TAMANHO DO TEXTO
Os
avanços da ciência da alma
Uma
pesquisa inédita usa equipamentos de última geração para investigar o cérebro
dos médiuns durante o transe. As conclusões surpreendem: ele funciona de modo
diferente
Estávamos no mês de
julho de 2008. Na Rua 34 da cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos, num
quarto do Hotel Penn Tower, um grupo seleto de pesquisadores e médiuns
preparava-se para algo inédito. Durante dez dias, dez médiuns brasileiros se
colocariam à disposição de uma equipe de cientistas do Brasil e dos EUA, que usaria
as mais modernas técnicas científicas para investigar a controversa experiência
de comunicação com os mortos. Eram médiuns psicógrafos, pessoas que se
identificavam como capazes de receber mensagens escritas ditadas por espíritos,
seres situados além da palpável matéria que a ciência tão bem reconhece. O
cérebro dos médiuns seria vasculhado por equipamentos de alta tecnologia
durante o transe mediúnico e fora dele. Os resultados seriam comparados. Como
jornalista, fui convidada a acompanhar o experimento. Estava ali, cercada de um
grupo de pessoas que acreditam ser capazes de construir pontes com o mundo
invisível. Seriam eles, de fato, capazes de tal engenharia?
A produção de exames
de neuroimagem (conhecidos como tomografia por emissão de pósitrons) com
médiuns psicógrafos em transe é uma experiência pioneira no mundo. Os
cientistas Julio Peres, Alexander Moreira-Almeida, Leonardo Caixeta, Frederico
Leão e Andrew Newberg, responsáveis pela pesquisa, garantiam o uso de critérios
rigorosamente científicos. Punham em jogo o peso e o aval de suas instituições.
Eles pertencem às faculdades de medicina da Universidade de São Paulo, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, da Universidade Federal de Goiás e da
Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. Principal autor do estudo, o
psicólogo clínico e neurocientista Julio Peres, pesquisador do Programa de
Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (Proser), do Departamento de Psiquiatria
da Faculdade de Medicina da USP, acalentava a ideia de que a experiência espiritual
pudesse ser estudada por meio da neuroimagem.
Pela primeira vez, o cérebro dos médiuns foi
investigado com os recursos modernos da neurociência
Em frente ao Q.G. dos
médiuns no Hotel Penn Tower, o laboratório de pesquisas do Hospital da
Universidade da Pensilvânia estava pronto. Lá, o cientista Andrew Newberg e sua
equipe aguardavam ansiosos. Médico, diretor de Pesquisa do Jefferson-Myrna
Brind Centro de Medicina Integrativa e especialista em neuroimagem de
experiências religiosas, Newberg é autor de vários livros, com títulos como Biologia
da crença e Princípios de neuroteologia. Suas pesquisas são consideradas uma
referência mundial na área. Ele acabou por se tornar figura recorrente nos
documentários que tratam de ciência e religião. Meses antes,
Newberg escrevera da Universidade da Pensilvânia ao consulado dos EUA, em São Paulo , pedindo que
facilitasse a entrada dos médiuns em terras americanas. O consulado foi
prestativo e organizou um arquivo especial com os nomes dos médiuns,
classificando-o como “Protocolo Paranormal”.
“É conhecido o fato de
experiências religiosas afetarem a atividade cerebral. Mas a resposta cerebral
à mediunidade, a prática de supostamente estar em comunicação com ou sob o
controle do espírito de uma pessoa morta, até então nunca tinha sido
investigada”, diz Newberg. Os cientistas queriam investigar se havia alterações
específicas na atividade cerebral durante a psicografia. Se houvesse, quais
seriam? Os dez médiuns, quatro homens e seis mulheres, participavam do
experimento voluntariamente. Foram selecionados no Brasil por meio de uma longa
triagem. Entre os pré-requisitos, tinham de ser destros, saudáveis, não ter
nenhum tipo de transtorno mental e não usar medicações psiquiátricas. Metade
dos voluntários dizia carregar décadas de experiência no “intercâmbio
espiritual”. Outros, menos experientes, apenas alguns anos.
Na Filadélfia, antes
de a experiência começar, os médiuns passaram por uma fase de familiarização
com os procedimentos e o ambiente do hospital onde seriam feitos os exames. O
experimento só daria certo se os médiuns estivessem plenamente à vontade. Todos
se perguntavam se o transe seria possível tão longe de casa, num hospital em
que se podia perguntar se Dr. Gregory House, o personagem de ficção
interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie, não apareceria ali a qualquer
momento.
Numa sala com aviso de
perigo, alta radiação, começaram os exames. Por meio do método conhecido pela
sigla Spect (Single Photon Emission Computed Tomography, ou Tomografia
Computadorizada de Emissão de Fóton Único), mapeou-se a atividade do cérebro
por meio do fluxo sanguíneo de cada um dos médiuns durante o transe da
psicografia. Como tarefa de controle, o mesmo mapeamento foi realizado
novamente, desta vez durante a escrita de um texto original de própria autoria
do médium, uma redação sem transe e sem a “cola espiritual”. Os autores do
estudo partiam da seguinte hipótese: uma vez que tanto a psicografia como as
outras escritas dos médiuns são textos planejados e inteligíveis, as áreas do
cérebro associadas à criatividade e ao planejamento seriam recrutadas
igualmente nas duas condições. Mas não foi o que aconteceu. Quando o mapeamento
cerebral das duas atividades foi comparado, os resultados causaram espanto.
Segundo a pesquisa, a mediunidade pode ser
considerada uma manifestação saudável
Surpreendentemente,
durante a psicografia os cérebros ativaram menos as áreas relacionadas ao
planejamento e à criatividade, embora tenham sido produzidos textos mais
complexos do que aqueles escritos sem “interferência espiritual”. Para os
cientistas, isso seria compatível com a hipótese que os médiuns defendem: a
autoria das psicografias não seria deles, mas dos espíritos comunicantes. Os
médiuns mais experientes tiveram menor atividade cerebral durante a
psicografia, quando comparada à escrita dos outros textos. Isso ocorreu apesar
de a estrutura narrativa ser mais complexa nas psicografias que nos outros
textos, no que diz respeito a questões gramaticais, como o uso de sujeito,
verbo, predicado, capacidade de produzir texto legível, compreensível etc.
Apesar de haver várias
semelhanças entre a ativação cerebral dos médiuns estudados e pacientes
esquizofrênicos, os resultados deixaram claro também que aqueles voluntários
não tinham esquizofrenia ou qualquer outra doença mental. Os cientistas afirmam
que a descoberta de ativação da mesma área cerebral sublinha a importância de
mais pesquisas para distinguir entre a dissociação (processo em que as ações e
os comportamentos fogem da consciência) patológica e não patológica. Entre o
que é e o que não é doença, quando alguém se diz tocado por outra entidade. Os
médiuns estudados relataram ilusões aparentes, alucinações auditivas,
alterações de personalidade e, ainda assim, foram capazes de usar suas
experiências mediúnicas para tentar ajudar os outros. Pode haver, portanto,
formas saudáveis de dissociação. Uma das conclusões a que os cientistas
chegaram é que a mediunidade envolve um tipo de dissociação não patológica, ou
não doentia. A mediunidade pode ser uma expressão comum à natureza humana.
Essas conclusões, que ÉPOCA antecipa na edição que chegou às bancas na
sexta-feira (16), foram divulgadas na revista científica americana Plos One. O estudo Neuroimagem durante o estado de transe: uma contribuição ao
estudo da dissociação tem acesso gratuito
desde sexta-feira, dia 16, no endereço eletrônico: dx.plos.org/10.1371/journal.pone.0049360.
O maior de todos os psicógrafos
Naquele
verão, na Filadélfia, os dez médiuns produziram psicografias espelhadas –
escritas de trás para a frente –, redigiram em línguas que não dominavam bem,
descreveram corretamente ancestrais dos cientistas que os próprios
pesquisadores diziam desconhecer, entre outras tantas histórias. Convivendo com
eles naquele experimento, colhendo suas histórias, ouvindo os dramas e prazeres
de viver entre dois mundos, encontrei diferentes biografias. Todos eles
compartilham, porém, a crença de que aquilo que veem e ouvem é, de fato, algo
real. Outro ponto em comum: todos nutriam enorme respeito por Chico Xavier,
considerado o modelo de excelência da prática psicográfica.
Mineiro de família
pobre, fala mansa e sorriso tímido, Chico Xavier recebeu apenas o ensino
básico. Isso não o impediu de publicar mais de 400 livros, alguns em dez
idiomas diferentes, cobrindo variados gêneros literários e amplas áreas do
conhecimento. Ao final da vida, vendera cerca de 40 milhões de exemplares,
cujos direitos autorais foram doados. Psicografou por sete décadas. Nenhum tipo
de fraude foi comprovada. Isso não significa que seus feitos mediúnicos sejam
absoluta unanimidade. Há controvérsias. O pesquisador Alexandre Caroli Rocha,
doutor em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), chegou a conclusões que parecem favorecer a hipótese de que Chico
fosse mesmo uma grande e sintonizada antena. Em seu mestrado, ele analisou o
primeiro livro publicado pelo médium,Parnaso de
além-túmulo, que trazia 259 poemas atribuídos a 83 autores já mortos.
Seu estudo considerou
os aspectos estilísticos, formais e interpretativos dos poemas e concluiu que a
antologia não era um produto de imitação literária simples. Rocha descobriu,
por exemplo, que Guerra Junqueiro (1850-1923), um dos autores mortos, assinava
a continuação de um poema inacabado em vida. Não havia indício de que Chico tivesse tido
acesso ao poema antes de psicografar sua continuação. No doutorado, Rocha
concluiu que Chico reproduzia perfeitamente o estilo do popular escritor Humberto
de Campos (1886-1934). Nos textos que saíam da ponta de seu lápis havia,
segundo Rocha, um estilo intrincado e sofisticado, detectável apenas por
aqueles que conhecem bem como Humberto de Campos funciona. Muitos dos textos
atribuídos a Campos continham informações que estavam fora do domínio público.
Encerradas num diário secreto, tais informações só foram reveladas 20 anos
depois da morte de Campos e do início da produção mediúnica de Chico.
A ciência pode desvendar a natureza da alma?
“Se
eu pudesse recomeçar minha vida, deixaria de lado tudo o que fiz, para estudar
a paranormalidade.” Essa confissão de Sigmund Freud a seu biógrafo oficial,
Ernest Jones, marca um dos capítulos pouco conhecidos da história do pensamento
humano. Pouca gente sabe também que muitas das teorias reconhecidas hoje pela
ciência sobre o inconsciente e a histeria baseiam-se em trabalhos de
pesquisadores que se dedicaram ao estudo da mediunidade. Talvez menos gente
saiba que Marie Curie, a primeira cientista a ganhar dois prêmios Nobel, e seu
marido, Pierre Curie, também Nobel, dedicaram espaço em suas atribuladas
agendas ao estudo de médiuns. No Instituto de Metapsíquica em Paris, no início
do século passado, Madame Curie inquiriu com seus assombrados olhos azuis a
médium de efeitos físicos Eusapia Palladino. O casal Curie supôs que os
segredos da radioatividade poderiam ser revelados por meio de uma fonte de
energia espiritual. Quem seria capaz de imaginar isso hoje?
Outros cientistas
laureados com o Nobel consagraram parte de sua vida buscando respostas para os
mistérios da alma e a possibilidade de comunicação com os mortos. Pesquisas que
hoje seriam consideradas assombrosas, como materialização de espíritos,
movimentação de objetos à distância, levitação etc., foram realizadas na
passagem entre os séculos XIX e XX. Houve forte oposição materialista.
Experimentos frustrados e a comprovação de fraude de alguns médiuns lançaram um
manto de ceticismo e silêncio sobre o tema. Essa linha de pesquisa entrou em crise. Experimentos
com mediunidade aos poucos se tornaram uma mácula nos currículos oficiais dos
eminentes cientistas. E a ciência moderna acabou por condenar ao esquecimento
inúmeras pesquisas científicas sobre o assunto, algumas rigorosas. Enquanto o
cinema, a TV e a literatura cada vez se apropriam mais das questões do espírito,
a ciência dominante tem torcido o nariz e deixado essas reflexões fora de seu
campo.
A questão tem sido
esquecida, mas não totalmente. Apesar de ainda tímidas, pesquisas científicas
sobre comunicações mediúnicas, como a da Filadélfia, têm sido realizadas recentemente.
Basicamente, encontraram que, além de fenômenos que revelam fraude proposital
ou inconsciente do médium, há muito a explicar. Muita coisa não cabe dentro do
discurso que prevalece hoje na ciência. Pesquisadores da área acreditam que a
telepatia do médium com o consciente ou o inconsciente daquele que deseja uma
comunicação espiritual não explica psicografias nas quais se revelam
informações desconhecidas das pessoas que o procuram.
Muitas
informações fornecidas por médiuns, dizem eles, se confirmaram verdadeiras só
mais tarde, após pesquisa sobre o morto. Como pensar então em telepatia se só o
morto detinha as informações? Seria possível a ideia de comunicação direta com
os mortos? Alguns cientistas que estudam as percepções mediúnicas discordam
dessa hipótese. Acreditam que é possível não haver limite de espaço e tempo
para percepções mediúnicas. O médium poderia andar para a frente e para trás no
tempo e no espaço, coletando as informações que desejasse, quando e onde elas
estivessem. Num fenômeno em que comprovadamente não houvesse fraude ou sugestão
inconsciente, sobrariam apenas duas hipóteses: ou haveria a capacidade do
médium de captar informações em outro espaço e tempo; ou existiria mesmo a
capacidade de comunicação entre o médium e o espírito de um morto.
Atuais referências no
estudo científico de fenômenos tidos como espirituais, cientistas como Robert
Cloninger, Mario Beauregard, Erlendur Haraldsson, Stuart Hameroff e Peter
Fenwick aplaudem a iniciativa de Julio Peres em seu estudo. Esse neurocientista
brasileiro, que tem colhido apoio em seus pares, afirma que seus achados
“compõem um conjunto de dados interessantes para a compreensão da mente e
merecem futuras investigações, tanto em termos de replicação como de hipóteses
explicativas”. Outro coautor do estudo, o psiquiatra Frederico Camelo Leão,
coordenador do Proser, defende mais estudos acerca das experiências tidas como
espirituais. “O impacto das pesquisas despertará a comunidade científica para
como esse desafio tem sido negligenciado”, diz.
O pesquisador
Alexander Moreira-Almeida, coautor do estudo e diretor do Núcleo de Pesquisas
em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora, é
o principal responsável por colocar o Brasil em destaque nessa área no cenário
internacional. Moreira-Almeida recebeu o Prêmio Top Ten Cited, como o primeiro
autor do artigo mais citado na Revista Brasileira de Psiquiatria, com Francisco Lotufo
Neto e Harold G Koenig. É editor do livro Exploring frontiers of the mind-brain relantionship (Explorando as fronteiras da
relação mente-cérebro, em tradução livre), pela reputada editora científica
Springer.
Ele afirma que a alma,
ou como prefere dizer, a personalidade ou a mente, está intimamente ligada ao
cérebro, mas pode ser algo além dele. Para esse psiquiatra fluminense,
pesquisas sobre experiências espirituais, como a mediunidade, são importantes
para entendermos a mente e testarmos a hipótese materialista de que a
personalidade seja um simples produto do cérebro. Moreira-Almeida lembra que
Galileu e Darwin só puderam revolucionar a ciência porque passaram a analisar
fenômenos que antes não eram considerados. “O materialismo é uma hipótese, não
é ainda um fato cientificamente comprovado, como muitos acreditam”, diz
Moreira-Almeida.
Apesar de todos os avanços
da ciência materialista, a humanidade continua aceitando as dimensões
espirituais. Dados do World Values Survey revelam que a maioria da população
mundial acredita na vida após a morte. Em todo o planeta, um número expressivo
de pessoas declara ter se sentido em contato com mortos: são 24% dos franceses,
34% dos italianos, 26% dos britânicos, 30% dos americanos e 28% dos alemães.
Não há dúvida de que o materialismo científico foi instrumento de enorme
progresso para a humanidade. A dúvida é se ele, sozinho, seria capaz de
explicar toda a experiência humana. Para a maioria da população, a visão
materialista parece deixar um vazio atrás de si. Na busca de respostas para
nossas principais questões, muitos assinariam embaixo da frase de Albert
Einstein: o homem que não tem os olhos abertos para o mistério passará pela
vida sem ver nada.
* Denise Paraná é jornalista, doutora em ciências humanas pela
Universidade de São Paulo e pós-doutora, como visiting scholar, pela
Universidade de Cambridge, Inglaterra
Link para consulta: http://revistaepoca.globo.com/vida/noticia/2012/11/os-avancos-da-ciencia-da-alma.html
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