3,4,9; 5:32; Cl 1:26,27; 4:3; Ap 17:5 e outras).
Em sua obra Introducción a la Antropología Teológica,
Ladaria reconhece que a reflexão teológica sobre o ser humano necessita como
base os dados e as intuições antropológicas que provêem da filosofía, da
psicologia, da medicina, da sociologia, etc. Precisa que sua abordagem do tema
da antropologia consiste numa contemplação destes conteúdos desde o ponto de
vista do que é o ser humano na sua relação com o Deus uno e trino revelado em
Cristo, através do estudo da revelação cristã.[3]
A afirmação sobre a
criação do homem à imagem e semelhança de Deus encontra-se, como se sabe, no
documento sacerdotal (P) (Gn 1:26-27). Contudo, o que mais foi dito na fonte
javista já prepara as afirmações desses dois versículos do primeiro capítulo: o
homem, formado por Deus a partir do pó da terra, recebe a vida de Deus; deve
trabalhar o jardim, dá o nome aos animais que estão ao seu serviço, precisa de
companhia adequada à sua condição.
A criação é um acontecimento
entre Deus e o homem; o homem, cada homem, foi criado para existir em relação
com Deus; nisso, consistirá sua condição de imagem (na concepção moral).
É importante recordar
que, ao tratarmos do tema do pecado, estamos refletindo sobre a realidade do
“homem pecador”, a qual está inserida numa história de pecado que, segundo os
princípios bíblicos, tem início no princípio da humanidade (Gn 1-3) e se
estende por toda a humanidade. Deste modo, a história da igreja se ocupou em
marcar a sua reflexão acerca do pecado unindo-se à doutrina do “pecado
original”, realçando o primeiro pecado “configurado” na história e, ao mesmo
tempo, discutindo seus efeitos auferidos sobre cada ser humano. Atualmente, a
doutrina do pecado original tem seu sentido mais amplo ao ser compreendido sob
a ótica do princípio da solidariedade dos homens em Cristo, vendo o lado
negativo e desobediente do ser humano e sua relação com a bondade
misericordiosa de Deus (Graça). Esta razão, entre outras, ajuda a compreender o
tema do pecado original com um acentuado aspecto teológico e cristológico, tal
como com a soteriologia, ressaltando o valor histórico dos primeiros capítulos
de Gênesis e a profunda relação com o aspecto salvífico oferecido por Jesus (Rm
5:12-21 – salvação vem pela graça mediante a fé justificada em Cristo e provada
pelas obras (fórmula salvífica)).
Sendo assim, a
descrição inicial de Gênesis nos ajuda a compreender que há “um ato pecaminoso
no início que determina, de certo modo, o destino posterior dos homens; há uma
espécie de concatenação de pecados e de consequências do pecado, que nos mostra
que o mal não vem de Deus, mas, aprioristicamente, de Satã, e,
aposterioristicamente, do homem”. Portanto, podemos concluir que “o pecado gera
pecado; o homem é integralmente responsável por seu destino sobre a terra”
(Luis F. LADARIA, Introdução à
Antropologia Teológica, 1998, p. 87). Isto quer mostrar que o pecado
primeiro que entrou no mundo expressa a força do pecado, arrastando todos os
homens e alertando que cada um peca pessoalmente. Assim, à luz do pensamento de
Paulo no trecho aos Romanos (5,12-21), pela desobediência de um (Adão), todos
são constituídos pecadores; do mesmo modo, pela obediência de um (Cristo),
todos são constituídos justos. A força do pecado (partindo de Adão) está em
todos, estabelecendo-se como algo prévio em nossas opções pessoais.
Historicamente, após as
fundamentações testamentárias, a escola pelagiana – julgando Adão como um mau
exemplo – será fortemente questionada por Agostinho, o qual exercerá sadia e
resoluta posição frente à controvérsia herética. Tanto os apontamentos agostinianos, como os escritos paulinos, muito
ajudarão os concílios (sobremaneira o de Trento) a elaborarem a doutrina do
pecado original em perfeita evidência com a função salvífica de Jesus Cristo.
É válido, neste sentido, lembrar que, após a crise pelagiana, Lutero será o
próximo a questionar a validade do batismo e a receber a doutrina oficial do
Concílio de Trento com os cânones acerca do decreto “de peccato originali”, o
qual constitui a declaração magisterial de mais alto nível e mais completa
sobre o assunto.
Uma explicação
terminológica! Quando se usa o termo “pecado original” é apenas uma analogia em
relação ao pecado pessoal. O uso do
termo “pecado” num sentido unívoco levou, no passado, a dificuldades
insuperáveis, quando se quis, por exemplo, determinar em que sentido o pecado
original é voluntário, sendo a voluntariedade um elemento essencial na noção de
pecado pessoal. Da mesma forma, ao falarmos de pecado original, a teologia
tradicional insiste em registrar a distinção entre o chamado “pecado original originante” e o “pecado original originado”. O primeiro
é o pecado cometido no início da história, que deu origem ao mal em que agora
vivemos e que experimentamos; o segundo são exatamente essas conseqüências
negativas do pecado em nós, nossa situação de isolamento em relação a Deus que
tem no pecado “originante” sua causa e seu fundamento. (cf. op.cit., p.93).
Além das diversas
anotações, que muito nos ajudam a compreender que o pecado original deve ser
lido sob diferentes posturas, paira uma “dúvida eterna” entre grande parte dos
teólogos: “De que modo podemos compreender o pecado de Adão e como ele se
reproduz?”. Sem querer uma obrigação maior sobre tal assunto, basta lembrar
que, em algum momento, a história de pecado teve o seu início, e, como lembra Ladária,
sua universalidade parece não admitir outra explicação do que a de situar esse
momento nos inícios da história humana, permitindo-nos compreender que há um
princípio da misericórdia de Deus, oferecida pela salvação deixada por Jesus. O
pecado não é mais forte que Cristo!
Por isso, a teologia do
pecado original não poderá ser analisada numa visão parcial da situação da
humanidade diante de Deus. Mesmo sendo difícil falar dos efeitos do pecado
original, resta-nos, do ponto de vista moral, recordar que um assunto dogmático
tão profundo questiona a liberdade do ser humano (fragilizada pela
concupiscência), o qual se sente tolido para seguir, fácil e espontaneamente,
os impulsos do Espírito. Portanto, o pecado original deve ser lido e entendido
na plena visão do plano original entre Deus e a humanidade, aguardando o lugar
definitivo na consumação escatológica.
A Vida e a ação de
Jesus mostram, claramente, que a salvação que Ele realiza em nome de Deus não é
tirar-nos de nossa humanidade, mas, antes, tirar-nos daquilo que nos impede de
sermos humanos. É nesse sentido que podemos entender, por exemplos, os relatos
evangélicos que narram as curas e os exorcismos operados por Jesus: são gestos
salvadores que devolvem às pessoas a plena capacidade de humanidade.
Desse modo, fica mais
fácil entender que a salvação não é apenas conserto da natureza corrompida pelo
pecado, mas muito mais que isso, ela é dom, acréscimo, dádiva, graça, excesso,
abundância. Não se trata de refazer o que o humano foi mais de dar realização
plena às suas potencialidades, isto é, fazer com que o humano seja aquilo que é
chamado a ser. Por isso, a salvação aponta muito mais para o futuro que para o
passado, para o que podemos ser e seremos muito mais que para o que fomos.
Na
teologia e no pensamento moderno, insiste-se no fato de que o homem não tem uma
alma e um corpo, mas é alma e corpo. E, na medida em que ambos são corpo e alma
do homem, ele é uno: essa unidade deveria ser o aspecto principal. Somente a
partir dela é possível a distinção desses dois aspectos ou dimensões, momentos,
nunca partes, de seu ser. O homem é corpo, ou seja, existe no espaço e no
tempo, é parte deste cosmos, encaminha-se para a morte; sua alma transcende os
condicionamentos deste mundo, é imortal, e, em última análise, tudo isso tem
sentido porque o homem é ser para Deus, é relacionado radicalmente a Ele. Há,
no homem, uma dimensão irredutível ao material e ao mundano, ontologicamente distinta
da realidade corporal. A fé cristã mantém esta concepção
como algo a que não se pode renunciar, porque só assim pode ter sentido a
concepção do homem criado à imagem de Deus, chamado à comunhão com Deus em
cristo e à conformidade com o ressuscitado.
É preciso uma nova
compreensão antropológica que se baseie, inclusive, em Jesus de Nazaré, que,
para a nossa fé, é revelador do ser de Deus, mas também do ser humano. Com efeito,
é Jesus que nos revela o que é o humano, ou para dizer de outra maneira, o que
significa ser humano neste mundo. A compreensão do ser da humanidade, neste
sentido, não parte de minha experiência de humanidade, uma experiência
fragmentada e incompleta, mas sim da vida de Jesus, o novo Adão, isto é, o
fundador da nova humanidade e, por isso, revelador do ser humano.
O autor constata que o
ser humano é, ao mesmo tempo, o destinatário da revelação e seu objeto. Deixa
para a Teologia Fundamental a reflexão sobre a pessoa como destinatária da
revelação, e concentra-se na questão do ser humano como seu objeto
propriamente. Sublinha o texto da GS 22 que explica que Cristo, ao nos revelar
o Pai e o seu amor, também revela ao ser humano o próprio ser humano e lhe dá a
conhecer sua altíssima vocação. Se lhe dá a conhecer sua identidade última e
mais profunda, e o fim a que está chamado: a comunhão de vida com o próprio
Deus uno e trino. Pressupõe que este destino coincide fundamentalmente com o
ser do humano, que o plenifica interiormente. Para Ladaria, esta revelação
salvífica justifica a pretensão do cristianismo de oferecer uma visão original
do ser humano desde a fé, assim como o título da disciplina “Antropologia
Teológica”.[4]
Claro que a formulação
antropológica da teologia deve levar em conta os avanços da ciência, sobretudo
as chamadas ciências humanas, que ajudam a compreender o significado da humanidade.
Hoje, existem múltiplas antropologias, isto é, formas de compreensão do
significado do humano no mundo. A antropologia neoliberal, que afirma que o ser
humano é o consumo, não é a única antropologia possível nos dias de hoje, e por
isso pode ser questionada. Existem, também, as antropologias indígenas que
afirmam que o ser humano se realiza na festa e na dança, e não no sucesso ou no
consumo.
Mas o discurso
antropológico da Teologia não pode ser simplesmente funcionalista ou
ideológico. Tem de ser teológico, o que significa partir da Revelação. É mister
colocar a questão antropológica aos pés de Jesus e dele aprender o que
significa a humanidade que partilhamos. Não posso escolher uma antropologia
segundo minhas convicções ou vontades pessoais, mas sim ver qual ou quais
antropologias resistem à critica de Jesus.
Claro que as ciências
humanas podem ajudar-nos a compreender o que Jesus nos revela sobre nossa
humanidade, e assim auxiliar-nos a distinguir aquilo que constrói o humano
daquilo que não o constrói. Mas o cristão não perde de vista que a Revelação,
de Deus e do humano, vem de Jesus. Aqui, desnecessário dizê-lo, reside toda a
importância da Cristologia: o cruzamento da história de Deus com a história
humana, indicando o caminho da salvação.
E podemos então
perguntar-nos se seria possível elaborar um modelo teológico e até mesmo
filosófico da pessoa sem recorrer, por exemplo, ao conceito de "alma"
enquanto entidade substancial dotada de "vida" própria, subsistente e
independente do corpo. Da mesma forma se poderá perguntar se não será possível
prescindir do conceito de "espírito", tomado no sentido igualmente
substancial em oposição a matéria. Luis Ladaria reconhece que hoje "não
poucas das críticas que de diversos pontos de vista são feitas à noção de
'alma' e às ideias de imortalidade, etc., que a acompanham, se devem às
dificuldades suscitadas pela (noção de) 'substância espiritual', como distinta
da matéria e constitutiva como esta do ser do homem. Talvez, estes problemas
possam ser evitados, se procurarmos regressar à noção original de “espírito” na
antropologia cristã. Com efeito, o espírito não é nem nas fontes bíblicas, nem
nas fontes patrísticas, primariamente, uma substância espiritual que se
distingue do corpo, mas sim aquela realidade divina por meio da qual Deus se
comunica ao homem e o torna participante da sua própria vida. Mais do que à categoria
de substância, faz-se referência à de relação, de encontro interpessoal,
comunhão de vida, inserção em Jesus (cf. 1 Co 6:17); e isto não como algo que
afeta apenas um aspecto do homem, mas sim como algo que eleva a uma outra
dimensão todo o seu ser. Deus chama todo o homem e o homem todo, na criação
realmente existente, à comunhão com ele por Cristo e no Espírito Santo. É
evidente que esta chamada pessoal de comunhão, que o homem pode recusar, mas
que nem por isso determina menos o seu ser, torna-se possível pela existência
de uma determinada estrutura psicofísica (...) que foi precisamente desejada
por Deus para tornar possível esta comunhão. Tenha-se além disso presente que
este chamamento divino determina o substrato criatural profundo do homem, fá-lo
ser aquilo que é. A transcendência do homem sobre o meramente mundano, a sua
capacidade de superar os condicionalismos deste mundo, bem como a sua
imortalidade derivam portanto do facto deste chamamento à comunhão com Deus
como determinante do seu ser criatural. 'Alma' e ser do homem enquanto derivado
deste convite de Deus à participação na sua vida, vêm por isso mesmo a
coincidir. O ser pessoal do homem, pressuposta a sua constituição psicossomática,
está constituído por esta possibilidade que se lhe oferece de entrar em
comunhão com Deus. Porque este chamamento do Deus fiel e omnipotente sustém o
homem não apenas nesta vida, mas também depois da morte, tem sentido falar da
alma do homem como do seu 'eu' subsistente para além da morte; e não esqueçamos
que o “eu” tem sentido com um “tu”. Vê-se claramente que, como em Ladaria, num
novo modelo, relacional mais que substancial, conceitos tradicionais como o de
"alma" e "espírito" adquirem significados radicalmente
novos, mesmo que esses significados correspondam a um certo "regresso às
origens" da teologia cristã
Quando o apóstolo dos
gentios afirma que “se Cristo não ressuscitou então a nossa pregação é vazia e
vazia também nossa fé” (I Cor. 15,14s), ele coloca nesta afirmação o
pressuposto fundamental da fé cristã na ressurreição de Jesus. Na antropologia
teológica de Ladária, dá-se a ideia de realização do reino de Deus, como
cumprimento da salvação escatológica, e a esperança cristã se faz muito
presente em sua obra.
É possível afirmar que
a realização do homem como imagem e semelhança de Deus se dará somente na
experiência da ressurreição definitiva. É no eschaton que o homem se realizará plenamente e o fundamento dessa
realização é Jesus Cristo.
É visível e compreensível,
o tema da salvação como realização plena da experiência de Deus no homem. O
homem espera a realização de seu destino e, pela experiência humana situada no
mundo, ele se percebe como natureza, destinado a Deus. É no sentido de desejo
de realização humana como esperança que se pode falar do reino de Deus como
esperança cristã e das promessas da parte de Deus já feitas a nossos pais na
fé. O reino representa o revelar pleno da Criação e esta plenitude se dará na
escatologia. É Deus quem promete, e deste modo, a esperança escatológica se apoia
em Deus. A reflexão antropológica em escatologia pode se reconhecer com uma
função limitada, pois tal realidade depende de Deus e não do ser humano. A
antropologia constitui apenas um terreno sobre o qual se pode argumentar sobre
uma esperança escatológica cristã com abordagem universalista, mas não está no
poder humano satisfazer tal esperança, senão somente em Deus.
Ladaria assinala como
dimensões fundamentais de nossa referência a Deus a chamada à filiação divina,
à imagem da filiação divina de Jesus; e a nossa consistência própria como
criaturas livres feitas à imagem e semelhança de Deus, chamados a viver em
comunidade, e capazes de rechaçar ao nosso Criador e seus projetos. Daí enumera
as três dimensões que compõem o tratado de antropologia teológica: a nossa
criaturidade, a nossa condição de pecadores, e a nossa condição de “agraçados”.[5]
O autor expõe o
desenvolvimento destas dimensões na dogmática ao longo da história da teologia,
até os tempos pós-conciliares em que evoluiu o tratado de antropologia
teológica como tal. Constata a importância da reflexão de Karl Rahner em clave
do método transcendental para assentar as bases de uma renovação das até então
diversas matérias teológicas numa unidade coerente, assim como o aprofundamento
de Rahner na relação da antropologia com a cristologia. Reconhece a influência
deste autor na teologia de Gaudium et
Spes, que diante das perguntas antropológicas suscitadas das inquietudes do
coração humano, oferece uma resposta cristológica. É à luz do Verbo encarnado,
imagem do Deus invisível, que se esclarece o mistério do ser humano, o qual
encontra em Cristo sua plena realização, seu paradigma de ser humano perfeito.
Ladaria se declara partidário desta doutrina conciliar, mas não acriticamente,
considerando que deve iluminar de modo decisivo todo o tratado da antropologia
teológica porque contribui à sua consolidação de una forma unitária e completa.[6]
A mais importante
contribuição que a teologia contemporânea ofereceu em vista de uma motivação e
interpretação antropológica dos enunciados escatológicos foi apresentada por
Karl Rahner. Para este, o que é fundamental para a escatologia é, de um lado, o
caráter oculto do futuro cumprimento escatológico, de outro, a relacionalidade
do homem, como ser histórico, a este futuro. A dimensão escatológica como
condição de inteireza do homem como salvação, a escatologia como escatologia
universal e individual, sendo sempre o homem indivíduo e ser que existe na
comunidade.
Quando se fala de
futuro, como certeza diante de um presente que se apresenta ao homem de forma
ainda fragmentada, a solução para tal dificuldade é a pessoa de Jesus Cristo,
pois nela já se faz presente ao homem a certeza do futuro salvífico e da
realização humana; certeza que já é realidade legível em Jesus Cristo. Em Jesus
toda humanidade se vê realizada no seu desejo e necessidade de salvação.
Nosso autor faz um
passeio pelos diversos manuais e textos sobre a antropologia teológica que
surgiram na esteira do Concilio Vaticano II, delineando suas respetivas
estruturas e distribuições sistemáticas. Expõe a ordem seguida pela maioria dos
autores na sequência seguinte: criação → pecado → graça. Mas há outros autores
(como G. Colzani y L. Serenthà) que mudam esta ordem tradicional para começar
com a inserção do ser humano em Cristo, quer dizer com a graça, antes de
proceder com a historicidade do ser humano exposta em térmos que abrangem a
teologia da criação e do pecado. Este novo esquema prioriza o nexo lógico sobre
o cronológico dos acontecimentos. Ladaria reconhece que esta disposição das
dimensões do tratado de antropologia teológica deixa transparecer o projeto de
Deus com maior claridade, mesmo que avalia que segue menos a ordem da experiência
humana e por conseguinte não facilita o diálogo com as pessoas que não
partilham a fé cristã. Deixa que o tempo confirme se estas novas tentativas de
renovação vão se tornar normativas, enquanto que suas próprias obras de
antropologia teológica revelam sua opção para a ordem mais bem histórica de
criação → pecado → graça . No entanto, na estrutura básica dos capítulos de Antropología Teológica procura deixar em
claro a primazia da graça.
No seu livro Teología del pecado original y de la gracia,
uma reelaboração da maior parte de Antropología
Teológica, o autor constata que a maior tendência no ensino teológico tem
sido a de agrupar as doutrinas da criação e do pecado numa primeira parte, para
serem seguidas por um tratamento da graça numa segunda parte. Mesmo assim, ele
segue mais bem o esquema novedoso (original) de J. L. Ruíz de la Peña, que trata da criação sob o título “antropologia
teológica fundamental”, e do pecado
e da graça sob o título “antropologia teológica especial”. O
ponto de partida neste seu volume da chamada “antropologia teológica especial”
é a oferta da graça de Deus, e segue-se uma consideração da resposta humana a
esta oferta, seja de rechaço, seja de acolhida do dom oferecido[7]
(fé) – por isto, insisto na fórmula que sistematizei: “a salvação vem pela
Graça mediante a fé justificada em Cristo e provada pela fé”.
Em sua obra Introducción a la Antropología Teológica
e em suas contribuições para a obra-coletânea sob a direção de B. Sesboüé, O homem e sua salvação (séculos V-XVII):
antropologia cristã, Ladaria inclui um capítulo sobre a escatologia, na
lógica de que uma abordagem da antropologia teológica completa-se com esta
referência à plena realização do projeto de Deus sobre o ser humano e sobre o
mundo.
Dentro desta ordem
sistemática das dimensões que compõem o tratado de Antropologia Teológica,
podemos constatar certas opções de conteúdo de parte de nosso autor em termos
do desenvolvimento de alguns temas “clássicos” que outros autores apenas
mencionam. Um exemplo é a controvérsia “de auxiliis”, e outro ainda é a sua
exposição da linguagem tradicional sobre as diferentes “classes” de graça
(sanante/elevante, criada/incriada, atual/habitual, etc.). Ladaria acentua o
tema do “sobrenatural” e procura evitar os perigos desta hipótese ao insistir
em chamar tal condição de “supracriatural”, como veremos a seguir. Combina o
rigor no tratamento dos dados disponíveis na Tradição da teologia com o esforço
de pensar novas formas de expressar os tesouros da fé cristã, numa linguagem
mais adequada para os nossos tempos.
De modo geral, podemos
afirmar que a postura de Ladaria diante de temas polêmicos costuma ser
moderada, equilibrada. Apoiamos esta afirmação com vários exemplos. Em sua obra
Antropología teológica, opta por uma
síntese entre as interpretações aparentemente opostas de Von Rad e Westermann a
respeito da relação entre as concepções de criação e da Aliança na fé do povo
de Israel (cf. Gn 1-2). Para Von Rad a criação está subordinada à salvação que
se exprime na Aliança, enquanto para Westermann ambas noções são independentes.
Ladaria propõe que ambas as posições podem ser sustentadas simultaneamente,
numa tensão criativa, e que podem ser vistas como duas manifestações distintas,
mas relacionadas da ação de Deus.[8]
Nosso autor expõe a
discussão escolástica sobre os motivos da encarnação, apresentando as vantagens
e as limitações das respectivas escolas tomista e scotista. Situa a questão em
termos da relevância que Jesus tem para nós, em lugar de numa investigação sobre
os planos ocultos de Deus. Vê conveniente que se procure recolher o melhor de
ambas as posturas, para chegarmos a uma compreensão correta do papel de Cristo
na criação e na salvação, ordens que estão radicalmente unidas[9].
Sua apresentação da
controvérsia “de auxiliis” também é equilibrada. Expõe ambos os lados da
disputa, chegando a identificar o problema de fundo como o próprio modo em que
tanto os dominicanos como os jesuítas apresentavam a questão. Em seus esquemas
simplistas, tendiam a colocar Deus e o ser humano praticamente no mesmo nível,
fazendo suas respectivas ações efetivamente concorrentes. Ladaria propõe que
afirmemos tanto a primazia de Deus como a liberdade humana[10].
Ao tratar do tema do
sobrenatural, o autor logra dar uma explicação lúcida de um tema complexo e
controvertido, apresentando seu desenvolvimento na história assim como na
reflexão de alguns teólogos contemporâneos a respeito; por exemplo, o
“existencial sobrenatural” de K. Rahner. O balanço de Ladaria representa um
esforço de tradução da linguagem de diversos séculos em termos mais
compreensíveis para os tempos atuais. Demonstra a tensão entre a necessidade de
salvar a gratuidade da salvação e certas dificuldades que surgem com a hipótese
abstrata de “natureza”, resgatando elementos que ele considera valiosos através
de seu próprio neologismo “supracriatural”[11].
A respeito do tema das
relações entre a Antropologia e a Cristologia, nosso autor apresenta as
respectivas perspectivas dos autores K. Barth, K. Rahner, W. Kasper y W.
Pannenberg. Toma distância da tendência de Barth de dissolver a Antropologia na
Cristologia. Sua própria síntese recolhe as luzes de Rahner e as complementa
com as intuições de Kasper e Pannenberg. É receptivo ao princípio rahneriano de
que a Cristologia é o começo e o fim da Antropologia, como temos visto a
propósito da teologia conciliar. Afirma que a aparição de Cristo desvela o
sentido da Antropologia e que efetivamente julga as pessoas, de acordo com a
sua acolhida ou não dele (fé)[12].
Estas breves reflexões
deixam transparecer um teólogo fiel ao ensino da Igreja e a sua docência,
sólido, rigoroso e ao mesmo tempo especulativo, em busca de novas formas de
comunicação da fé. Procura as metodologias que mais conduzem a este objetivo.
Seus balanços e sínteses, depois de examinar os diversos lados de um debate,
são bem ponderados e fundamentados.
Recentes
desenvolvimentos em biologia e nas ciências cognitivas têm trazido para o
domínio de estudo das ciências naturais questões que, até a bem pouco tempo,
eram consideradas específicas dos domínios filosófico e científico. Trata-se
das questões em volta da alma, da mente, do espírito, da consciência, etc. Até
que ponto uma "naturalização" da análise destas questões põe em causa
a antropologia tradicional de raiz aristotélico-tomista? O presente estudo
afirma que uma tal "naturalização" corresponde à emergência de um
novo paradigma, no interior do qual aqueles conceitos adquirem novos
significados, já não específicos apenas da filosofia e da teologia. Por outro
lado, uma tal análise não só não põe em causa outros conceitos como o de
imortalidade do ser humano, mas, pelo contrário, os afirma de um modo mais
adequado ao atual contexto cultural.
Ladaria reconhece que a
verdade mais profunda sobre o ser humano se diz desde a oferta da amizade
original com Deus, desde a chamada a entrar em comunhão com o Pai, através do
Verbo encarnado, no Espírito. Interpreta o pecado original em termos da ruptura
desta amizade, e a graça em termos da nova relação com Deus, que é a filiação
divina.
Tem o interesse não
somente de esclarecer a fé para os próprios cristãos, mas também preocupa-se
pelo diálogo com as pessoas que não partilham a fé cristã. Suas aclarações
sobre o ser humano enriquecem a especulação contemporânea de índole
antropológica e têm a capacidade de estender pontes às filosofias personalistas
e a outros campos de reflexão das ciências humanas.
Mesmo assim, parece que
a antropologia de Ladaria fica no plano do ser humano “universal”, “ocidental”,
um tanto abstrato. Não chega a particularidades como o condicionamento
existencial da realidade da pobreza, nem investiga a relação entre a revelação
de Cristo pobre e humilde e uma antropologia do pobre. Temos que recorrer a
outros autores, como Jon Sobrino, em busca desta perspectiva.
Por fim, ao menos, duas
perguntas precisam ser respondidas sempre: a) No contexto do diálogo interreligioso,
é melhor uma abordagem antropológica desde a experiência da nossa criaturidade,
ou partir da primazia da Graça?, b) Sendo a Cristologia o começo e o fim da
Antropologia, de que maneira a Revelação de Cristo pobre e humilde ilumina a
elaboração de uma antropologia do pobre?
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
LADARIA, Luis. Introdução à Antropologia Teológica. Edições Loyola.
______. Antropología teológica. Madrid:
UPCM, 1987.
______. Introducción a la antropología teológica. Estella (Navarra): Verbo
Divino, 1996.
______. Teología
del pecado original y de la gracia: antropología teológica especial.
Madrid: BAC, 2001.
______. “A criação do céu e da terra”;
“O homem criado à imagem de Deus”; “Natural e sobrenatural”; “Fim do homem e
fim dos tempos”. Em: SESBOÜÉ, B., LADARIA, L., GROSSI, V., LÉCRIVAIN P. O homem e sua salvação (séculos V-XVII):
antropologia cristã. História dos
dogmas, tomo 2. São Paulo: Loyola, 2003.
MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural: Iniciação, Teoria e Temas. 17ª edição.
Petrópolis, Editora Vozes, 2009, págs. 171-197.
http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Luis_Ladaria&printable=yes.
Consulta: 05/05/2014.
http://es.wikipedia.org/wiki/Luis_Francisco_Ladaria_Ferrer.
Consulta: 06/05/2014.
[1]
Mello, Luiz Gonzaga de. Antropologia
Cultural: Iniciação, Teoria e Temas. Vozes. Petrópolis, 19ª edição,
2011[1982].
[2]
Cf. MORADO, G. J. http://infocatolica.com/blog/puertadedamasco.php/luis_ladaria_un_teologo_serio.
Consulta: 25 de abril de 2014..
[3]
Cf. L. LADARIA, Introducción a la
antropología teológica. Estella (Navarra): Verbo Divino, 1996, p. 9-11.
[4] Cf. ibid., p. 9-11.
[5] Cf. ibid., p. 11-15.
[6] Cf. ibid., p. 15-32.
[7] Cf.
L. LADARIA, Teología del pecado original
y de la gracia. Madrid: BAC, 2001, p. xv-xviii.
[8] Cf.
L. LADARIA, Antropología Teológica.
Madrid: UPCM, 1987, p. 10-15.
[9] Cf.
ibid., p. 29-31.
[10] Cf.
ibid., p. 77-82.
[11] Cf.
ibid., p. 141-170.
[12] Cf.
L. LADARIA, Introducción a la antropología
teológica, p. 70-79.
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