TAMANHO
DO TEXTO
Cristofobia
Pouco
denunciada, a opressão violenta
das minorias
cristãs nos países muçulmanos é um problema cada vez mais grave
AYAAN HIRSI ALI
Ayaan Hirsi Ali, de
42 anos,
nasceu de uma família muçulmana na
Somália e emigrou para a
Holanda, onde foi parlamentar.
Produziu o filme Submissão
(2004), sobre a repressão às mulheres no mundo islâmico. É
pesquisadora do American Enterprise Institute
SANGUE
DERRAMADO
Cristãos coptas, do Egito,
carregam uma imagem de
Jesus Cristo
manchada de sangue, em ato contra a violência de extremistas islâmicos (Foto:
Asmaa Waguih/Reuters)
Ouvimos falar com frequência de muçulmanos como vítimas de abuso no Ocidente e dos manifestantes da Primavera Árabe que lutam contra a tirania. Outra guerra completamente diferente está em curso – uma batalha ignorada, que tem custado milhares de vidas. Cristãos estão sendo mortos no mundo islâmico por causa de sua religião. É um genocídio crescente que deveria provocar um alarme em todo o mundo.
O
retrato dos muçulmanos como vítimas ou heróis é, na melhor das hipóteses, parcialmente verdadeiro. Nos últimos anos, a opressão violenta das minorias cristãs tornou-se a norma em países de maioria islâmica, da África Ocidental ao Oriente Médio e do sul da Ásia à Oceania. Em alguns países, o próprio governo e seus agentes queimam igrejas e prendem fiéis. Em outros, grupos rebeldes e justiceiros resolvem o problema com as próprias mãos, assassinando cristãos e expulsando-os de regiões em que suas raízes remontam a séculos.
A mensagem
Para o Ocidente
A cristofobia gera muita violência, mas é menos discutida
do que a islamofobia
Para os agressores
O problema deve ser enfrentado com pressões diplomáticas,
econômicas e comerciais
A
reticência da mídia em relação ao assunto tem várias origens. Uma pode ser o medo de provocar mais violência. Outra é, provavelmente, a influência de grupos de lobby, como a Organização da Cooperação Islâmica – uma espécie de Nações Unidas do islamismo, com sede na Arábia Saudita – e
o Conselho para Relações Americano-Islâmicas.
Na última década, essas e outras entidades similares foram
consideravelmente bem-sucedidas em persuadir importantes figuras públicas e jornalistas do Ocidente a achar que todo e qualquer exemplo entendido como discriminação anti-islâmica é expressão de um transtorno chamado “islamofobia”
– um termo cujo objetivo é extrair a mesma reprovação moral da xenofobia ou da homofobia.
DOR
Centenas de cristãos
egípcios velam as vítimas de um ataque à bomba contra uma igreja em
Alexandria, em janeiro de
2011, que
deixou 23 mortos
(Foto: Cai Yang/Xinhua
Press/Corbis)
Uma avaliação imparcial de eventos recentes leva à conclusão de que a dimensão e a gravidade da islamofobia não são nada em comparação com a cristofobia sangrenta que atravessa atualmente países de maioria muçulmana de uma ponta do globo à outra. A conspiração silenciosa que cerca essa violenta expressão de intolerância religiosa precisa parar. Nada menos que o destino do cristianismo no mundo islâmico – e, em última instância, de todas as minorias religiosas nessa região – está em jogo.
Por causa de leis contra blasfêmia a assassinatos brutais, bombardeios, mutilações e incêndios em lugares sagrados, os cristãos de muitos países vivem com medo. Na Nigéria, muitos sofrem todas essas formas de perseguição. O país tem a maior minoria cristã (40%) em proporção ao número de habitantes (170 milhões) entre todos os países de maioria islâmica. Há anos, muçulmanos e cristãos vivem à beira de uma guerra civil. A Nigéria é o
recordista em número de cristãos mortos em ataques violentos nos últimos anos (leia mais abaixo). A mais nova organização radical é o grupo Boko Haram, que significa “educação ocidental é sacrilégio” e tem como objetivo estabelecer a lei islâmica (charia) em toda a Nigéria. Com esse propósito, afirma que matará todos os cristãos do país.
Só em janeiro, o Boko Haram foi responsável por 54 mortes. Em 2011, seus membros mataram ao menos 510 pessoas e queimaram ou destruíram mais de 350 igrejas em dez Estados da região norte, de maioria muçulmana. Eles usam armas, bombas de gasolina e até facões, gritando “Allahu
akbar” (“Deus é grande”) enquanto atacam cidadãos inocentes. Até agora, têm se concentrado em matar clérigos, políticos, estudantes, policiais e soldados cristãos, assim como líderes muçulmanos que condenam suas atitudes.
A
cristofobia que infesta o Sudão assume uma forma diferente. O governo autoritário do norte, muçulmano sunita, atormenta há décadas as minorias cristãs e animistas do sul. O que muitas vezes é descrito como guerra civil é, na prática, perseguição constante do governo a minorias religiosas. Essa prática culminou no vergonhoso genocídio de Darfur. O presidente muçulmano do Sudão, Omar
al-Bashir, foi indiciado pelo Tribunal Penal Internacional por três acusações de genocídio, mas a violência não terminou. A euforia dos cristãos pela semi-independência que Bashir concedeu ao
Sudão do Sul, em julho do ano passado, já passou. No Estado do Cordofão do Sul, eles ainda estão sujeitos a bombardeios aéreos, assassinatos, sequestros de crianças e outras atrocidades. A ONU afirma que entre 53 mil e 75 mil civis inocentes foram deslocados de suas casas.

TENSÃO
Cristãos, sudaneses
do sul comemoram sua independência do Sudão, de maioria muçulmana, em 2011. A
religião é um dos motivos para o conflito que perdura entre os dois países
(Foto: Thomas Mukoya/Reuters)
Os dois tipos de perseguição –
realizados por grupos extragovernamentais ou por agentes do Estado – aconteceram
simultaneamente no Egito pós-Primavera Árabe. Em 9 de outubro do ano passado, na região de Maspero, no Cairo,
cristãos coptas marcharam em protesto contra uma onda de ataques muçulmanos – incêndios em igrejas, estupros, mutilações e assassinatos – que se seguiu à derrubada da ditadura de Hosni Mubarak. Os
coptas representam cerca de 10% dos 83 milhões de egípcios. Durante o ato, as forças de segurança avançaram contra a multidão com seus caminhões e atiraram nos manifestantes, matando 24 pessoas e ferindo mais de 300. No fim do ano, mais de 200 mil coptas já haviam fugido de suas casas diante da expectativa de mais ataques. Com os muçulmanos no poder após as eleições legislativas, os temores parecem justificados.
O
Egito não é o único país árabe que parece empenhado em acabar com a minoria cristã. Desde 2003, mais de 900 cristãos iraquianos (a maioria deles assírios) foram mortos por terroristas somente em Bagdá, e 70 igrejas foram queimadas. Milhares deixaram o país por causa da violência. A consequência foi a
queda do número de cristãos para menos de 500 mil pessoas, metade da população registrada há dez anos. A Agência Assíria Internacional de Notícias, compreensivelmente,
descreve a situação atual como um “genocídio incipiente ou limpeza étnica dos assírios no Iraque”.
(Foto: AP
(2) e Khalid Mohammed/AP)
Os 2,8 milhões de cristãos que
moram no Paquistão representam apenas 1,4%
da população de mais de
190 milhões. Como membros de um grupo tão pequeno,
vivem com medo constante não só de terroristas islâmicos, mas também das leis
draconianas do Paquistão contra a blasfêmia. Há
o famoso caso de
uma cristã condenada à morte por supostamente insultar o profeta
Maomé. Quando a pressão internacional
convenceu o governador do
Punjab, Salman Taseer, a tentar encontrar uma forma de
libertá-la, ele foi morto por seu segurança, em janeiro de
2011. O guarda-costas foi
considerado herói pela maioria dos clérigos muçulmanos preeminentes. Embora
tenha sido condenado à morte no fim do ano passado, o juiz que
impôs a sentença vive
escondido, temendo por sua vida.
Casos como esse não são raros no
Paquistão. As leis contra a blasfêmia são
comumente usadas por muçulmanos criminosos e intolerantes para perseguir minorias
religiosas. O ato de simplesmente declarar crença na Santíssima Trindade é
considerado blasfêmia, pois
contradiz as principais doutrinas
teológicas islâmicas. Quando um grupo cristão é suspeito de desrespeitar
essas leis, as
consequências podem ser brutais. É só perguntar aos membros da entidade
assistencial cristã World Vision. Seus escritórios
foram atacados em 2010
por dez homens
armados com granadas. Seis pessoas
morreram e quatro
ficaram feridas. Um grupo muçulmano militante
assumiu a responsabilidade pelo ataque, sob a justificativa de que a
World Vision estava tentando subverter o islã – na
verdade, estava ajudando os
sobreviventes de um grande terremoto.
Nem mesmo a Indonésia,
muitas vezes
retratada como o país de maioria muçulmana mais tolerante, democrático e moderno do mundo,
está imune às ondas de
cristofobia. Segundo dados
divulgados pelo jornal americano The Christian Post, o número de incidentes violentos
cometidos contra minorias
religiosas (7% da população, dos
quais a maioria é
cristã) aumentou quase 40% entre 2010
e 2011.
A litania de
sofrimentos pode ser ampliada. No Irã, dezenas de cristãos
foram presos por ousar fazer cultos fora do sistema de igrejas
sancionado pelo governo. A
Arábia Saudita merece ser
colocada numa categoria própria. Apesar de mais de 1
milhão de cristãos
morarem no país como trabalhadores estrangeiros, igrejas e até a prática privada de oração
cristã são
proibidas; para impor
essas restrições
totalitárias, a polícia religiosa
frequentemente invade casas de cristãos e os
acusa de blasfêmia em tribunais onde o testemunho
deles tem menos importância jurídica que o de
um muçulmano. Mesmo na
Etiópia, onde os cristãos são maioria, igrejas
incendiadas por membros da minoria muçulmana
tornaram-se um problema grave.
Deveria ficar claro, a partir
desse catálogo de atrocidades, que a violência contra os cristãos é um problema importante e pouco
denunciado. Não, a violência não é
planejada centralmente ou coordenada por
alguma agência islâmica internacional.
Nesse sentido, a guerra
mundial contra os cristãos não é nem um pouco uma guerra
tradicional. É uma expressão espontânea de
uma animosidade
anticristã por parte dos muçulmanos que
transcende cultura, região e etnia.
Nina Shea, diretora
do Centro pela Liberdade Religiosa do Instituto
Hudson, de Washington, disse numa entrevista para a revista Newsweek que as minorias
cristãs em muitos países de maioria muçulmana
“perderam a proteção de suas sociedades”. Isso é especialmente verdade em países com movimentos islâmicos radicais em ascensão.
Nesses lugares, justiceiros
muitas vezes
sentem que
podem agir com impunidade, e a
falta de ação do governo
frequentemente comprova isso. A antiga
ideia dos turcos otomanos de que não muçulmanos em sociedades
muçulmanas merecem proteção (ainda que como cidadãos de segunda classe) praticamente
desapareceu em grandes porções do mundo islâmico. O resultado é
derramamento de sangue e opressão.
Vamos, por favor, estabelecer prioridades. Sim, governos ocidentais
devem proteger minorias
islâmicas da intolerância. E é
claro que
devemos nos certificar de que eles
possam cultuar, viver e trabalhar livremente e sem medo. A proteção da liberdade de consciência e expressão
distingue sociedades livres das não livres. Mas também
precisamos manter a perspectiva em relação à escala e à gravidade da intolerância. Desenhos, filmes e textos são uma coisa; facas, armas e granadas são outra totalmente diferente.
Sobre o que o Ocidente pode
fazer para ajudar as minorias
religiosas em sociedades de maioria muçulmana, minha resposta é:
precisamos começar a usar os bilhões de
dólares doados para ajuda aos países agressores como poder de barganha. E
há ainda o comércio e os
investimentos. Além da pressão
diplomática, as doações e relações comerciais
podem e devem depender do compromisso com o respeito à liberdade de consciência e ao
culto para todos os cidadãos. Em vez de acreditar em histórias
exageradas de islamofobia ocidental, é hora de tomar uma posição real contra a
cristofobia que
contamina o mundo muçulmano. A tolerância é para todos – exceto para os
intolerantes.